Botsuana: uma história de sucesso na África?
- Author, Julia Braun
- Role, Da BBC News Brasil em Londres
- Twitter, @juliatbraun
Quando o serviço sul-africano da BBC noticiou a independência de Botsuana em setembro de 1966, o país foi descrito como um “vasto deserto sem estradas”, com uma população de agricultores devastada pela seca e pela fome.
Na época, a nação tinha apenas 12 quilômetros de estradas pavimentadas, poucos hospitais e a maioria das pessoas dependia do gado e da agricultura de subsistência.
Desde então, a situação mudou muito.
Atualmente esse país localizado no sul do continente é apontado pela agência de desenvolvimento da ONU como “uma das verdadeiras histórias de sucesso do desenvolvimento econômico e humano na África”.
Com cerca de 2,6 milhões de habitantes, a ex-colônia britânica é a mais antiga democracia multipartidária africana e está entre as 5 nações mais desenvolvidas da África Subsaariana, de acordo com o Índice de Desenvolvimento Humano.
Gaborone, a capital do país, é descrita como uma cidade de ruas limpas e ordenadas, com trânsito que flui facilmente e um centro repleto de modernos edifícios.
As taxas de pobreza também despencaram nessas quase seis décadas. Enquanto em na década de 80 cerca de 59% da população vivia abaixo da linha da extrema pobreza, em 2015 esse número caiu para 15%.
A BBC News Brasil consultou especialistas de diversas áreas para entender o que faz muitos classificarem Botsuana como um exemplo de sucesso na África – e quais fatores levaram a realidade atual.
Segundo os analistas, o país é, sim, um exemplo positivo em meio a um continente tão afetado pela miséria, pela violência e pelas mazelas da colonização europeia.
Mas existem ainda muitos obstáculos a serem superados.
As taxas de pobreza atual ainda são muito altas. Economistas também apontam índices crescentes de corrupção, grande desigualdade social e um cenário cada vez mais instável às vésperas de uma eleição nacional marcada para outubro do ano que vem.
Democracia
Botsuana ficou na 32ª posição no ranking de democracia da revista The Economist em 2022, que analisou 165 Estados independentes e dois territórios.
Está na frente de países como Itália, Bélgica e do Brasil, que está na 51ª posição.
A nação tem um sistema parlamentarista de governo e, desde sua independência em 1966 teve cinco presidentes eleitos em pleitos considerados limpos e justos por analistas e observadores internacionais.
Vale ressaltar que o mesmo partido tem se mantido no poder pelos últimos 57 anos, o Partido Democrático de Bostuana, ou BDP, na sigla em inglês.
Ainda assim, organizações como o Banco Mundial classificam o ambiente político do país como uma democracia multipartidária tradicional.
Segundo analistas, a estabilidade democrática pode ser atribuída a diversos fatores, entre eles a política e o primeiro governo pós-independência.
Oge Onubogu, diretora do Programa África do centro de estudos americano Wilson Center, explica que Botsuana teve um passado distinto de outros países do continente.
Segundo ela, em grande parte da região, os poderes coloniais controlaram o Estado com mãos de ferro e, ao saírem, deixaram como herança um Estado que beneficiava apena a elite.
“No caso do Botsuana foi um pouco diferente, pois havia chefes mais tradicionais que voluntariamente aderiram à parceria com os britânicos, criando um sistema de governo indireto dos ingleses”, afirmou à BBC News Brasil.
“Dessa forma, a elite tradicional foi capaz de controlar o bem-estar de seu povo sem estar sob forte supervisão ou controle das potências coloniais”.
O cientista político Nic Cheeseman, professor da Universidade de Birmingham, diz que o país também era formado na época da independência por uma população mais homogênea etnicamente do que outras nações africanas.
“Existe um grupo étnico que representa a maioria da população e que, ao longo do tempo, assimilou outros grupos e se ampliou. Dessa forma, não se criou uma divisão do sistema político em vários pequenos partidos, cada um dizendo representar um grupo étnico, como em outros países”, afirma.
Isso significa que Botsuana tem uma comunidade majoritária na qual baseia o seu principal partido político, o que gera mais consenso político e estabilidade.
