- Nathalia Passarinho – @npassarinho
- Da BBC News Brasil em Londres
Do seu apartamento em Barranquilla, na Colômbia, Martín Mestre aguarda ansiosamente aquele que pode ser o último capítulo de uma jornada dolorosa que dura quase três décadas.
Ele acaba de assinar o último recurso contra uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de negar a extradição do homem condenado por matar sua filha.
Mestre passou grande parte da vida investigando o paradeiro de Jaime Saade, que foi condenado a 27 anos de prisão em 1996, mas não chegou a ser preso porque fugiu da Colômbia logo após o assassinato de Nancy Mestre, dois anos antes. Foram quase três décadas de buscas até que finalmente Saade foi achado em Belo Horizonte, no Brasil, e preso pela Interpol em 2020.
Ele vivia uma vida normal e confortável com o nome falso de Henrique dos Santos Abdala. É casado com uma brasileira e tem dois filhos.
Poucos meses após a prisão, o STF negou a extradição de Saade por considerar que o crime prescreveu no Brasil. Agora, Martín deposita as últimas esperanças numa ação rescisória que pede que o tribunal reveja a decisão.
“Só vou ter paz quando o assassino da minha filha estiver preso numa penitenciária colombiana”, disse ele em entrevista à BBC News Brasil.
O crime
Nancy, filha mais nova de Mestre, queria ser diplomata e se mudar da Colômbia para os Estados Unidos para cursar faculdade. O pai dizia brincando que não ia deixar. “Quero você perto de nós”. Na realidade, admirava a ambição da filha e faria o possível para ajudá-la a alcançar esse sonho.
“Era uma menina alegre, muito estudiosa. Vivia lendo. Queria estudar Direito Internacional e diplomacia”, conta Martín.
Mas todos os planos da jovem de 18 anos foram interrompidos na madrugada do dia 1° de janeiro de 1994. Nancy, o pai, a mãe e o irmão brindaram o novo ano em casa.
Pouco depois da meia-noite, Martín se despediu da filha, que pediu para continuar a comemoração de Ano Novo com o namorado, Jaime Saade. O rapaz havia ido buscá-la em casa. “Volte antes das 3h da manhã”, pediu Martín à filha. “Cuide bem dela”, pediu ele a Jaime.
Às 6h, Martín acordou sobressaltado. “Assim que acordei já pressenti algo”, conta. Ele foi procurar Nancy pela casa e encontrou o quarto dela vazio.
Saiu pelas ruas da cidade, entrando em discotecas para ver se o casal de jovens estava lá, mas não os encontrou. A ansiedade foi aumentando e, enquanto perguntava pela filha a quem via pela rua, rezava em silêncio para que ela aparecesse sã e salva.
Por fim, decidiu ir até a casa dos pais de Jaime, onde o rapaz também morava. Lá, se deparou com a mãe dele limpando o chão. “Estava escuro e não me dei conta, naquele momento, que eu estava pisando no sangue da minha própria filha. E que a mãe do assassino estava violando a cena de um crime.”
“A sua filha sofreu um acidente e está na Clínica del Caribe”, disse a mulher.
Martín correu para o hospital e lá encontrou o pai de Jaime. “Sua filha tentou se suicidar e está na sala de cirurgia.” Na sala de atendimento de emergência, médicos tentavam estabilizar o quadro de saúde de Nancy, que estava em coma.
A jovem havia sido levada ao hospital por Jaime, o pai dele e uma mulher que também morava na casa da família. Eles enrolaram Nancy, que estava nua, num lençol e a colocaram na caçamba de uma caminhonete.
“Foi aos poucos que eu comecei a organizar na minha cabeça o que tinha acontecido. Ela foi violentada, maltratada e foi jogada na caçamba de uma caminhonete. Eu disse: ‘Meu Deus, o que fizeram com a minha filha!'”, se recorda Martín.
Oito dias de agonia no hospital se seguiriam. A jovem nunca mais recobrou a consciência. “Os médicos me avisaram que ela iria partir. Eu, a mãe de Nancy e nosso outro filho, Martín, nos reunimos no quarto do hospital e ficamos orando e cantando músicas que ela gostava de ouvir quando criança”, conta Martín.
De repente, o coração dela parou de bater.
A fuga
Enquanto os pais de Nancy sofriam no hospital e a polícia investigava o que havia acontecido com a jovem naquele dia 1° de janeiro, o principal suspeito do crime, Jaime Saade, fugia da Colômbia.
“Jaime iniciou a fuga no mesmo dia do assassinato e nunca mais foi visto no país”, diz Martín. A polícia descartou a tese de suicídio. Nancy morreu com um tiro na cabeça, que entrou pela têmpora direita.
