- Lais Modelli
- De São Paulo para a BBC Brasil
“Não posso ficar com vocês o resto da minha vida.”
A frase é de Ruby, personagem do filme vencedor do Oscar 2022, No Ritmo do Coração, em uma conversa com os pais. Ela deseja sair de casa para cursar faculdade, mas se sente dividida entre as obrigações familiares e o desejo por independência.
E não é para menos: única ouvinte de uma família de pai, mãe e irmão surdos, Ruby passou a vida tendo que interpretar o mundo ao redor à todos dentro de casa.
“Achei o filme sensacional, me identifiquei com tudo ali”, diz o músico e intérprete de Língua Brasileira de Sinais (Libras), Flavio Maia.
Igual a Ruby, Maia é um Coda (“child of deaf adults”), expressão em inglês que define filhos ouvintes de pais surdos.
O termo vem se popularizando nos últimos anos no Brasil, mas nasceu nos Estados Unidos em 1983 com a defesa da ideia de que os Codas, em diferentes partes do mundo, são sujeitos biculturais e que vivenciam experiências muito semelhantes.
“Por ser o filho mais velho, era sempre eu que acompanhava meus pais para tudo que eles precisassem. Comprar um carro, abrir conta em banco, ir ao médico”, conta o músico.
Hoje, com 38 anos, Maia se orgulha de ter sido, como ele descreve, “o primeiro intérprete da família”, mas, durante a adolescência, confessa que não gostava da obrigação de ter que mediar a comunicação da família com as pessoas fora da comunidade surda.
“Alguém precisava ser o intérprete dos meus pais, já que ninguém, naquela época [anos 80 e 90], sabia Libras. Desde que me entendo por gente, esse alguém fui eu”, lembra.
“Era uma sobrecarga, um peso, não pelos meus pais, mas no sentido em que eu tive que dar conta de algo que a sociedade não deu, que era o de promover acessibilidade para incluir meus pais”, diz.
Mais que intérprete dos pais, Maia assumiu a função durante toda a adolescência na associação de surdos que o seu pai ajudou a fundar em Belo Horizonte na década de 1980.
“As associações de surdos tinham uma ligação muito forte com o esporte naquela época, era um meio para essas pessoas se encontrarem e socializarem. Eu acompanhava a nossa equipe nos campeonatos. Viajamos muito juntos”, lembra o mineiro.
Uma das funções de Maia nessas viagens era a de telefonar para cada um dos familiares dos surdos para mandar notícias.
“Eu sou da época do orelhão, as pessoas não tinham celular. Então, você imagina, em cada parada do ônibus formava uma fila de 30, 40 pessoas no orelhão querendo avisar a família que estava bem. Adivinha quem tinha que fazer todas essas ligações?”, conta ele, rindo da lembrança.
A primeira Coda da cidade
A Libras foi reconhecida como meio legal de comunicação e expressão da comunidade surda brasileira apenas em dezembro de 2005, com a regulamentação da lei n.10.436/02. Ela garante o acesso e o ensino da linguagem de sinais, a formação de instrutores e intérpretes e a presença de intérpretes nos locais públicos.
Apesar da lei, a professora universitária Keli Maria de Souza Costa, filha de pai e mãe surdos, afirma que “quase nunca o direito de inclusão é garantido”.
“Recentemente, meu pai teve um acidente de trabalho e eu o acompanhei na perícia médica. Não tinham um intérprete no local, e não queriam me deixar entrar com ele na sala do médico, mesmo eu explicando que ele não entenderia nada que o médico dissesse. É desgastante”, reclama Keli.
Nascida em Uberlândia, a professora universitária se orgulha em contar que seus pais são o primeiro casal de surdos a se casar na cidade – o padre da celebração também era surdo.
Keli, aliás, ostenta o título de ser a primeira Coda uberlandense.
“Antigamente, as famílias não deixavam dois surdos se casarem com medo de terem um filho surdo. Como eu nasci ouvinte, brincamos que meus pais ‘abriram a porteira’ na cidade”, conta.
A professora conheceu a terminologia Coda em 2012, quando uma amiga, também filha de surdos, contou que havia descoberto um encontro internacional de Codas nos Estados Unidos.
Keli e a amiga participaram do evento naquele ano e, quando retornaram ao Brasil, criaram a versão nacional do encontro.
“Quando eu descobri que havia toda uma comunidade de filhos vivendo os mesmos dilemas que eu, que pertencem tanto ao mundo dos surdos como ao dos ouvintes e, ao mesmo tempo, não pertencem a nenhum deles, me senti pertencente a algo”, explica a mineira.
Criado em 2013, o Encontro Nacional de Codas tem 275 filhos ouvintes inscritos no cadastro do evento. A última edição aconteceu em fevereiro.
