- Margarita Rodríguez
- BBC News Mundo
O que aconteceu naquele Natal de 1914 foi único, “maravilhoso e estranho ao mesmo tempo”, como descreveu um soldado alemão que viveu o episódio.
Alguns meses antes do início da Primeira Guerra Mundial, alemães, franceses e britânicos lutavam nas frentes de batalha na Bélgica e na França.
Mas algo incrível aconteceu em alguns pontos da Frente Ocidental, em uma área conhecida como ‘Terra de Ninguém’.
“Estávamos na linha de frente, a cerca de 270 metros dos alemães e na véspera de Natal cantávamos canções natalinas e os alemães também”, contou anos depois o soldado britânico Marmaduke Walkinton.
“Estávamos gritando coisas um para o outro, alguns eram insultos, mas na maioria das vezes eram piadas.”
“E um alemão disse: ‘Amanhã não atirem, nós não atiraremos’.”
O testemunho de Walkinton faz parte de um vídeo, do Museu Imperial da Guerra do Reino Unido (IWM), intitulado: The Christmas Truce: O que realmente aconteceu nas trincheiras em 1914? (A Trégua de Natal: O que realmente aconteceu nas trincheiras em 1914?).
Esta organização, que possui um extraordinário acervo de cartas, fotos, diários, jornais e testemunhos daquela época, tem se dedicado a investigar o que aconteceu durante aquela trégua de Natal.
Com a ajuda do historiador Alan Wakefield, diretor da seção do museu dedicada à Primeira Guerra Mundial e ao início do século XX, mergulhamos nessa história em que um grupo de soldados não apenas baixou espontaneamente as armas, mas também trocou presentes com seus inimigos e tinha até quem jogava futebol.
Os dias anteriores
Milhares de soldados de várias unidades da Frente Ocidental participaram desta cessação informal de fogo.
Embora essa trégua não oficial também envolvesse alguns soldados franceses e belgas, foi principalmente entre britânicos e alemães.
Nos Campos de Flandres (Bélgica) estavam os militares que iriam protagonizar o encontro histórico.
Eles estavam em uma área propensa a inundações. “O clima, os combates e a construção de trincheiras destruíram o sistema de drenagem”, diz Wakefield.
Tinha chovido muito, estava nebuloso, estava frio. “Viver nas trincheiras tornou-se muito difícil para ambos os lados.”
Então, naquela área, durante o mês de dezembro, a intensidade dos combates diminuiu.
Houve uma espécie de trégua em que os militares abandonavam as trincheiras para fazer reparações e evitar inundações ou para permitir a chegada das equipes que traziam os mantimentos.
Mas também, em alguns casos, a cessação das hostilidades foi rapidamente acordada para recolher e enterrar os soldados caídos.
“Ninguém atirou um no outro.”
Aos poucos foram-se criando as condições para que se realizasse uma trégua de pequena dimensão para o Natal naquela zona.
Fraternidade
No dia 24 de dezembro fez muito frio e o que estava molhado congelou.
“Na véspera de Natal, os alemães começaram a festejar a data. Os ingleses viram luzes (de velas) e pequenas árvores acima das trincheiras alemãs e pensaram que talvez estivessem armando uma armadilha para eles”, diz o historiador.
Mas o que se tratava era uma tentativa de fazer enfeites de Natal em meio à crueldade da guerra.
Os britânicos ouviram os alemães cantarem canções natalinas.
Enquanto alguns cantaram Stille Nacht, outros fizeram o mesmo com Silent Night (música conhecida em português como ‘Noite Feliz’).
“Tudo em um tom amigável e, embora não pudessem se ver, eles estavam construindo uma atmosfera fraterna nas horas antes do Natal.”
Na manhã (de 25 de dezembro), foram principalmente os alemães que começaram a sair das trincheiras e a se mover pela ‘Terra de Ninguém’. Alguns se aproximaram das trincheiras dos britânicos e os chamaram.
E enquanto algumas unidades britânicas ficaram confusas com o que estava acontecendo, em outras, os soldados também começaram a deixar suas trincheiras para enfrentar os alemães.
Já eram centenas de soldados de ambos os lados que andavam pelo local e que começaram a conversar, sem armas, e a apertar as mãos.