Resquícios de pólvora foram encontrados na mão esquerda dela, um indicativo, segundo as autoridades colombianas, de que ela tentou se defender. A jovem era destra e precisaria ter feito um movimento muito improvável, segundo a polícia, para acertar a têmpora direita carregando a arma com a mão esquerda.
A investigação concluiu que Nancy havia sido violentada. Ela tinha ferimentos pelo corpo e, nas unhas quebradas, havia restos de pele – outro sinal de que tentou se defender. Em 1996, dois anos depois da morte da jovem, um tribunal da Colômbia condenou Jaime Saade a 27 anos de prisão por homicídio e estupro.
Segundo a decisão da justiça colombiana, após violentar e atirar na cabeça de Nancy, Jaime teria se desesperado e pedido ajuda ao pai. Eles enrolaram o corpo nu da jovem num lençol e a levaram para o hospital. O pai de Jaime ficou na clínica, enquanto o filho se escondia.
Daquele momento em diante, o foco da vida de Martín se tornou encontrar Jaime, uma caçada que duraria 26 anos. “Eu sabia que poderia demorar, mas sempre soube que encontraria o assassino da minha filha.”
As investigações
Desde a condenação de Jaime Saad, Martín passou a cobrar mensalmente das autoridades respostas sobre as investigações e estabeleceu contatos com a Interpol para compartilhar informações que ele próprio encontrava.
A morte de Nancy mudou para sempre o destino da família. Martín e a esposa se separaram. O único filho vivo do casal se mudou para os Estados Unidos.
E Martín, que é arquiteto e professor, concentrou quase todo o seu tempo e energia na busca por Jaime. Ele ingressou em cursos de inteligência e resgatou conhecimentos que aprendera quando era oficial da Marinha para usar nos seus esforços de investigação.
“Eu criei quatro personagens fictícios, dois homens e duas mulheres, e passei a estabelecer contato nas redes sociais com familiares de Jaime para ganhar confiança e obter informações que pudessem me levar a ele”, contou à BBC News Brasil.
Cada detalhe que conseguia obter, Martín repassava para a polícia colombiana e a Interpol. Ao longo dos 26 anos de busca, vários delegados diferentes assumiram o caso. “Cada vez que o responsável pela investigação mudava, eu ia até lá com todos os documentos para colocar a pessoa a par de tudo.”
Das conversas que estabeleceu com familiares de Jaime, usando os perfis fictícios, Martin encontrou duas pistas que o levaram a crer que Jaime poderia estar em território brasileiro.
Primeiro, descobriu que um irmão de Jaime mora no Brasil. Depois, desconfiou da menção frequente da família do rapaz à palavra Santa Marta. Santa Marta é uma cidade costeira da Colômbia, com uma praia chamada Bello Horizonte.
A investigação dele chegou, por fim, à conclusão de que Jaime poderia estar na cidade brasileira de Belo Horizonte, não em Santa Marta, na Colômbia. De posse dessas informações, a Polícia Federal brasileira e a Interpol localizaram uma pessoa com perfil similar ao de Jaime Saade.
A prisão
Os policiais seguiram o suspeito até um café e, depois que ele saiu do estabelecimento, coletaram o copo que ele usou para beber. Queriam verificar se as digitais batiam com as do colombiano condenado pelo assassinato de Nancy. Eram idênticas.
Ao abordarem Jaime, ele apresentou documentos falsos e disse se chamar Henrique dos Santos Abdala. Vivia uma vida tranquila em Belo Horizonte, com a esposa brasileira e dois filhos crescidos. Foi preso pela PF e passou a responder no Brasil por crime de falsidade ideológica.
Pouco depois, o governo da Colômbia entrou com pedido de extradição para que Jaime pudesse cumprir a pena de 27 anos no país.
“Quando o diretor da Interpol me ligou para contar da prisão, eu me ajoelhei no chão e comecei a agradecer a Deus. Meu Deus! Depois de quase 27 anos vai haver justiça”, conta.
“Telefonei ao meu outro filho, Martín, que vive nos Estados Unidos, e à mãe dele, que hoje mora na Espanha, e todos começamos a chorar.” Para Martín, seria questão de meses até Jaime começar a cumprir a pena na Colômbia. Só faltava a autorização do Supremo para a extradição.
Mas algo muito diferente do que ele esperava aconteceu.
O julgamento
No dia 28 de setembro de 2020, Martín recebeu um telefonema de um advogado. O Supremo havia decidido não extraditar Jaime porque o crime que ele cometeu havia prescrito no Brasil- o prazo para prescrição da pretensão punitiva naquele caso, um assassinato, era de 20 anos. Jaime fora encontrado 26 anos depois da morte de Nancy.
