- Author, Isabelle Gerretsen
- Role, BBC Future
Nos anos 1990, algumas empresas farmacêuticas começaram a usar a expressão “personalidade adictiva” — talvez ironicamente, para promover medicações anestésicas que causam dependência.
Na campanha de marketing para o opioide controlado OxyContin, por exemplo, a companhia farmacêutica americana Purdue Pharma instruiu seus representantes a dizer aos médicos que apenas pessoas com “personalidade adictiva” corriam risco de desenvolver dependência, mesmo sabendo que a droga era altamente viciante e que o abuso da substância era frequente.
Drogas que são fortes causadoras de dependência, como o OxyContin e o opioide fentanil, são consideradas responsáveis por alimentar a crise dos opioides nos Estados Unidos, que causou mais de meio milhão de mortes entre 1999 e 2020.
A ideia de que a sua personalidade determina se você vai desenvolver ou não dependência em relação a uma substância “atendia muito bem a indústria farmacêutica”, afirma Ian Hamilton, professor especializados em vícios da Universidade de York, no Reino Unido.
“Aquilo meio que os livrava da responsabilidade.”
“A mensagem é: ‘Se você é fraco o suficiente para desenvolver um problema com o nosso produto, é devido à sua personalidade, não tem nada a ver conosco.”
Mas essa personalidade adictiva existe na realidade? Existem pessoas que realmente são mais propensas a desenvolver dependência?
Muitos psiquiatras e especialistas em dependência afirmam que não há evidências científicas que sustentem essa ideia. Eles também alertam que este é um conceito prejudicial, pois indica que as pessoas têm pouco ou nenhum controle sobre a dependência.
Eles ressaltam que há algumas relações entre certos traços de personalidade e a adicção, mas que elas são muito mais complexas do que o indicado frequentemente pela expressão “personalidade adictiva”.
Sintoma de outros problemas
O renomado professor de dependência comportamental Mark Griffiths, da Universidade Nottingham Trent, no Reino Unido, descreve a “personalidade adictiva” como um “completo mito”.
“Para haver algo como a personalidade adictiva, o que você está dizendo é que existe uma característica que prevê a adicção e somente a adicção”, afirma Griffiths.
“Não há evidências científicas de que haja uma característica que preveja a adicção e somente a adicção.”
A personalidade adictiva “é uma forma de pensar preto no branco sobre algo que é muito complexo”, diz o psiquiatra Anshul Swami, especialista em saúde mental e dependência do Hospital Nightingale, em Londres.
“Não existe um tipo de personalidade [que preveja a adicção], e não há dois dependentes iguais.”
Isso não quer dizer que certas características de personalidade não estejam associadas “à aquisição, desenvolvimento e manutenção de comportamentos adictivos”, afirma Griffiths.
O neuroticismo, por exemplo, costuma ser associado a muitas formas de dependência. O neuroticismo é um dos Cinco Grandes traços de personalidade. Ele define até que ponto uma pessoa reage a ameaças percebidas e situações de estresse.
Pessoas altamente neuróticas são ansiosas e propensas a ter pensamentos negativos.
Segundo uma análise de 175 estudos, os transtornos de abuso de substâncias são associados a altos níveis de neuroticismo e baixos níveis de conscienciosidade (até que ponto uma pessoa demonstra autocontrole). E pesquisas concluíram que vícios de comportamento, como a compulsão por compras e a dependência da internet e de exercícios físicos, também são associados ao neuroticismo.
“Se você for neurótico, você é muito ansioso”, afirma Griffiths.
Para ele, “as pessoas tendem a adotar comportamentos adictivos ou usar substâncias como forma de gerenciar seus traços neuróticos. A maioria das dependências é questão de lidar [com as situações], e elas são sintomas de outros problemas subjacentes, como a depressão ou o neuroticismo.”
Mas Griffiths afirma que não existem pesquisas que demonstrem que todas as pessoas com dependência sofrem de neuroticismo.
“Posso encontrar muitas pessoas que são neuróticas e não são adictos”, diz ele.
“O neuroticismo é associado à adicção, mas não é um traço profético.”
Hamilton sugere que, quando o assunto é dependência de substâncias, pode ser “diabolicamente difícil” descobrir o que vem primeiro.
