- Author, Riley Farrell
- Role, BBC Future
Sudan – o último rinoceronte-branco-do-norte macho do mundo – trazia consigo grandes esperanças.
A imprensa internacional o chamava de “rinoceronte mais famoso do mundo” e os guardas armados que o escoltavam 24 horas por dia descreviam o animal como um “gigante gentil”.
Mas a vida de Sudan carregava a herança de uma espécie dizimada pela caça ilegal.
Na reserva florestal Ol Pejeta, aos pés do Monte Quênia, o jornalista fotográfico Tony Karumba, da agência de notícias AFP, capturou uma famosa imagem de Sudan em 5 de dezembro de 2016, cerca de 15 meses antes da morte do rinoceronte.
A imagem de Karumba é o retrato em primeiro plano do doce relacionamento entre Sudan e os seres humanos na reserva florestal.
Ele capturou as imagens enquanto Sudan era retirado do seu cercado e levado para o pasto. “Existe amor e confiança naquele momento”, descreve o fotógrafo.
“Estar na presença de Sudan sempre pareceu para mim como visitar um sábio; seu comportamento, apesar do seu porte colossal, transmitia uma certa calma e paciência comigo e, embora seus cuidadores sempre nos rodeassem a pouca distância do campo de visão da câmera, ele [Sudan] aceitava minhas cautelosas intromissões e posava como se tivesse consciência do seu simbolismo como último ícone da sua subespécie.”
A foto exibe o perfil craniano de Sudan e seus dois chifres – característicos da sua subespécie – raspados para inibir os caçadores. O cuidador de Sudan acalma o animal de 2,5 toneladas, com sua cabeça maior que o tronco do homem.
A posição estratégica de Karumba e seu ponto de observação mais baixo em relação a Sudan “destacam o poder e a estatura do rinoceronte”, segundo o diretor de programas da Sociedade Real Fotográfica do Reino Unido, Michael Pritchard.
“O poder dessa fotografia é a interação entre esse animal impressionante e este ser humano”, afirma Pritchard. “Existe gentileza, um relacionamento.”
Sudan passou a maior parte da vida no Parque Safári Dvůr Králové, na República Checa, entre 1975 e 2009.
Ele foi então transportado para a fortemente vigiada reserva natural Ol Pejeta, em Laikipia, no Quênia. Foi uma última tentativa de incentivar sua procriação com as fêmeas restantes da sua subespécie. Mas não funcionou.
Sudan morreu em 19 de março de 2018, com 45 anos de idade. E com ele se foram as esperanças de salvar o rinoceronte-branco-do-norte da extinção.
Apenas duas fêmeas da subespécie permanecem vivas na reserva Ol Pejeta. Najin e Fatu são antigos animais de zoológico. Ambas são incapazes de levar a cabo uma gravidez, de forma que a subespécie é agora considerada funcionalmente extinta.
Mas surgem novas esperanças de fazer ressurgir o rinoceronte-branco-do-norte.
Cientistas conseguiram a primeira gravidez do mundo por fertilização in vitro de uma subespécie próxima, o rinoceronte-branco-do-sul. E eles esperam repetir este processo com o rinoceronte-branco-do-norte.
“Temos muita confiança de poder criar rinocerontes-brancos-do-norte da mesma forma e conseguir salvar a espécie”, afirmou à BBC a cientista Susanne Holtze, do Instituto Leibniz de Pesquisa em Zoologia e da Vida Selvagem, na Alemanha.
O instituto faz parte do projeto Biorescue, um consórcio formado para salvar os rinocerontes-brancos da extinção.
A força das imagens
“Sudan foi uma dessas notícias que correram o mundo”, segundo Pritchard.
“Suas fotos mostram que estamos mudando o planeta de uma forma que os números, as estatísticas ou as reuniões governamentais não conseguem [mostrar]. Este é o poder da fotografia: atingir um público que pode não reagir a fatos e números.”
Para Pritchard, as fotos são “evidentes”. Mas o contexto em torno das imagens o impressionou. A história de Sudan se tornou muito maior que o animal.
“Estamos procurando algo que não está mais entre nós como indivíduo, mas, o mais importante, enquanto espécie”, afirma ele.
Depois que o mundo observou pela primeira vez um vislumbre da face funcional da extinção, não parou mais.
A campanha publicitária de Sudan conquistou admiradores no mundo inteiro, visitas de turistas e doações para trabalhos de conservação.
