- Author, Andrew Benson
- Role, Escritor-chefe de Fórmula 1
Numa manhã quente e ensolarada de primavera, um ano e oito dias antes do acidente que tiraria sua vida, Ayrton Senna estava rodeado por jornalistas no paddock de Ímola.
Cerca de cinco minutos depois de sair de sua McLaren após o primeiro treino para o Grande Prêmio de San Marino de 1993, o brasileiro explicava sua chegada tardia à Itália, naquela manhã, em um vôo noturno saindo de São Paulo.
Com o macacão vermelho tirado dos ombros e amarrado na cintura, Senna estava cercado.
As perguntas continuavam e, com o passar do tempo, um jovem jornalista em sua primeira cobertura do Grande Prêmio aprendia, da maneira mais difícil, um dos principais desafios de um “quebra-queixo”.
Atrás de Senna, segurando um gravador por cima do ombro do piloto, o braço completamente esticado do repórter começou a cansar e a ficar dolorido.
O que fazer? Bastante espremido, não era possível tirar o braço e trocar o gravador de mãos, ou perderia a entrevista. Mas o desconforto só aumentava.
Até que ele tomou uma decisão. Com cuidado, apoiou o braço o mais levemente possível no ombro do maior superastro que a Fórmula 1 já tinha tido até ali — e que provavelmente já teve.
Senna não sabia que o jornalista sabia que não deveria fazer aquilo e que se sentiu péssimo. Ele poderia ter recuado, movido ou ter reclamado da invasão do seu espaço pessoal. Vários pilotos atuais de F1 certamente o fariam.
Mas ele não. Ignorou, como se não estivesse acontecendo; ficou imóvel como um iogue, tolerando a grosseria, aparentemente alheio a ela, até que todas as perguntas fossem feitas. Agradeceu educadamente a todos e entrou no caminhão da McLaren.
Aquele jornalista é este que aqui escreve. E naquela manhã Senna deu uma pequena demonstração do lado generoso, suave e gentil de um homem que, em outros momentos, poderia ser a personificação da firmeza, acidez, agressividade e do desejo cego e insaciável.
A luz e a sombra
Por qual motivo Senna conversava com a imprensa após o primeiro treino, algo incomum? Isso revela outro lado dele.
A McLaren usava motores Ford, na época, após a Honda cancelar a parceria no final de 1992. E Senna, frustrado com a falta de potência em relação ao motor Renault da Williams, carro e motor que ele cobiçava, estaria competindo num acordo por corrida.
Ele já havia vencido duas das três primeiras corridas de maneira brilhante, mas sabia que a Williams acabaria atingindo seu potencial e suas esperanças de título desapareceriam, a menos que algo fosse feito em relação ao motor que ele usava.
O que se dizia era que ele havia concordado em correr em Ímola no limite do prazo, por isso a chegada tao em cima, e aproveitou a entrevista para protestar contra a injustiça de tudo.
O subtexto era como ele, Senna, poderia estar em tal situação?
O que ele realmente queria era uma Williams-Renault — em meados de 1992 ele até se ofereceu para competir de graça para eles, mas Alain Prost, cujo contrato continha uma cláusula de “não Senna”, já havia sido contratado.
Na falta disso, Senna queria o motor Ford de fábrica e estava fazendo de tudo para consegui-lo — o que estava, por contrato, reservado à Benetton.
Senna estava fazendo política, usando seu status para pressionar e tentar melhorar sua situação. Mas dentro disso, havia uma sensação de direito.
A mesma mentalidade que, três anos antes, no Grande Prêmio do Japão, o levou a empurrar deliberadamente a Ferrari de seu arquirrival Prost para fora da pista na primeira curva, a 250 km/h, pois estava irritado com a recusa dos organizadores em mover sua pole position para o lado mais limpo da pista.
Duas semanas depois, Senna concedeu a entrevista em que soltou uma frase que se tornou icônica: “Estamos competindo para vencer, se não disputarmos nas brechas não seremos mais pilotos!”.
Ela foi citada muitas vezes ao longo dos anos como uma ilustração pura da filosofia agressiva de corrida de Senna. Mas as pessoas esquecem que Senna estava dissimulando quando disse isso.
O entrevistador Jackie Stewart — tricampeão, que não poderia ser ignorado — o pressionou sobre o incidente com Prost, e Senna não gostou. O fato é que ali não houve brecha — e Senna sabia disso.
Um ano depois, ele admitiu que havia jogado Prost para fora da pista deliberadamente, em retaliação aos acontecimentos em Suzuka, um ano antes, em 1989, quando teve sua vitória retirada pelo líder do automobilismo Jean-Marie Balestre em circunstâncias duvidosas, após uma colisão com Prost, numa decisão que deu o título mundial para o francês.
Este era o lado mais sombrio de Senna — um homem que ia a extremos, e às vezes exibia uma moral questionável, para conseguir o que queria e o que sentia que merecia.
O fascínio da complexidade
Esse era Senna. Seu apelo, o fascínio mundial por ele, reside não apenas no talento surpreendente, mas também na profundidade e na complexidade de sua personalidade. Sim, ele foi um dos maiores pilotos de corrida que o mundo já viu. Talvez o maior. Mas era muito mais do que isso.
Ele tinha um carisma tão convincente que poderia silenciar uma sala. Era magnético de se ouvir. Imensamente inteligente, ele era um filósofo disposto a fornecer uma janela aos perigos de sua profissão, seu próprio senso de mortalidade e como isso o afetava.
“Você está fazendo algo que ninguém mais é capaz de fazer”, disse ele certa vez.
“(Mas) no mesmo momento em que você é visto como o melhor, o mais rápido e alguém que não pode ser alcançado, você fica extremamente frágil. Porque em uma fração de um segundo, acabou.