O professor John Makgala, da Universidade de Botsuana, também explica que há um elemento cultural importante: as populações locais, mesmo antes da colonização, sempre levaram muito a sério o debate público.
Chefes tribais raramente tomavam decisões sem antes realizar conselhos populares.
Makgala ainda atribui muito do sucesso de Botsuana ao primeiro governo após a independência, comandado pelo presidente Seretse Khama.
“O sistema de governo tradicional de Botsuana tinha elementos democráticos bastante significativos, por meio do qual as decisões eram tomadas pelo consenso. Mesmo chefes tribais muito fortes não podiam impor a sua vontade ao povo”, diz. “E chefes e líderes prestavam contas aos seus seguidores por meio desse mecanismo de segurança social.”
Segundo o especialista, esse modelo foi seguido pelo primeiro governo após a independência, que também seguiu um sistema democrático liberal.
“E, mais importante, aplicou o respeito pelo Estado de direito e pelos direitos humanos, algo que não era tão comum em nosso continente na época.”
Outros fatores, como a capacidade de Botsuana de permanecer razoavelmente neutra diante da luta por influência durante a Guerra Fria, também são citados por historiadores como importantes para o caminho percorrido pelo país.
Mas apesar de tudo isso, há quem diga que ainda há muito que melhorar em termos de democracia e política: especialmente quando se trata de transição de poder e um sistema partidário competitivo, com uma oposição forte – algo que especialistas afirmam que nunca existiu.
Segundo eles, ao mesmo tempo em que isso contribui para a manutenção da estabilidade, impede o país de ser classificado entre as democracias mais robustas do mundo.
“Desde o início, Botsuana é governado pelo mesmo partido, nunca houve transferência de poder. E embora as liberdades políticas sejam respeitadas, não é um país que poderíamos dizer que possui um sistema político competitivo e vibrante”, diz Cheeseman, que é diretor do Centro de Eleições, Democracia, Responsabilidade e Representação (Cedar) da Universidade de Birmingham.
Há também uma preocupação crescente em relação às eleições marcadas para outubro do ano que vem.
O atual presidente, Mokgweetsi Masisi, não tem o apoio do seu antecessor para a reeleição. É a primeira vez que isso acontece, e essa quebra de tradição tem provocado incertezas em relação ao resultado.
Mineração
É também um consenso que a estabilidade democrática sempre andou lado a lado com o desenvolvimento obtido por meio da exploração de diamantes em Botsuana.
Os lucros obtidos com a extração sustentaram – e ainda sustentam, segundo especialistas – a economia do país.
O setor de mineração representa cerca de 35% do PIB do país, com os diamantes contribuindo com cerca de 94% dessa parcela.
Botsuana também produz os maiores diamantes do mundo, com uma produção que representa cerca de 40% do total global.
De acordo com Oge Onubogu, os primeiros governos pós-independência foram bem-sucedidos em estabelecer uma parceria produtiva com a principal mineradora do continente, De Beers, e manter o controle sobre parte dessas riquezas.
Eles também usaram as receitas para manter a dívida pública baixa, criar fundos e investir em saúde, educação e infraestrutura, diz.
Essa realidade contrasta diretamente com as experiências negativas com a exploração de recursos naturais de muitos outros países africanos.
“Diferentemente do que vimos, por exemplo, no Zimbábue, onde houve uma espécie de corrida para tentar recuperar as terras dos agricultores brancos minoritários (após a independência), em Botsuana, embora haja uma minoria branca mais abastada envolvida na indústria dos diamantes, o governo também controla uma boa porcentagem da indústria”, explica.
Tudo isso fez com que Botsuana saísse de uma nação descrita como deserta e sem perspectivas econômicas e se tornasse um dos cinco maiores PIBs per capita da África subsaariana, na frente da vizinha África do Sul, e pouco abaixo do Brasil.
Da independência, em 1966, até o final da década de 1990, o país foi uma das economias de crescimento mais rápido do mundo, comparável apenas à China, com um crescimento médio anual do PIB superior a 10%.
Segundo o economista Makgala, além dos recursos naturais, a política fiscal e as boas práticas do Banco Central também tiveram um papel importante nisso.