“O que você vê são altos índices de depressão ou ansiedade entre as pessoas que se tornam dependentes de drogas. Mas passa a ser a questão do ovo e da galinha”, afirma.
“Foi o neuroticismo que levou a pessoa para a droga ou a sua dependência de cocaína por um longo período de tempo prejudicou o seu estado de espírito?”
Para Swami, as dependências “têm muitas nuances e fatores”.
Pesquisas indicam que as dependências podem ser influenciadas pela genética e por uma ampla variedade de fatores ambientais, incluindo a pressão dos colegas, exposição precoce a substâncias e abusos físicos ou sexuais.
Um estudo de 2018 concluiu que o antigo retrovírus HK2, que fica próximo do gene envolvido na liberação da substância dopamina, é mais frequentemente encontrado em dependentes de drogas.
Os pesquisadores concluíram que pessoas que sofrem de transtornos de abuso de substâncias apresentam de duas a três vezes mais chance de ter o HK2 integrado em seu genoma, indicando uma forte associação com a dependência.
Swami ressalta que este estudo não fornece nenhuma evidência de que algumas pessoas possuem uma “personalidade mais adictiva” do que outras.
“Esta descoberta preliminar sobre o HK2 não explica por que cada vez mais pacientes desenvolvem dependência mais tarde na vida”, afirma.
“Se eles tivessem [o HK2], e ele fosse associado ou causador [da dependência], certamente ela se expressaria mais cedo.”
O gênero é outro fator de risco para o desenvolvimento de dependência. Nos Estados Unidos, 11,5% dos homens e meninos sofrem com o abuso de substâncias, em comparação com 6,4% das mulheres e meninas.
As razões são várias, segundo Hamilton.
“Os homens, principalmente os adolescentes, tendem a correr mais riscos e ser mais impulsivos”, afirma.
A impulsividade é outra característica associada à adicção. Mas Hamilton alerta que a subnotificação pode ser significativa, já que a quantidade de mulheres que buscam tratamento é menor, por questões relacionadas ao cuidado dos filhos e à estigmatização.
Pesquisas mostram que o ambiente e a criação de uma pessoa também influenciam bastante o risco de desenvolver dependência.
Um estudo concluiu que usuários de opioides têm 2,7 vezes mais chance de ter um histórico de abuso na infância, seja sexual, físico ou ambos, do que não usuários.
Pessoas que sofreram quatro experiências adversas na infância, como abuso físico, sexual ou emocional, ou a perda de um dos pais, apresentam três vezes mais chance de desenvolver problemas com álcool na idade adulta, segundo um estudo de 2022.
“Fatores psicossociais, como a violência, abuso sexual e negligência emocional apresentam forte associação com a adicção”, observa Swami.
“Muitas pessoas vão dizer: ‘Tenho histórico de adicção, é por causa da minha genética’. Mas, quando você se aprofunda no histórico clínico, você percebe que houve muita bebida, negligência, abuso, trauma e privações”, ele explica.
“Isso é passado de geração em geração e vem à tona na forma de adicção.”
Apesar da falta de evidências científicas, a expressão “personalidade adictiva” continua sendo amplamente utilizada.
“Precisamos ter cuidado com a linguagem, pois as pessoas a internalizam”, afirma Ian Hamilton.
“A ideia da personalidade adictiva tira toda a esperança de você. Ela diz que ‘este é o caminho pelo qual você deve seguir e que você não tem controle sobre ele’.”
Anshul Swami concorda que o conceito é irreal e “fatalista”.
“Ele impede que as pessoas assumam a responsabilidade, tomem para si o problema e encontrem soluções construtivas para melhorar”, afirma.
Para Mark Griffiths, muita gente com dependência vai usar a ideia da personalidade adictiva como “justificativa para o seu comportamento”. Segundo ele, “quando alguém diz ‘tenho personalidade adictiva’, o que está dizendo, na verdade, é ‘nunca vou conseguir me curar’.”
“As adicções são doenças biológicas, psicológicas e sociais muito complexas, como qualquer outra doença do planeta”, afirma Swami.
“Todo mundo está procurando uma resposta simples, mas ela não existe.”
A BBC tentou obter um comentário da empresa Purdue Pharma, mas a farmacêutica foi reestruturada após um processo de falência.
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