- Rebecca Thorn
- BBC 100 Women
Atenção: esta reportagem contém descrições de violência sexual.
“Mano morta” (“mão morta”, em italiano) é um objeto de discussão entre mães e filhas. Grupos de amigas também se queixam sobre ela nas suas conversas e meninas adolescentes são aconselhadas a manter-se vigilantes quando vão à escola.
Mas a mão morta — ou mão-boba, como chamamos em português — não é uma lenda urbana. É uma forma de abuso sexual, mais comumente praticada contra as mulheres. Ela descreve a mão dissimulada que incontáveis mulheres já encontraram tocando partes íntimas do corpo em um ônibus ou trem lotado.
A mão-boba indica precisamente esse comportamento intencional. Mulheres de todo o mundo podem também ter sofrido essa mesma forma de abuso, sem que tivessem uma expressão no seu idioma para designá-la.
Em inglês, três expressões vêm sendo cada vez mais usadas para descrever diferentes formas de abuso: gaslighting, upskirting e love bombing.
Gaslighting é o ato ou a prática de ludibriar alguém grosseiramente, para seu próprio benefício. O termo foi considerado a palavra do ano pelo dicionário Merriam-Webster, depois que as buscas no site do dicionário aumentaram em 1740% em 2022. No TikTok, a hashtag #gaslighting teve 1,9 bilhão de visualizações.
Upskirting designa a prática de fotografar mulheres por debaixo de suas saias ou vestidos, sem consentimento. Já love bombing (literalmente, “bombardeio de amor”) define a tentativa de influenciar ou manipular alguém com excessivas demonstrações de afeto. A hashtag #lovebombing atingiu quase 250 milhões de visualizações no TikTok em 2022.
“Se observarmos quando essas palavras entraram no idioma [inglês] para descrever a experiência das mulheres, em termos de violência sexual ou outras formas de sexismo, foi quando o feminismo tornou-se um grande movimento social”, afirma Alessia Tranchese, professora sênior de comunicação e linguística aplicada da Universidade de Portsmouth, no Reino Unido. Ela pesquisa como a violência contra a mulher pode ser perpetuada pela linguagem.
Tranchese estuda como novas palavras cunhadas para descrever formas de abuso existentes servem para questionar a violência de gênero.
“Poderíamos dizer que o idioma reflete as relações desiguais entre homens e mulheres e é um lugar onde essas relações podem ser postas em prática e recriadas”, afirma ela.
Mas será que a introdução de novos termos pode realmente combater os abusos enfrentados pelas mulheres em todo o mundo?
Como parte do especial BBC 100 Women, que todos os anos destaca 100 mulheres inspiradoras e influentes ao redor do mundo, a BBC conversou com três mulheres que vêm — literalmente — tomando a palavra para descrever abusos e assédio sexual no Reino Unido, no Oriente Médio e na América do Sul.
Quando a série britânica I May Destroy You, da atriz e roteirista Michaela Coel, chegou às telas da TV em 2020, seu sucesso entre os críticos foi imediato.
Mas a série premiada, que acompanha a jornada de uma mulher após ter sofrido abuso sexual, trouxe ramificações além do mundo dos críticos de TV. Seus reflexos atingiram o mundo real, a quase 20 mil quilômetros de distância.
A parlamentar chilena Maite Orsini, de 34 anos de idade, ficou chocada com uma cena específica, na qual a protagonista Arabella fica sabendo que um homem retirou o preservativo sem o seu consentimento durante um encontro sexual. Ela depois descobre que a retirada não consensual do preservativo (stealthing, em inglês), é classificada como estupro no Reino Unido, Alemanha, Canadá e no Estado da Califórnia, nos EUA.
“Eu não sabia que isso realmente é abuso sexual e acho que compreendi quando vi ilustrado na série”, afirma Orsini, que é advogada com mestrado em segurança pública.
Como o stealthing não era considerado crime no Chile, não havia estatísticas oficiais sobre o número de casos. Mas, à medida que Orsini falava com outras amigas, conhecidas e colegas, ficava claro que era um problema que transcendia fronteiras — e as vítimas não tinham proteção legal para ajudá-las.