Muitos voltaram para suas trincheiras e depois apareceram com produtos. Os ingleses, por exemplo, ofereciam chocolates, carne enlatada, bolos, uísque, e os alemães ofereciam cigarros, salsichas, biscoitos, conhaque.
Eles também trocaram broches de seus uniformes e jornais, e compartilharam presentes que suas famílias lhes enviaram.
Descobrir o inimigo
“Foi realmente uma oportunidade de esquercer a guerra por uma tarde”, disse Wakefield.
“É importante lembrar que no combate de trincheira, você deve estar com a cabeça baixa, então dificilmente poderá ver seu inimigo.”
“Muitos soldados estavam lutando contra um oponente que não podiam ver. Essa trégua foi na verdade uma oportunidade de ver o inimigo cara a cara, para descobrir contra quem eles realmente estavam lutando.”
E o idioma não foi um obstáculo.
“Na verdade, vários soldados alemães falavam inglês muito bem porque haviam morado no Reino Unido antes da guerra.”
E havia um grande número de alemães morando na Inglaterra, principalmente em Londres, mas, com a iminência da guerra, eles tiveram que retornar e se juntar ao exército alemão.
“Há testemunhos em que soldados britânicos disseram que alguns alemães lhes contaram que tinham sido barbeiros, garçons, empregados de hotéis, em Londres. Um deles disse mesmo que esperava regressar em breve.”
E é que, quando o conflito começou, muitos acreditavam que no Natal tudo estaria acabado.
A Trégua de Natal variou ao longo da frente de batalha.
Em outros lugares, essa fraternidade não surgiu. De fato, indica o vídeo do IWM, muitos soldados em outras seções não acreditavam que houvesse tal cessação das batalhas.
E uma bola apareceu
“Dividíamos cigarros, balas, com os alemães e de algum lugar, de alguma forma, surgiu o futebol. Não é que formamos um time, de jeito nenhum foi um jogo entre times. Estávamos todos jogando”, disse, no vídeo do IWM, Ernie William, que fazia parte de um regimento britânico.
“A bola veio do lado deles, não do nosso.”
Ele mesmo teve a oportunidade de participar. “Eu era muito bom, tinha 19 anos.”
Wakefield observa que há muito pouca evidência direta de que o futebol tenha sido jogado durante a trégua de Natal.
“No entanto, há cartas e relatos de alemães que estavam perto de uma cidade na Bélgica e de soldados britânicos em outras partes da Bélgica que dizem que jogaram futebol.”
“Obviamente, essas histórias vieram à tona em momentos diferentes. Mas é uma boa evidência de que a coisa do futebol realmente aconteceu.”
Em um relato de soldados alemães, foi dito que eles jogaram uma partida de futebol contra os escoceses e que venceram por 3-2.
Três cartas de soldados britânicos referem-se a um jogo completamente aberto, não a uma partida propriamente organizada, em que dezenas de soldados de ambos os lados correram para chutar a bola.
Há também estimativas de outros soldados britânicos que participaram da trégua aludem ao fato de que as partidas de futebol foram pelo menos planejadas, mas não possíveis por falta de bola, problemas no terreno ou porque os oficiais não deram permissão.
“Poucas partidas realmente aconteceram entre britânicos e alemães. No entanto, houve algumas partidas entre os britânicos, atrás de suas trincheiras, ao ar livre, mas há menos evidências de partidas entre alemães e britânicos.”
“Obviamente isso pode mudar, a história muda o tempo todo quando cartas e diários (pessoais) desconhecidos vêm à tona, mas agora, se você olhar para as evidências, é bastante limitado, então o número de soldados que jogaram futebol na trégua de Natal foi muito pequeno”.
“Provavelmente cerca de 200 soldados poderiam ter participado de um jogo de futebol. No momento, temos fortes indícios de que foram dois jogos.”
Na imprensa
A notícia da trégua não demorou a se espalhar.
Em janeiro, já circulavam nos jornais fotos (tiradas pelos próprios militares) e fragmentos de cartas enviadas por eles aos familiares.
“No início de janeiro de 1915, os jornais de repente começaram a imprimir essas cartas e, a princípio, houve uma certa descrença, mas com o tempo começaram a aparecer fotos também e as evidências ficaram muito claras, não era um mito”, observa o historiador Anthony Richards, autor do livro Wartime Christmas, no vídeo do IWM.
