- Leandro Machado
- Da BBC News Brasil em São Paulo
Quase três meses após a Justiça federal suspender o abate de jumentos no Brasil, o setor continua a matar os animais em três frigoríficos do Estado da Bahia. O couro da espécie é exportado para a China para a produção do ejiao, um produto medicinal sem eficácia comprovada pela ciência mas que movimenta bilhões de dólares no país asiático.
A decisão de suspender o abate no Brasil foi tomada em 3 de fevereiro deste ano por 10 dos 13 desembargadores da Corte Especial do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), em Brasília.
Mesmo assim, apenas no Frinordeste, frigorífico da cidade baiana de Amargosa e o estabelecimento que mais abate a espécie no Brasil, por volta de 14,4 mil animais foram mortos depois da proibição — esse número leva em conta a média mensal de 4,8 mil jumentos abatidos no local antes da decisão, segundo dados do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa).
Estudos internacionais sobre o mercado de ejiao apontam que a pele de um único de animal é vendida na China por valores entre US$ 2 mil e US$ 4 mil (cerca de R$ 9,8 mil e R$ 19,7 mil). Considerando o menor valor, os jumentos abatidos no Frinordeste, que tem como sócios dois cidadãos chineses e um brasileiro, podem ter gerado U$ 28,8 milhões (cerca de R$ 142 milhões) nos últimos três meses.
Os magistrados do TRF-1 consideraram que o setor coloca em risco a existência da espécie no Brasil pela falta de uma cadeia produtiva que renove sua população, como ocorre com os bovinos, por exemplo. Também alegaram que não havia elementos para comprovar que a paralisação afetava a economia baiana, como afirmava a gestão do governador da Bahia, Rui Costa (PT).
Porém, 85 dias depois da decisão, a operação continua correndo em três abatedouros do Estado. Além do Frinordeste, atuam no setor o frigorífico Cabra Forte, em Simões Filho, e o Sudoeste, de Itapetinga. A BBC News Brasil tentou contato com os três estabelecimentos, mas não obteve resposta.
A reportagem confirmou que a produção continua por meio de duas fontes: pessoas ligadas aos frigoríficos e um documento do Mapa ao qual a BBC teve acesso. A pasta, responsável por fiscalizar diariamente a operação das empresas por meio do Serviço de Inspeção Federal (SIF), confirmou que os trabalhos não foram interrompidos depois da proibição.
“Os estabelecimentos abatedouros registrados no SIF continuam abatendo normalmente esses animais”, escreveu Fabiana Silva Lima, da coordenação do Serviço de Inspeção de Produtos de Origem Animal (Sipoa), órgão do Mapa, no documento. Ela argumentou que o órgão não havia sido notificado pela Justiça.
Em nota à BBC News Brasil, o ministério deu o mesmo argumento para justificar por que não está impedindo a operação. Porém, o sistema da Justiça federal informa que a União, ré na ação civil pública que pediu a suspensão, foi notificada pelo TRF-1 em 16 de março.
A audiência do TRF-1 foi transmitida ao vivo e depois foi publicada no canal do YouTube do TRF-1, e o resultado foi noticiado em reportagens na imprensa, como na BBC News Brasil.
O governo da Bahia, que também é réu na ação, foi notificado da proibição no mesmo dia, 16 de março. A Agência de Defesa Agropecuária da Bahia (Adab), órgão que fiscaliza o transporte e a manutenção dos animais em fazendas do Estado, também afirmou que não foi notificada da decisão do TRF-1.
Para o promotor Julimar Barreto Ferreira, titular da Promotoria Regional Ambiental do Recôncavo Sul, a continuidade das operações é uma questão ética e de boa-fé dos órgãos públicos envolvidos.
“Na pior das hipóteses, há má-fé de órgãos de fiscalização em se utilizar de um problema burocrático para não cumprir uma decisão judicial. É estranho e suspeito que, depois de tanto tempo, uma decisão de um tribunal federal não esteja sendo cumprida. Foi uma decisão pública, amplamente noticiada pela imprensa. Como eles podem dizem que não estão sabendo? É uma questão ética”, explica.