Ela decidiu que o stealthing precisava ser incluído na legislação chilena e começou a redigir um projeto de lei.
“Tivemos um longo debate para encontrar uma palavra em espanhol para indicar stealthing, mas me recusei a fazer isso”, relembra a parlamentar. “Eu queria que as vítimas pudessem reconhecer que o conceito está sendo usado lá fora [em inglês] e elas poderiam entrar na internet e encontrar as informações necessárias.”
O projeto de lei de Orsini sobre o stealthing foi aprovado na Câmara dos Deputados do Chile em janeiro e seguiu para avaliação pelo Senado. O projeto criminaliza o stealthing, que se torna uma forma de abuso sexual passível de punição.
Sua aprovação pode ser considerada uma mudança na forma em que as mulheres estão reivindicando o poder sobre a linguagem, segundo Tranchese.
“Se você pensar em objetos como dicionários — quem faz os dicionários? Historicamente, são os homens”, argumenta ela. “Não se permitia que as mulheres fossem escritoras, advogadas ou médicas. O conhecimento, o processo de elaboração do significado, era prerrogativa dos homens.”
Orsini concorda sobre o papel central que a linguagem pode desempenhar para as mulheres que passaram por abusos.
“Acho que dar nomes aos comportamentos que não eram identificados anteriormente pode levar as pessoas a reconhecer-se como vítimas”, afirma ela.
“Eu queria que o stealthing fosse incluído no código penal, para criar a consciência de que esse crime existe e para que as mulheres e meninas saibam que, quando forem vítimas desse tipo de comportamento, ele está sancionado na nossa legislação e elas podem denunciá-lo”, defende Orsini.
Downblousing
A linguagem também está sendo usada para captar como as mulheres se sentem cada vez mais inseguras nos espaços públicos, segundo a ex-ministra da Justiça da Irlanda do Norte, Naomi Long. Ela propôs uma nova lei sobre abusos sexuais, que foi aprovada em março.
Long é uma das mulheres incluídas na lista BBC 100 Women. Em 2022, o especial da BBC está homenageando os progressos que foram atingidos desde a sua criação, 10 anos atrás.
A lei incluiu uma série de novos termos em inglês. Um deles é downblousing — criado para definir o ato de tirar fotos do decote de alguém visto de cima, sem consentimento.
“É um tipo muito específico de abuso”, segundo Long. “É uma tentativa de humilhar e rebaixar a mulher, causando medo.”
Ela afirma que, até então, o crime não era mencionado especificamente na legislação, o que dificultava para as vítimas e a polícia entender o que podia ser feito.
“Pode ser muito angustiante saber que você passou por uma violação da sua privacidade”, prossegue Long. “Causa ansiedade e humilhação, mas você procura a polícia e eles não têm certeza de que aquilo é crime.”
O próprio idioma e as conotações de gênero da palavra inglesa downblousing foram parte da discussão, segundo ela.
“Discutimos um pouco se deveríamos usar ‘blouse‘ (blusa), ‘shirt‘ (camisa) ou ‘top‘, mas houve alguma discussão sobre o uso ou não de referências a seios ou peito”, afirma Long.
“Achei que seria importante reconhecer que as pessoas não andam por aí tentando tirar fotos de homens em camisas”, explica ela. “Isso simplesmente não está acontecendo, não é um problema.”
A Irlanda do Norte é a primeira jurisdição do Reino Unido a tornar o downblousing uma ofensa criminal específica. A Comissão Legal convocou a Inglaterra e o País de Gales a acompanhar a decisão.
“A linguagem importa. A forma como descrevemos essas coisas importa”, afirma Long. “Ela permitirá à sociedade dar um nome a algo que ela sabe que está errado, mas muitas vezes luta para argumentar por quê.”
Como a linguagem funciona?
O trabalho da professora Lera Boroditsky é pesquisar como os humanos “ficaram tão inteligentes” e uma parte importante da resposta é a linguagem, segundo ela.
“Os idiomas são essas coisas vivas que podemos mudar para adequá-los às nossas necessidades. A realidade apresenta muitas questões fascinantes sobre como os idiomas que falamos moldam a forma como pensamos — e também como podemos tentar mudar a forma como falamos para alterar como pensam as pessoas à nossa volta”, explica Boroditsky.