Mas o julgamento no STF não foi por maioria, foi um empate. Duas interpretações dividiram os ministros presentes. A lei brasileira veda a extradição se o crime tiver prescrito no Brasil. Mas a legislação também diz que, se a pessoa cometer outro crime posteriormente, o prazo de prescrição do primeiro se interrompe.
Jaime havia cometido crime de falsidade ideológica e falsificação de documentos, já que para viabilizar a fuga, adotou nome e documentos falsos.
Os ministros Gilmar Mendes e Cármen Lúcia entenderam que ele poderia ser extraditado, porque a suspensão da prescrição vale, na visão deles, a partir do cometimento do segundo crime.
Já Edson Fachin e Ricardo Lewandowski votaram por não extraditar Jaime, com o argumento de que a suspensão da prescrição só ocorre após condenação e trânsito em julgado do segundo crime.
“Meu cliente, o Jaime, não tinha nem sido denunciado pelo Ministério Público na época que o Supremo estava julgando o caso”, disse à BBC News Brasil o advogado de Jaime, Fernando Gomes de Oliveira.
Um dos advogados de Martín Mestre, André Luís Monteiro, critica: “Se você admite essa interpretação do Supremo, você está dando incentivo para todos os condenados, dizendo: ‘arrume um documento falso, vá para o Brasil. Se você for encontrado, não se preocupe, o Supremo vai falar que não tem como mandar você de volta, porque nós só te descobrimos agora'”.
“É o que tem de básico no Direito, você não pode se valer da sua própria torpeza para se beneficiar”
O ministro Celso de Mello, que poderia desempatar o julgamento, não estava presente no dia. O tribunal, então, decidiu aplicar uma regra do Direito Penal segundo a qual, em caso de empate, vale a decisão que beneficia o réu. Com isso, Jaime Saade pôde ficar no Brasil, sem qualquer punição pela morte de Nancy Mestre.
Para Martín, após 26 anos de busca incessante por Jaime Saade, tudo se resolveu “como se fosse uma partida de futebol”. “Como é que permitem que uma decisão importante como essa, onde se está discutindo justiça ou impunidade, seja decidida por empate, como se fosse um jogo de futebol?”, questiona.
O último recurso
A decisão do Supremo transitou em julgado e o governo da Colômbia não recorreu. Mas Martín Mestre não perdeu as esperanças e encontrou um escritório internacional que se propôs a buscar uma última alternativa.
“Está nas mãos do Brasil cumprir com esse pedido de extradição. Se um condenado pode fugir e encontra um país onde se esconde, muda de identidade e comete uma série de outros crimes para encobrir o primeiro, será uma mensagem muito danosa para o Brasil e o tema dos direitos humanos não extraditá-lo”, argumenta a advogada Margarita Sánchez, do escritório Quinn Emanuel Sullivan & Urquhart LLP, que assumiu o caso para tentar encontrar ferramentas jurídicas para a extradição de Jaime Saade.
Agora, Mestre protocola uma ação rescisória pedindo que os ministros revejam a decisão, com base em dois argumentos. O primeiro é o de que a prescrição do crime de assassinato se interrompeu no momento em que Jaime cometeu os crimes posteriores de fraude e falsificação de documentos.
“A decisão do Supremo violou o artigo do Código Penal que trata do interrupção da prescrição em caso de novo crime. A doutrina e precedentes do STF e STJ são pacíficos no sentido de que basta cometer o crime para suspender a prescrição da punibilidade do primeiro crime”, diz o advogado Bruno Barreto, que elaborou a ação rescisória.
O segundo argumento é o de que o empate não deveria ter beneficiado Jaime Saade, já que processo de extradição não é ação penal.
“O ministro Luiz Fux decidiu recentemente que a regra do empate só se aplica a ações penais stricto sensu e a habeas corpus, não se aplica para ações que tangenciam temas penais. É o caso da extradição, que tangencia tema penal”, disse.
“O Supremo deveria ter convocado um ministro de outra turma para participar do julgamento e desempatar ou deveria ter aguardado o retorno do ministro Celso de Mello, que estava ausente no dia, de licença médica”, defende.
Para o advogado de Jaime Saade, não há chance de seu cliente ser extraditado. “Não há nenhuma possibilidade dessa decisão ser revista, até por uma questão de coerência e segurança jurídica. Ela transitou em julgado em fevereiro de 2020. O senhor Henrique hoje está cuidando da vida dele. Já são quase três décadas do fato, então é justo que ele possa retomar a vida depois de tanto tempo”, disse Fernando Oliveira à BBC News Brasil.
Mas Martín mantém as esperanças. “Espero, do fundo do meu coração, que seja feita justiça. Se ele for extraditado, poderei dizer que não vivi em vão. Meu Deus, eu preciso ver o assassino da minha filha na Colômbia, preso.”
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