Quando a notícia da sua morte se espalhou, políticos e celebridades postaram imagens de si próprios ao lado de Sudan.
E, em 20 de dezembro de 2020, o Google lançou um Doodle em homenagem ao rinoceronte na sua página inicial, lançando uma enorme sombra na ilustração que foi exibida nas barras de pesquisa dos computadores de todos os continentes, com exceção da Antártida.
“Fico feliz e realizado ao perceber que meus esforços para documentar as visões que tive de Sudan foram e ainda são tão bem recebidos”, segundo Karumba.
“Por diversas vezes, nossa cobertura sobre Sudan parece ter criado um burburinho, reunindo interesse da grande imprensa e dos círculos conservacionistas.”
Com sua aparência envelhecida, Sudan mostrou às pessoas como os rinocerontes são vulneráveis, segundo Karumba, que interagiu com o rinoceronte por toda a última década de vida do animal, na reserva natural do Quênia.
Espécie ‘carismática’
Os rinocerontes – equivalentes biológicos dos tanques armados com a aparência anacrônica dos dinossauros – são ilusoriamente dóceis.
“Eu me lembro de ficar surpreso com a sua calma, enquanto tirava fotos dele e das fêmeas”, escreveu Karumba sobre seu primeiro encontro com Sudan.
“Estávamos todos correndo agitados em volta dele e subindo no seu cercado para tentar conseguir boas imagens. Mas ele estava totalmente calmo.”
Depois de morto, Sudan deixou de ser um símbolo de otimismo para ser uma história de cautela, consolidada pela iconografia conservacionista, segundo o economista de sustentabilidade Michael ‘t Sas-Rolfes, da Universidade de Oxford, no Reino Unido.
Quando Sas-Rolfes conheceu Sudan no Quênia mais para o fim da vida do rinoceronte, em uma reunião do Grupo de Especialistas em Rinocerontes Africanos da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês) em 2013, “ele parecia um cadáver ambulante”.
Os rinocerontes são o que Sas-Rolfes chama de espécie ameaçada “carismática”. Outros exemplos carismáticos são os elefantes, os grandes felinos e os ursos. Estas espécies capturam a imaginação do público, segundo ele.
Os animais selvagens carismáticos se equilibram sobre uma frágil linha entre o respeito e o medo, definida pela atenção dedicada pelos países economicamente desenvolvidos.
Não é preciso ir muito longe para ver os animais selvagens carismáticos em cena. Desde os anos 1960 e 1970, emergentes organizações internacionais de proteção da vida selvagem, como o WWF, lançaram sua campanha Salve o Rinoceronte, segundo Sas-Rolfes.
“Nosso relacionamento com os animais carismáticos é complexo, mas eles sempre contaram com alta estima”, segundo ele. “As ONGs capitalizaram essa poderosa imagem para levantar fundos.”
O veterinário e conservacionista da vida selvagem William Fowlds testemunhou pessoalmente as sangrentas repercussões da caça de animais selvagens na África do Sul, que abriga mais rinocerontes do que qualquer outro país do mundo.
Em 2022, 448 rinocerontes foram mortos ilegalmente na África do Sul, contra 451 no ano anterior, segundo a União Internacional para a Conservação da Natureza.
O nível de brutalidade infligido sobre os rinocerontes depende do nível de experiência do caçador. Ele normalmente usa uma serra ou facão para arrancar seu chifre, segundo Fowlds.
“Pedaços do rosto e da carne voam do seu corpo, aterrissando a vários metros de distância do rinoceronte, e o sangue se espalha pela vegetação ao seu redor”, ele conta. “Você pode ver pelas marcas no solo onde o animal tentou escapar.”
Uma palavra vem à mente de Fowlds quando ele observa a foto de Sudan: solidão.
“Nós invadimos o mundo deles. Nós destruímos o seu habitat. Nós os separamos dos demais. Agora, chegamos a um momento em que existem muito poucos deles no planeta”, lamenta o veterinário.
Os rinocerontes são animais sociais e de natureza gentil, segundo Fowlds – e também inteligentes, com personalidades variadas.
“Como o cuidador de Sudan nesta imagem, as pessoas que observam a foto se sentem próximas e privilegiadas por passarem algum tempo com o último da sua espécie”, prossegue Fowlds. “Eles são vulneráveis.”