O promotor é responsável por outro pedido de liminar que também solicita a proibição dos abates, mas na Justiça estadual – dois meses depois do pedido, a ação ainda não teve resposta.
“Quanto mais abates, mais lucro para os donos dos frigoríficos. A questão é o lucro”, critica o promotor.
A morosidade dos órgãos públicos em fiscalizar o setor levou a juíza Arali Maciel Duarte, da 1ª Vara Federal da Bahia, a intimar a União, o governo da Bahia e a Adab a “comprovar o cumprimento da decisão”, sob pena de multa. O despacho foi publicado nesta quinta-feira (28/04) – os órgãos têm até 15 dias para responder.
Para a magistrada, a Justiça não precisa notificar o Ministério da Agricultura porque o órgão “não tem personalidade jurídica própria”, sendo representado pela União. “Assim, cabe à União informar os seus órgãos internos sobre decisões judiciais proferidas”, escreveu a juíza.
Para a advogada Gislane Brandão, coordenadora-geral da Frente Nacional de Defesa dos Jumentos, uma das entidades que entraram na Justiça contra o setor, a produção “precisa ser interrompida imediatamente”. “O abate dos jumentos é inadmissível e contraria ordem judicial”, afirma.
Mercado de eijiao
Desde 2016, o Brasil passou a exportar a couro do animal para a produção do ejiao, bastante popular na China. Sem comprovação científica de eficácia, ele promete tratar diversos problemas de saúde, como menstruação irregular, anemia, insônia e impotência sexual. Ele é consumido de várias maneiras, como em chás e bolos. No YouTube, há vídeos de programas populares da TV chinesa ensinando receitas com ejiao e prometendo ao espectador uma vida “mais saudável.”
Estima-se que esse mercado movimente bilhões de dólares por ano. Uma caixa do produto não sai por menos de R$ 750. No Brasil, os valores do comércio são bem menores — jumentos são negociados por R$ 20 no sertão do Nordeste, e depois repassados aos chineses, conforme mostrou a BBC News Brasil em dezembro do ano passado.
A alta demanda e lucratividade fizeram com que empresários chineses mirassem o Brasil, país com uma população abundante de jumentos— em 2013, havia 900 mil deles, a maior parte no Nordeste, segundo o IBGE. Atualmente, de acordo com o Mapa, há por volta de 400 mil. Entre 2010 e 2014, o Brasil abateu 1 mil jumentos — já entre 2015 e 2019, foram 91,6 mil.
Em relatório recente, o Conselho Regional de Medicina Veterinária da Bahia (CRMV-BA) afirmou que, sem uma cadeia produtiva, o ritmo dos abates e a demanda chinesa pelo ejiao poderiam praticamente dizimar a população de jumentos no Nordeste em poucos anos.
O mercado de ejiao é acusado por autoridades e ativistas de atuar de maneira extrativista. Ou seja, ele vai até onde os animais são abundantes, abate a maior parte da população e deixa o local. Ele afetou inclusive a população de jumentos na própria China, segundo um estudo dos pesquisadores Richard Bennett e Simone Pfuderer, da Universidade de Reading, no Reino Unido.
Em 2000, o país tinha por volta de 9 milhões de cabeças — em 2016, o número caiu para 2 milhões. Em 2000, a produção anual de ejiao era de 1,2 tonelada — já em 2016, foram 5 toneladas. Estima-se que o país precise de 5 milhões de peles de jumento por ano, mas, desde 2017, o estoque interno não é mais capaz de suprir a demanda.
A solução de parte do empresariado chinês foi buscar animais em outros países, como o Quirguistão, que perdeu 57% de seu rebanho desde 2017, segundo um estudo da ONG The Donkey Sanctuary. Países como Mali, Gana e Etiópia recentemente proibiram o abate, embora ele ainda ocorra clandestinamente.
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