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Segundo Polícia Federal, itens de alto valor foram omitidos do acervo público e vendidos para enriquecer Jair Bolsonaro

O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e seu entorno são foco de uma investigação da Polícia Federal (PF) que apura um suposto esquema de negociação ilegal de joias dadas por delegações estrangeiras à Presidência da República.

Segundo a PF, os itens de alto valor foram omitidos do acervo público e vendidos para enriquecer o ex-presidente.

Mas o que se sabe até agora sobre este intricado caso?

Na última sexta-feira (11/8), a PF deflagrou a Operação Lucas 12:2 — o nome foi uma alusão ao versículo bíblico que diz que “não há nada escondido que não venha a ser descoberto”.

Quatro pessoas foram alvo da operação, autorizada pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF): o ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro, tenente-coronel do Exército Mauro Cesar Barbosa Cid, que está preso; o pai dele, o general do Exército Mauro Cesar Lourena Cid; o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro e tenente do Exército Osmar Crivelatti; e o advogado Frederick Wassef, que já defendeu Bolsonaro e familiares em processos judiciais.

Apesar de ter o nome mencionado pela PF como integrante de uma suposta “organização criminosa”, Bolsonaro não foi alvo da operação.

Moraes disse haver “fortes indícios de desvios de bens de alto valor patrimonial” no caso das joias negociadas pelo entorno do ex-presidente.

O ministro do STF é relator do inquérito que investiga a atuação de uma suposta milícia digital contra a democracia.

Segundo a PF, os crimes apurados na operação foram lavagem de dinheiro e peculato (desvio de bem público).

A operação atingiu integrantes do núcleo mais próximo de Bolsonaro um mês depois de ele ter sido condenado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e ficar inelegível por oito anos.

Presentes recebidos

A investigação envolve os presentes de alto valor que Bolsonaro recebeu quando ainda era presidente da República (2019-2022).

Por lei, tais objetos devem ser incorporados ao acervo da Presidência da República, ou seja, são bens públicos e não pessoais. Uma exceção são itens considerados “personalíssimos”, como roupas, perfumes e alimentos.

Mas, segundo os investigadores, esses presentes de alto valor foram incorporados ao patrimônio pessoal de Bolsonaro e negociados com fins de enriquecimento ilícito.

Os objetos sobre os quais a investigação da PF se debruçou são, por enquanto: um kit da marca suíça Chopard, dois relógios (um da marca suíça Rolex, acompanhado por joias, e outro da marca suíça Patek Philippe) e duas esculturas douradas folheadas a ouro.

No entanto, os investigadores não descartam que mais peças tenham sido apropriadas indevidamente por Bolsonaro.

Abaixo, mais detalhes sobre cada um desses itens:

Kit da Chopard

Em outubro de 2021, durante uma viagem do então ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, à Arábia Saudita, o governo Bolsonaro recebeu um kit com itens da marca suíça Chopard que incluía: uma caneta, um anel, um par de abotoaduras, um rosário islâmico (“masbaha”) e um relógio.

Esse kit teria sido trazido pelo próprio ministro na sua bagagem pessoal sem ser declarado e permanecido guardado no cofre do prédio do ministério por mais de um ano, até ser registrado e enviado ao acervo da Presidência da República.

Segundo a investigação da PF, esse kit saiu do Brasil no mesmo voo oficial que levou Bolsonaro, sua família e seus assessores à Flórida, nos Estados Unidos, no dia 30 de dezembro de 2022, o penúltimo dia de seu mandato.

Levadas a leilão pela Fortuna Auctions, uma casa de leilões sediada em Nova York, nos Estados Unidos, com valor inicial de US$ 50 mil (R$ 248 mil, segundo cotação atual), mas com valor estimado entre US$ 120 mil (R$ 596 mil) e US$ 140 mil (R$ 695 mil), as peças não foram arrematadas “por circunstâncias alheias à vontade dos investigados”, disse a PF em relatório.

Em março, o TCU (Tribunal de Contas da União) determinou que Bolsonaro entregasse esse kit à Caixa Econômica Federal (CEF) — os bens foram posteriormente “resgatados” na casa de leilão e devolvidos ao governo pela defesa do ex-presidente.

Relógio Patek Philippe

O relógio da marca suíça Patek Philippe foi recebido possivelmente, segundo a PF, durante visita oficial de Bolsonaro ao Bahrein, um pequeno país no Golfo Pérsico, em novembro de 2021.