Fowlds apresenta outra história famosa de rinoceronte, esta com final feliz. Trata-se de Thandi, uma rinoceronte-branca-do-sul fêmea que foi desfigurada por caçadores no dia 2 de março de 2012.
Dois outros rinocerontes foram atacados e morreram. Mas Thandi melhorou, para grande surpresa dos veterinários envolvidos, como Fowlds.
Depois do seu resgate e reabilitação, ela foi mãe de vários bebês e mostra suas cicatrizes no rosto com orgulho.
Para Fowlds, os casos de Sudan e Thandi são histórias fenomenais. Seus rostos são importantes na luta contra a caça de animais selvagens. Eles representam o primeiro passo, de consciência.
“Eles inspiram muitas pessoas, incluindo a mim mesmo, a fazer mais pelos rinocerontes”, afirma ele. “Quando vemos uma criatura como aquela lutando para sobreviver, nós percebemos que precisamos ajudá-los e lutar com a mesma força.”
Raízes profundas
A história da caça aos rinocerontes está evoluindo, o que é extremamente humano, segundo a especialista americana em conservação de rinocerontes Katie Lawton.
Para ela, a comparação mais simples é com o tráfico de armas ou de narcóticos. Um chifre de rinoceronte, em peso, vale mais do que ouro, diamantes ou cocaína. Ou seja, cometer crimes contra a vida selvagem é um grande negócio.
Caçadores de subsistência, levados pela fome e pela pobreza, são pagos por organizações comerciais estabelecidas. Lawton afirma que combater os caçadores de subsistência que fazem o trabalho sujo não irá atingir a estrutura sistêmica da demanda.
Fowlds considera que é fácil para o público dos países industrializados observar a questão da caça ilegal do ponto de vista colonial sem consciência e esperar que os governos resolvam a questão. Mas esta crise tem raízes profundas, históricas e socioeconômicas.
“O problema com as espécies ameaçadas, como os rinocerontes, é que você não tem tempo para solucionar esses problemas antigos porque, quando você [conseguir] mudar essas circunstâncias socioeconômicas, não haverá mais rinocerontes”, explica Fowlds.
“Simbolicamente, Sudan me fez pensar ‘não quero que chegue a este ponto'”, afirma Lawton. “E não irá chegar, nunca mais.”
De forma geral, a caça de rinocerontes diminuiu desde 2018, quando morreu Sudan. Dados do comércio indicam a menor estimativa anual de entrada de chifres de rinoceronte nos mercados ilegais desde 2013.
A combinação de iniciativas de gestão biológica e de conservação resultou em um total de 6.487 rinocerontes-pretos em todo o continente africano. E existem atualmente no planeta 16.803 rinocerontes-brancos. Todos eles são rinocerontes-brancos-do-sul, exceto por Najin e Fatu, as duas únicas fêmeas remanescentes da subespécie do norte.
Mas a primeira gravidez viável de uma rinoceronte-branca-do-sul por fertilização in vitro trouxe a esperança de podermos evitar a iminente extinção desses animais.
“Aquela imagem de Sudan é um símbolo do relacionamento entre o reino animal e a humanidade”, segundo Pritchard. “Talvez seja o lado negativo, mas também existe um relacionamento positivo entre o ser humano e os rinocerontes que todos nós deveríamos defender. Por isso, vejo como uma imagem positiva.”
“Compartilhar esses momentos nesse ambiente muito especial que é um privilégio do nosso planeta nos motiva a continuar nos aventurando pelas maravilhas selvagens da natureza, mostrando os personagens que justificam a experiência e sua preservação”, conclui Karumba.
Por que o rinoceronte-branco-do-norte está extinto na natureza?
A caça ilegal, alimentada pela demanda cada vez maior de chifres de rinoceronte ricos em queratina para práticas medicinais tradicionais, devastou a população de rinocerontes africanos.
Em 1960, ainda havia 2.360 rinocerontes-brancos-do-norte na natureza, mas a subespécie foi extinta na vida selvagem em 2008.
O comércio de rinocerontes ainda é legal hoje em dia?
Segundo a Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies Ameaçadas da Fauna e da Flora (Cites), o comércio global de chifres de rinoceronte foi proibido em 1977. Mas países como a África do Sul reverteram a proibição para permitir o comércio doméstico, baseados no argumento dos criadores comerciais de rinocerontes de que a legalização do comércio evitaria a caça ilegal.
Fonte: BBC
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