“Nosso Banco Central, o Banco de Botsuana, é considerado uma das instituições mais eficientes e respeitadas localmente e até internacionalmente”, diz.
Mas muitos afirmam que a economia local é muito dependente da mineração e se desenvolveu pouco em outras áreas.
Não havia basicamente nenhum setor industrial no país na época da independência e, nos últimos 10 anos, o valor agregado da indústria local cresceu menos de 2%.
“Existem preocupações em relação à forma como o país está gerindo a transição dos diamantes”, diz Cheeseman.
“Os diamantes do Botsuana acabarão em algum momento e ainda não está claro se o governo será realmente capaz de gerir essa transição de forma que seja capaz de sustentar uma economia de boa qualidade, com oportunidades de empregos.”
E já há um declínio na produção e nos preços dos diamantes devido à baixa na procura mundial. Com isso, é prevista uma desaceleração no crescimento econômico de cerca de 2 pontos percentuais apenas em 2023.
Apesar de a pobreza ter despencado nas quase seis décadas desde a independência de Botsuana, analistas ainda consideram as taxas atuais muito altas.
Para fins de comparação, o Sudão do Sul, considerado o país com as maiores taxas de miséria do mundo, tem cerca de 67% de sua população vivendo com menos de 2 dólares e quinze centavos por dia – bem mais do que os 15% de Botsuana.
Já na França, esse percentual é de 0,1% e, no Brasil, de cerca de 5,8%.
Em termos de educação, Botsuana vai um pouco melhor. Cerca de 92% das crianças com idade para o ensino básico estão matriculadas na escola, contra algo em torno de 96% no Brasil e 66% na República Centro-Africana.
E enquanto a média de analfabetismo na África Subsaariana é de 32% da população, em Botsuana o percentual é de cerca de 10%.
Em termos de acesso à saúde, Botsuana gasta em média 6% do seu PIB em investimentos, acima também da média na região, e tem uma das taxas de mortalidade infantil mais baixas de toda a África.
Mas os especialistas afirmam que é impossível ignorar os índices negativos, como de desemprego e desigualdade social.
“Temos sérios problemas de pobreza e de desemprego hoje em dia. Muitos se formam na faculdade e não conseguem emprego”, diz John Makgala, da Universidade de Botsuana.
“Os resultados disso são as taxas de criminalidade, que ficaram realmente preocupantes. E a partir de meados da década de 1990 também começamos a encarar a corrupção como um problema.”
As taxas de desemprego do país atualmente estão em torno de 18%.
Em um ranking que organizou os países do mundo em ordem de segurança, considerando índices criminais, atividades extremistas, conflitos internos e outros itens, Botsuana ficou na 46ª posição.
O país está bem melhor classificado do que a maioria das demais nações africanas e bem melhor que o Brasil, que ficou na 130ª posição em um total de 163 países.
Makgala diz que os casos de corrupção vêm crescendo nos últimos anos e se tornaram uma das maiores queixas da população.
Ainda assim, Botsuana foi bem em um índice elaborado pela organização Transparência Internacional, que ranqueia 180 países dos melhores para os piores em termos de percepção de corrupção.
O país ocupa a posição número 35 e é o segundo melhor colocado da África, bem à frente do Brasil, que está na posição 94.
Mas o ponto mais problemático apontado por especialistas é a desigualdade social.
Segundo um índice desenvolvido pelo Banco Mundial, o país está entre os 10 mais desiguais do mundo, logo abaixo do Brasil, que ocupa a nona posição e é o único representante entre os 10 primeiros dessa lista que não fica na África.
Há ainda uma preocupação em termos de igualdade de gênero. Até 2021, apenas 10,8% dos assentos no Parlamento eram ocupados por mulheres. E em 2018, 17,1% das mulheres entre 15 e 49 anos relataram ter sido vítimas de violência física e/ou sexual por parte de um parceiro íntimo nos últimos 12 meses.
“Há mais que poderia ser feito para garantir que as mulheres dentro dos partidos políticos estejam em posições que lhes permitam ocupar posições de tomada de decisão”, critica Oge Onubogu.
Fonte: BBC
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