Pela investigação, esse item foi negociado junto com o Rolex que fazia parte de um dos presentes dados pelo governo da Arábia Saudita (ler mais abaixo).

Segundo a PF, o relógio Patek Philippe foi extraviado do acervo oficial “diretamente para a posse do ex-presidente Jair Bolsonaro”.

A investigação aponta que fotos do item foram enviadas por Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, para um contato cadastrado em sua agenda como “Pr Bolsonaro Ago/21” em 16/11/21, ainda durante a viagem ao Bahrein.

Cid também enviou ao mesmo contato outra foto, do certificado do relógio, indicando que a peça era original de uma loja daquele país, ainda conforme a PF.

Esculturas folheadas a ouro

Segundo a PF, Bolsonaro recebeu, em novembro de 2021, uma escultura de barco folheada a outro em um seminário com empresários árabes e brasileiros no Bahrein.

A outra escultura, também folheada a ouro, mas em formato de palmeira, não teve a origem identificada.

As duas peças recebidas por Bolsonaro como presentes oficiais também foram levadas no voo oficial para Orlando, antes de o ex-presidente concluir seu mandato.

Dali, os itens foram encaminhados para lojas especializadas nos estados americanos da Flórida, Nova York e Pensilvânia, “para serem avaliados e submetidos à alienação, por meio de leilões e/ou venda direta”.

Segundo a PF, mensagens de Mauro Cid indicam que os objetos foram avaliados com valores baixos porque eram apenas “folheadas”, e não de ouro maciço.

Não há menção na investigação quanto ao valor das peças em reais.

Rolex e joias

Em viagem oficial à Arábia Saudita, em outubro de 2019, Bolsonaro recebeu um kit com: anel, abotoaduras, um rosário islâmico (“masbaha”) e um relógio da marca Rolex, de ouro branco com diamantes.

Foi um presente pessoal do rei da Arábia Saudita, Salman bin Abdulaziz Al Saud, ao ex-presidente.

Esse Rolex foi, segundo a PF, negociado junto com o relógio Patek Philippe por US$ 68 mil (R$ 346.983,60 na cotação da época).

A PF não estimou o valor dos outros itens em seu relatório.

Segundo os investigadores, esse kit também foi transportado no último voo oficial de Bolsonaro como presidente, em dezembro de 2022.

Mas acabou desmembrado por seus assessores: o relógio foi vendido a uma empresa especializada, e as joias, entregues para venda em outra.

Assim como o kit da Chopard, esse kit teve que ser “resgatado” por aliados de Bolsonaro após decisão do TCU, em março, que determinou que eles teriam que ser devolvidos ao governo federal.

Segundo a PF, essa “operação de resgate” envolveu novamente Mauro Cid — e também Frederick Wassef, amigo de Bolsonaro e ex-advogado dele.

A recompra teria acontecido em uma loja localizada no complexo Seybold Jewelry Building na cidade de Miami, na Flórida.

“Primeiramente o relógio Rolex DAY-DATE, vendido para a empresa Precision Watches, foi recuperado no dia 14/03/2023, pelo advogado Frederick Wassef, que retornou com o bem ao Brasil, na data de 29/03/2023. No dia 02/04/2023, Mauro Cid e Frederick Wassef se encontraram na cidade de São Paulo, momento em que a posse do relógio passou para Mauro Cid, que retornou para Brasília/DF na mesma data, entregando o bem para Osmar Crivelatti, assessor do ex-presidente Jair Bolsonaro”, diz a PF em seu relatório.

Segundo a investigação, Cid chegou ao Brasil em 28 de março com as joias, e Wassef, no dia seguinte, com o Rolex.

O kit foi remontado e entregue em uma agência da Caixa Econômica Federal, em Brasília, em 4 de abril de 2023.

A PF lembra que, no caso do relógio Patek Philippe, ele não havia sido registrado, portanto, não foi necessária a mesma “operação de resgate” para “recuperar o referido bem, pois, até o presente momento, o Estado brasileiro não tinha ciência de sua existência.”

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Frederick Wassef foi um dos alvos da operação da PF

Segundo a PF, Bolsonaro, assim como outros investigados, são suspeitos de “desviar presentes de alto valor recebidos em razão do cargo pelo ex-Presidente da República e/ou por comitivas do governo brasileiro, que estavam atuando em seu nome, em viagens internacionais, entregues por autoridades estrangeiras, para posteriormente serem vendidos no exterior”.