“A mídia da época adorou (a história). Houve muita discussão nos jornais sobre se isso era bom ou ruim.”
“De certa forma, foi como um instantâneo maravilhoso do Natal de 1914, quando as atitudes eram um pouco ingênuas porque a guerra havia acabado de começar.”
“Nunca aconteceu nada como a Trégua de Natal e com o tempo foi vista não só como uma anormalidade, mas também como um mito, a ponto de haver pessoas que, de fato, duvidam que isso tenha acontecido, até o dia de hoje”.
Segundo Richards, a forma como a trégua foi abordada na imprensa alemã foi muito parecida com a britânica, mas mudou nas décadas de 1920 e 1930, quando houve uma variação na narrativa porque eles queriam enfatizar o “soldado alemão como um herói lutando uma guerra nobre.”
O final
A Trégua de Natal não terminou repentinamente.
Segundo Wakefield, chegou ao fim em momentos diferentes nas diversas áreas envolvidas.
“Oficiais superiores de ambos os lados tiveram reações mistas ao que estava acontecendo.”
“Alguns deles pensaram que, se permitissem que o espírito de luta dos exércitos continuasse, ele desapareceria. Os soldados veriam que o inimigo não é realmente o inimigo e isso faria a guerra parar.”
“Mas outros comandantes seniores acreditavam que a trégua era muito útil porque permitia que as trincheiras fossem reconstruídas e que os mortos fossem enterrados. Em algumas áreas do local havia muitos cadáveres.”
O que é certo é que chegaram as ordens dos comandos superiores: era preciso recomeçar a guerra, a artilharia, as armas, tinham que voltar a funcionar, tinham que disparar contra os inimigos que tentavam sair das suas trincheiras.
No terreno, as orientações foram seguidas, mas a um ritmo diferente: as unidades que participaram na trégua tentaram dar tempo umas às outras para partir.
“Quando uma nova unidade, que não estava envolvida na trégua, chegou, a guerra começou.”
Wakefield lembra o caso de um oficial britânico que recebeu ordens de bombardear uma fazenda que os soldados alemães usavam para estocar comida.
O militar, que havia participado do cessar-fogo, achou que os alemães deveriam ser avisados sobre o ataque que aconteceria na manhã seguinte.
“Eles enviaram um soldado para garantir que não houvesse alemães na fazenda quando bombardearam.”
O historiador explica que a guerra recomeçou, mas em algumas partes bem devagar.
“Eles fizeram amigos no Natal e não queriam atirar neles.”
Em 26 de dezembro, em partes do front, o barulho da guerra voltou a ocupar o centro das atenções.
A volta à guerra
Para os militares que participaram – diz Wakefield – a trégua de Natal foi uma oportunidade de “sair” da guerra por dois, três dias, sem lutar, sem ter de viver nas condições desumanas de uma trincheira.
Muitos deles, de fato, nunca haviam ficado longe de suas famílias no Natal.
“Eles também estavam muito curiosos para ver quem eram seus inimigos.”
E naquele Natal perceberam que além daqueles que eram jovens e homens como eles, vários deles eram muito velhos.
“No entanto, aqueles soldados (de ambos os lados) ainda achavam que tinham que vencer a guerra. Portanto, não houve escrúpulos em retornar ao combate após a trégua.”
De acordo com Richards, “a trégua de Natal foi única e nada como isso aconteceu novamente nessa escala, e os motivos variam.”
Imediatamente depois disso, comandos superiores de ambos os lados garantiram que nenhuma cessação de hostilidades como aquela jamais acontecesse novamente.
“Mas, a longo prazo, a razão pela qual tréguas como essa não voltam a acontecer é porque a guerra mudou a forma como as pessoas lutam.”
“À medida que a guerra avançava, um método de comando mais centralizado foi imposto. Os que estavam na linha de frente foram forçados a atacar constantemente, com trincheiras de artilharia e morteiros.”
Além disso, diz o historiador, o conflito “tomou um rumo mais cruel”, com a introdução de gases e o aumento das vítimas civis.
E, como reflete Wakefield, a brutalidade da guerra pode ter feito com que menos soldados realmente desejassem enfrentar o inimigo.
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