Agora, Keli e as amigas querem estender o encontro para Kodas, com o K de “kids”, ou seja, para filhos ouvintes crianças, e Godas, com o G de “grandchildren”, netos, em inglês.
“Meus pais cuidam dos cinco netos pequenos para que minhas irmãs possam trabalhar. Todos são ouvintes e todos já sinalizam em Libras. Assim como meus sobrinhos, devem existir muitos Godas por aí”, diz a professora.
‘Tua mãe nunca vai te ouvir cantar’
Keli começou a acompanhar os pais em consultas médicas e a ir com eles nas reuniões de pais da escola – dela e das duas irmãs – com apenas 12 anos. Ela conta que, nessa época, se questionava: “por que só os meus pais são surdos?”
“O filme [No Ritmo do Coração] me emocionou muito porque me fez lembrar de coisas parecidas que vivi com meus pais. Comigo também foi comum o pensamento de ‘o que eles vão fazer sem mim?’ quando decidi sair de casa”, desabafa.
Ainda na adolescência, Keli se interessou pela música e passou a estudar canto lírico no conservatório de Uberlândia.
“Uma pessoa me disse uma vez: ‘você tem uma voz tão bonita, mas sua mãe nunca vai poder te ouvir’. Isso me marcou”, conta.
Pouco tempo depois, Keli começou a cantar na igreja do bairro. Até hoje, sua mãe costuma aparecer na hora do salmo para vê-la se apresentar.
“Eu vejo que ela me olha com uma carinha tão bonita, emocionada, enquanto canto. Uma vez, depois de cantar, ela me disse que eu tinha cantado muito bonito. Ela não me ouve, mas me sente”, diz Keli.
Esse não foi o único episódio de indelicadeza que a mineira passou. Ela conta que era frequente ouvir se referirem a ela na escola como “a filha do mudinho”.
Na família de Flavio Maia, a discriminação também ocorreu dentro do ambiente familiar. Contrários ao casamento de seus pais por ambos serem surdos, o músico conta que a família paterna não fazia questão de incluir a sua mãe.
“A família do meu pai sempre jogava buraco, e só chamava minha mãe quando faltava um jogador. Durante o jogo, eles conversavam, riam, mas a ignoravam. Quando ela perguntava sobre o que estavam falando, eles diziam ‘nada, besteira'”, lembra o moço.
“Era revoltante para mim ver que minha mãe se sentia uma estranha na família. Precisei fazer terapia aos 11 anos”, conta Maia.
Intérprete desde pequenos
A professora de Comunicação da Universidade Federal de Minas Gerais, Regiane Lucas, é filha ouvinte de pai e mãe surdos. Uma das suas duas irmãs também é surda. Todos se comunicam por sinais.
“Os primeiros intérpretes das línguas de sinais foram os filhos ouvintes de pais surdos”, explica a professora, que pesquisa como a comunidade surda se apropria dos meios de comunicação para se conectar.
Assim como filhos ouvintes de pais ouvintes, os Coda aprendem de maneira natural dentro de casa a Libras.
“Minha mãe conta que a primeira vez que me comuniquei em sinal foi com 8 meses. Ela estava arrumando a casa e me viu sinalizando que estava chovendo. Ela foi até a janela, viu a chuva e saiu correndo para recolher a roupa do varal”, conta Regiane.
Ao contrário do que muitos pensam, explica a pesquisadora, os filhos de pais surdos também aprendem naturalmente o português oral.
“Minha primeira língua foi Libras, mas também aprendi de maneira muito natural o português falado. Morávamos em uma casa nos fundos da casa da minha tia e avó, que eram ouvintes. Lá, eu e minha irmã escutávamos rádio, assistíamos televisão”, diz Regiane.
“Não temos somente contato com nossos pais. Somos formados por uma rede. Codas são pessoas bilíngues desde o nascimento”, conta.
Outro preconceito que Regiane observa é pessoas ouvintes acharem que pais surdos não são capazes de criar filhos ouvintes.
“Eu assumi algumas responsabilidades com meus pais muito cedo para conseguir incluí-los na sociedade. Por ser a mais velha, também ajudei eles com minhas irmãs, como ir nas reuniões de pais da escola, mas nunca me senti mãe delas. Meus pais sempre assumiram muito bem a função de cuidadores”, diz Regiane.
Apesar dos preconceitos, a professora universitária conta que muitos ouvintes têm curiosidades engraçadas em relação ao cotidiano de uma família surda.
“Muitos me perguntam se a casa dos meus pais é silenciosa. Não é! A casa de um surdo é muito barulhenta porque eles não têm noção do barulho que as coisas fazem”, conta.
Questionada sobre o som da sua infância, Regiane responde rindo: “Com certeza, o barulho da minha mãe mexendo com panelas e dos meus pais andando, batendo o sapato no chão. Eles fazem barulhos altos demais!”, lembra, rindo.
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