A investigação apontou, além disso, que os montantes obtidos dessas vendas eram convertidos em dinheiro em espécie e ingressavam no patrimônio pessoal do ex-presidente por meio de intermediários e sem utilizar o sistema bancário formal, visando ocultar a origem, localização e propriedade dos valores.

Uma troca de mensagens em janeiro deste ano por Mauro Cid e Marcelo Câmara, assessor especial da Presidência da República, incluiu um áudio no qual Cid faz alusão a 25 mil dólares que pertenceriam a Bolsonaro.

“Tem vinte e cinco mil dólares com meu pai. Eu estava vendo o que era melhor fazer com esse dinheiro, levar em ‘cash’ aí. Meu pai estava querendo inclusive ir ai falar com o presidente. (…) E aí ele poderia levar. Entregaria em mãos. Mas também pode depositar na conta (…). Eu acho que quanto menos movimentação em conta, melhor, né?”, diz Cid.

A investigação da PF mostrou também, a partir da análise de mensagens no WhatsApp, que Mauro Cid teve a ajuda do seu pai, o general da reserva Mauro Cesar Lourena Cid, para negociar os itens e repassar o dinheiro das vendas.

Uma das evidências disso, segundo a PF, é reflexo dele em uma foto da caixa de uma das esculturas folheadas a ouro que não foi vendida.

Lourena Cid é amigo pessoal de Bolsonaro. Os dois se formaram juntos na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman). Durante o governo Bolsonaro, Lourena Cid ocupou um cargo na Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (ApexBrasil).

Mais joias

Também na última sexta-feira, uma investigação paralela sobre outras joias — também dadas pela Arábia Saudita — que corria na Justiça Federal paulista, foi enviada ao STF a pedido do Ministério Público Federal (MPF) de São Paulo.

Essa investigação foi aberta em maio deste ano, após a apreensão de um conjunto formado por colar, anel, relógio e brincos de diamantes pela Receita Federal no aeroporto internacional de Guarulhos, em São Paulo.

As joias seriam presentes para a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro.

Os itens foram encontrados na mochila de um assessor do então ministro de Minas e Energia Bento Albuquerque.

Como não foram declaradas, as peças acabaram confiscadas.

Pela lei, todo bem avaliado em mais de R$ 5 mil (US$ 1.000) deve ser declarado na chegada ao país.

Segundo o MPF, o caso sob investigação em São Paulo tem ligação com os fatos em análise no STF.

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Reflexo de Mauro Cesar Lourena Cid em caixa de escultura folheada a ouro

Outro lado

A defesa de Jair Bolsonaro afirmou, em nota, que o ex-presidente “jamais apropriou-se ou desviou quaisquer bens públicos” e que coloca sua movimentação bancária à disposição das autoridades.

Também afirmou que ele “voluntariamente” pediu ao TCU (Tribunal de Contas da União) em março deste ano a entrega de joias recebidas “até final decisão sobre seu tratamento, o que de fato foi feito”.

À GloboNews, o advogado criminalista Cezar Roberto Bittencourt, responsável pela defesa do tenente-coronel Mauro Cid, disse que o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro é um “grande injustiçado” na investigação da PF. Ele disse que ajudantes militares como Cid cumprem “ordens ilegais e injustas” dos chefes por causa da “obediência hierárquica”.

A jornalistas, nesta terça-feira (15/8), Wassef disse que sua viagem aos EUA teve “fins pessoais”.

Ele acrescentou que comprou o Rolex com dinheiro vivo, “do meu banco”, e declarou a transação à Receita Federal.

“Comprei o relógio, a decisão foi minha, usei meus recursos, eu tenho a origem lícita e legal dos meus recursos”, afirmou.

Na entrevista, ele disse ainda que o objetivo da compra era “devolvê-lo à União, ao governo federal do Brasil, à Presidência da República, e isso inclusive por decisão do Tribunal de Contas da União”.

Segundo o advogado, o pedido de compra não partiu de Bolsonaro ou de Cid. Ele se recusou a informar para quem entregou o relógio.

“O governo do Brasil me deve R$ 300 mil”, acrescentou Wassef, mostrando um recibo de compra de US$ 49 mil.

Ele justificou o pagamento em dinheiro vivo para conseguir um “desconto”. “Consegui US$ 11 mil dólares (de desconto). Se comprasse com cartão de crédito, pagaria no Brasil com 5% de IOF.”

A BBC News Brasil não conseguiu localizar a defesa de Osmar Crivelatti.