“Esses dois extremos são sentimentos que você não sente todos os dias. Todas essas são coisas que contribuem para, como posso dizer, me conhecer cada vez mais profundamente. Essas são as coisas que me fazem continuar.”
Nenhum outro piloto jamais falou de tal forma, sobre esse assunto, com tanta eloquência.
A morte também tem seu papel na iconografia. Quando Senna morreu em Ímola, em 1994, com seu capacete perfurado por um braço da suspensão ao bater na parede da curva Tamburello, ele foi congelado no tempo, aos 34 anos.
A idade acrescentara algumas rugas ao redor de seus olhos escuros, mas não diminuíra sua aparência de estrela de cinema — sua vida virará uma cinebiografia produzida pela Netflix. E sua forma de pilotar era incomparável, como sempre tinha sido.
As grandes corridas
Pouco menos de duas semanas antes da entrevista naquela manhã na região de Emilia-Romagna, na Itália, em 1993, Senna tinha feito sua melhor corrida.
Este jornalista também estava lá, desta vez como espectador, sob a chuva gelada da chicane de Donington Park, esperando os carros na primeira volta do Grande Prêmio da Europa.
Como sempre nas corridas de F1 britânicas da época, os comentários do circuito eram quase inaudíveis.
Não havia internet ou smartphones para transmitir notícias ao vivo. Eu não tinha um rádio. Mas quando o barulho dos carros na primeira volta começou, um burburinho surgiu na multidão. Algo especial acontecia.
Quando os carros surgiram e contornaram a chicane, Senna, que havia largado em quarto, já estava em segundo e, logo atrás da Williams do líder Prost, nitidamente prestes a ser o primeiro.
Senna tinha acabado de fazer uma das melhores voltas iniciais já vistas e, em seguida, desapareceu na distância.
Senna fez muito isso. São muitas excelentes corridas para se mencionar todas. Ele se destacou como verdadeiramente especial desde muito cedo.
Em 1984, ele deveria ter vencido sua sexta corrida, o Grande Prêmio de Mônaco. Em um Toleman, ele estava alcançando a McLaren líder de Prost debaixo de uma chuva torrencial e estava logo atrás quando a corrida foi cancelada já na metade.
No ano seguinte, sua primeira vitória, no Grande Prêmio de Portugal de 1985, foi uma das maiores corridas sob chuva da história, na qual terminou um minuto à frente da Ferrari de Michele Alboreto e pelo menos uma volta à frente de todos os outros.
Naquele ano, seu Lotus não era o carro mais rápido, mas Senna conquistou sete pole positions em 16 corridas.
Com mais um desempenho impressionante, indo para a McLaren em 1988, ele garantiu seu primeiro título em Suzuka, no Japão. Após cair para 14º após uma largada ruim, ele alcançou e ultrapassou Prost, então seu companheiro de equipe, debaixo de chuva.
E depois teve o Brasil em 1991, quando ele concorreu com a Williams mais rápida de Ricciardo Patrese, com pneus slick e com chuva ao final da corrida, mesmo com um carro preso na sexta marcha.
Ao final daquela corrida, Senna estava tão exausto que não conseguiu sair do carro sem ajuda. No pódio, ele mal pôde erguer o troféu para homenagear os adorados torcedores brasileiros, que o reverenciavam como uma espécie de semideus.
Até o limite – e além
Senna foi um homem que, sem dúvida, dedicou-se a seu esporte com mais intensidade, e deu mais de si na busca incessante pelo sucesso, do que qualquer outro na história.
A transparência do quanto isso significava para ele era outra parte do apelo poderoso de Senna, mas pode ter sido o que o arruinou.
Provavelmente nunca se saberá exatamente o que aconteceu em Ímola no dia 1 de Maio de 1994. A coluna de direção do carro partiu-se no acidente. Teria quebrado antes? Sua equipe, a Williams, disse que não. Seus chefes técnicos, Patrick Head e Adrian Newey, acabaram sendo absolvidos após um longo e demorado processo na Itália.
Eles sempre argumentaram que o acidente foi causado por uma combinação de fatores: pelo travamento do difusor roubando o downforce de seu carro, quando Senna passou por cima de lombadas na curva Tamburello a 300 km/h, fazendo uma curva mais apertada do que na volta anterior, com baixa pressão nos pneus após, tentando ficar à frente do Benetton mais veloz de Michael Schumacher. Damon Hill, seu colega de equipe na época, diz que também acredita nisso, tendo visto todos os dados do carro.
Senna morreu acreditando que o carro de Schumacher era ilegal no início daquele ano. Pode ter sido – foi encontrado software ilegal nele, embora haja prova de que o mesmo tenha sido usado. De qualquer forma, o Benetton certamente era mais rápido. Mas de alguma forma Senna colocou o difícil e imprevisível Williams FW16 na pole position nas três primeiras corridas do ano.
Head e Newey sempre defenderam que foi mérito de Senna, não do carro. A vantagem média dele de ritmo sobre Hill nessas sessões de qualificação foi de impressionantes 0,922 segundos. Na primeira corrida da temporada no Brasil, tentando em vão ficar junto a Schumacher, Senna havia ultrapassado Hill logo após a metade da distância.
Até o fim ele foi ultrapassando os limites, forçando os carros a serem mais rápidos do que qualquer outra pessoa conseguiria, alcançando coisas que não deveriam ter sido possíveis, mas que de alguma forma tornou possíveis.
É por isso que, 30 anos depois, seu espírito e memória seguem tão fortes quanto sempre estiveram nos corações e mentes de todos que sabem alguma coisa sobre Fórmula 1. E sempre seguirão.
Fonte: BBC
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