- Giulia Granchi
- Da BBC News Brasil em São Paulo
Em 2010, Picasso Rodrigues, na época com 38 anos, saiu com amigos para uma lanchonete em Maringá, no Paraná, para comemorar a promoção que havia conseguido na empresa de telefonia onde trabalhava.
“Dei dinheiro para um guarda ficar de olho no meu carro e fui tranquilo. Quando voltei para ir embora, levei uma pancada na cabeça e não lembro de mais nada.”
Picasso foi encontrado no dia seguinte, no canteiro de uma obra, com o rosto completamente desfigurado por politraumatismo facial, que parecia ter sido causado por um ataque violento com uma pedra.
“Os pedreiros me encontraram sem sinais vitais aparentes. Eu perdi parte da audição do ouvido esquerdo e da minha visão, hoje não tenho mais a capacidade de perceber detalhes como as características do rosto de alguém em uma distância a partir de dois metros. Além disso, fiquei sem olfato e paladar permanentemente”, revela.
Picasso passou por 22 cirurgias e ficou internado no hospital durante três meses.
“Todo mundo quer saber de você nos primeiros dias. Depois que passam várias semanas, só a família mesmo. Não que eu não tivesse bons amigos, mas a própria rotina consome as pessoas”, diz ele.
“Quando eu finalmente saí do hospital, tinha dificuldade para caminhar, e, como não podia dirigir por não enxergar direito, não conseguia mais trabalhar no mesmo emprego. Eu não podia voltar a ser quem eu era, precisava ressignificar minha vida.”
Foi quando Picasso passou a reconsiderar um sonho antigo, de infância, de se tornar médico.
“Esse desejo me assustou um pouco, nem a molecada afiada conseguia passar no vestibular, que é muito concorrido, e eu já tinha 39 anos na época.”
Inscrito em um cursinho, ele ficou quatro anos seguidos se dedicando aos estudos para o vestibular.
“A partir do segundo ano, eu passei para algumas universidades, mas meu objetivo era estudar na PUC Curitiba, então segui batalhando. Mas depois de algum tempo, decidi fazer a inscrição na UNOESC (Universidade do Oeste de Santa Catarina). Cursei alguns meses, e no mesmo ano, fui visitar minha mãe em Maringá. Ela me incentivou a tentar entrar na universidade que era minha primeira escolha.”
Picasso conseguiu uma vaga na PUC de Londrina, mais perto da mãe, em Maringá — mas, no ano seguinte, ela faleceu.
“Um cardiologista que era coordenador do curso me ajudou a fazer a transferência para a unidade de Curitiba em janeiro de 2018. Aí eu pude dizer que realizei completamente meu projeto de vida.”
Uma nova cirurgia
Durante os dois últimos anos de medicina é comum que os alunos de medicina fiquem mais focados na experiência prática, passando por diferentes especialidades.
“Quando fiquei trabalhando na área de otorrinolaringologia, fiz amizade com as residentes, e depois de algum tempo, elas perguntaram o que tinha acontecido com o meu rosto — que ainda era bastante deformado.”
Depois de algum tempo, as médicas disseram que se ele aceitasse, a PUC e o Hospital Universitário Cajuru, onde a equipe trabalhava, gostariam de reconstruir esteticamente sua face.
“Em janeiro de 2022, uma cirurgia extensa, de nove horas, foi feita pelo meu professor e minhas amigas no hospital em que estou me tornando médico, que é parceiro da universidade em que sempre sonhei entrar. Significou muito.”
Gabriel Buco, professor de Picasso, é responsável pela área de cirurgia crânio-facial dentro do departamento de otorrinolaringologia — e conta alguns detalhes sobre o procedimento.
“Ele tinha várias placas de cirurgias antigas infeccionadas e gerando rejeição, que estavam comprometendo a função do rosto. Como ele teve múltiplas fraturas, quem tentou reconstruir inicialmente colocou placas sem o osso [que já era inexistente] por baixo, deixando o nariz sem formato.”
O cirurgião conta que a face foi novamente aberta, as placas antigas foram retiradas, e uma vasta limpeza com soro fisiológico e antibióticos foi feita dentro do rosto dele.
Para a reconstrução, foi usado o material mais biocompatível possível: um enxerto ósseo [parte do osso de outro local do corpo].
“Em casos de reconstrução de face, um bom material é a cartilagem da costela. Focamos não só na estética, mas em toda a funcionalidade do nariz — e fizemos uma reconstrução completa”, explica Buco.
Como aluno, ele afirma que Picasso é muito perseverante apesar de sua dificuldade aumentada por conta dos traumas que sofreu na face.
“Ainda assim ele consegue superar, em muito, a média dos estudantes”, afirma.
Depois da cirurgia, Picasso diz ter recuperado parte da sua autoestima perdida no ataque.
“Eu olhava no espelho e não me reconhecia. Hoje vivo procurando espelhos.”
O futuro como médico
Em menos de um mês, Picasso vai se tornar médico.
“Não foi fácil fazer faculdade na minha idade, com as limitações que eu tenho… Mas quando eu lembrava o que havia me levado até ali, tudo fazia sentido.”
No início do curso, o desejo era se tornar psiquiatra.
“Foram três as pessoas que me agrediram, mas [de acordo com as investigações], só uma quase me matou. Eu entrei na faculdade para entender o que seria um psicopata, mas no decorrer das aulas, aprendi outras coisas pelas quais me apaixonei”, conta.
Ele decidiu se tornar médico de família e comunidade para “atender no postinho mesmo, da criança à vovó, conhecer a realidade de cada um, e ajudar não só na saúde física, mas no espectro social daquelas pessoas”.
“O que me realiza é que, pelo fato de eu ter ficado no hospital, e agora estar na beira do leito, eu entendo que posso levar alguma esperança. Meus amigos falam: ‘Você vai para o hospital e volta sorrindo’. Não é que eu não tenha sensibilidade, mas me alegra poder contribuir.”
Picasso diz contar sua história aos pacientes sempre que tem a oportunidade.
“Eu vejo que isso inspira as pessoas. Muitos pensam: ‘Esse cara ficou todo bagunçado e conseguiu realizar um sonho. Acho que dá para mim também’.”
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