A cientista cognitiva examina a relação entre a nossa mente, a linguagem e a realidade, particularmente como criamos o significado na sociedade. Ela afirma que “a forma como você descreve um evento ou acidente pode mudar dramaticamente como culpamos e punimos as pessoas envolvidas”.
Para a professora, quando consideramos o impacto de um nome ou uma palavra atribuída a um conceito em particular, também é importante examinar sua especificidade.
“No tribunal, por exemplo, costumava-se perguntar às vítimas de abuso sexual ‘e foi aí que ele beijou você?’ Beijar é algo muito bom para a maioria das pessoas, mas não quando se trata de contato oral forçado com um estranho”, explica a professora.
Boroditsky prossegue: “Mas, se você chamar de ‘contato oral forçado’, isso cria uma imagem muito diferente na mente do júri — essa especificidade gera uma reação emocional diferente de uma palavra que é mais familiar ou genérica.”
Estupro conjugal
Diariamente, Lamya Lotfey testemunha os abusos enfrentados pelas mulheres no Egito — incluindo os casos de estupro conjugal, que frequentemente não são denunciados.
“E o problema é que as próprias mulheres podem não perceber que este é um ato violento contra elas”, afirma ela.
Chefe de programas da organização egípcia New Women Foundation, Lotfey comparece a sessões de mediação e fornece abrigo seguro para mulheres que sofreram abuso.
Um relatório de 2018 da Organização Mundial da Saúde (OMS) demonstrou que, no Egito, 30% das mulheres casadas ou que vivem com um parceiro com 15 a 49 anos de idade sofrem violência física ou sexual do seu parceiro íntimo ao longo da vida.
A maioria das vítimas de estupro conjugal nem mesmo se identifica como tal. “Para quem elas irão denunciar e sobre o quê?”, questiona ela.
Os homens condenados por estupro no Egito podem enfrentar prisão perpétua ou até a pena de morte, mas o estupro conjugal não está incluído no código penal do país.
A organização de Lotfey ajudou a redigir um projeto de lei que indica especificamente o estupro conjugal. É a segunda vez que a proposta foi apresentada ao parlamento e ela aguarda pacientemente sua discussão em plenário.
“O estupro é rejeitado e punido na sociedade e é por isso que existe resistência ao uso do termo em relação aos relacionamentos conjugais”, afirma Lotfey. “Quando você rotular como ‘estupro conjugal’, a condenação do homem será imediata. Eles estão tentando desvincular o termo dos homens.”
Ela afirma que as limitações do idioma vão além da elaboração das leis e permeiam as conversas diárias.
A expressão aghtesab zawgy (“estupro conjugal”) começou a ser usada pelos defensores dos direitos humanos no Egito nos anos 1980, mas permaneceu confinada a uma minoria, segundo Lotfey.
Mas, lentamente, as coisas estão começando a mudar. Ela credita o progresso à série de TV Newton’s Game, de 2020, que apresenta uma cena em que uma mulher é estuprada pelo marido.
“Foi nesse momento que percebi as mulheres me dizendo, ‘isso aconteceu conosco'”, ela conta. “Algumas começaram até a usar a expressão aghtesab zawgy. Algumas me disseram, ‘então, se dissermos que isso está acontecendo conosco, eles irão nos levar a sério?’ Mas, antes disso, eu era silenciada ou ignorada, como se isso não existisse.”
A linguista Alessia Tranchese indica o papel de união da linguagem, que pode ajudar a criar um sentido de comunidade por identificação.
“Acho que ter essas palavras ofereceu às mulheres a capacidade de ver que suas experiências não são casos isolados — ‘isso é algo que ele fez para mim uma vez’ — mas sim parte de uma questão sistêmica maior que afeta muitas mulheres”, afirma ela.
“Dar um nome deixa mais óbvio que é uma experiência comum.”
*Com reportagem adicional e produção de Inma Gil, Valeria Perasso e Sara Abou Bakr. Ilustração principal de Ghazal Farkhari (@rasmorawaj).
Esta reportagem faz parte do especial BBC 100 Women, que todos os anos destaca 100 mulheres inspiradoras e influentes ao redor do mundo.
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