- Author, André Biernath
- Role, Da BBC News Brasil em Londres
- Twitter, @andre_biernath
Esse número supera — em mais de 500 mil — todos os diagnósticos da doença no ano passado inteiro.
Também simboliza a pior crise sanitária relacionada ao vírus transmitido pelo mosquito Aedes aegypti desde o início da série histórica do Ministério da Saúde, a partir do ano 2000.
A pior temporada de dengue havia sido em 2015, quando o país teve 1,68 milhão de casos prováveis. Na sequência, vinha 2023, com 1,65 milhão.
Mas o que explica esse cenário de 2024?
Segundo especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, uma “tempestade perfeita” — que engloba mudanças climáticas, fenômenos meteorológicos, subtipos de vírus e falhas de políticas públicas — ajuda a entender a epidemia atual.
De acordo com sua avaliação, é necessário lançar um conjunto de estratégias para mitigar os riscos e evitar que os números continuem elevados — ou sejam ainda piores de 2025 em diante.
Um vírus de diferentes faces
Para entender os desafios de lidar com a dengue, é preciso antes conhecer alguns detalhes sobre o vírus por trás dessa doença.
O patógeno tem quatro versões diferentes, que são conhecidas pelas siglas Denv-1, Denv-2, Denv-3 e Denv-4.
Na prática, isso significa que uma mesma pessoa pode ter dengue quatro vezes na vida.
Ela pode ser picada por um Aedes aegypti que carrega o Denv-1, por exemplo — e, após a recuperação, ficar imune contra esse subtipo específico do vírus.
Mas, caso seja picada por um mosquito que carrega o Denv-2, o Denv-3 ou o Denv-4, pode desenvolver a doença uma segunda vez (e uma terceira ou quarta).
Essa característica da dengue cria uma dinâmica específica de transmissão, cujos padrões se repetem mais ou menos a cada cinco anos.
É frequente que uma determinada região ou cidade seja acometida por um subtipo específico do vírus durante uma ou algumas temporadas de calor.
Passado um tempo, quando a maior parte da população já foi infectada — e, portanto, está protegida contra aquele subtipo —, os casos tendem a baixar por uma espécie de imunidade coletiva — até que outra versão se dissemine e dê início a um novo ciclo de transmissão.
Esse tipo de fenômeno parece ter ocorrido no último verão.
“Tudo sugere que houve uma inversão dos vírus circulantes nas cidades que são, historicamente, atingidas pela dengue, como Rio de Janeiro e São Paulo”, resume o pesquisador em saúde pública Leonardo Bastos, da Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz), que coordena o InfoDengue, uma plataforma pública que reúne estatísticas e análises sobre a doença no país.
“Em lugares em que antes predominava o Denv-1, o Denv-2 passou a circular com mais intensidade, ou vice-versa.”
Ao mesmo tempo, houve um aumento da circulação do Denv-3 e do Denv-4, que não apareciam com grande intensidade no Brasil há décadas, acrescenta a infectologista Raquel Stucchi, professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Ou seja: esse rearranjo de versões virais, que pegam uma grande parcela da população desprotegida e sem imunidade, é o primeiro ingrediente que ajuda a entender a atual situação sanitária.
Mas não é suficiente para explicar todo o cenário.
Um mosquito que ganha terreno
O segundo elemento da lista envolve uma espécie de expansão de território do Aedes aegypti.
Em artigo de revisão publicado em 14 de março no periódico acadêmico Nature Reviews Microbiology, o virologista brasileiro William M. de Souza, professor da Universidade do Kentucky, nos Estados Unidos, resumiu os efeitos das mudanças climáticas e das atividades humanas nas doenças transmitidas por vetores (como é o caso da dengue).
“Primeiro, precisamos destacar a mudança demográfica. As pessoas moram cada vez mais em áreas urbanas, e o Aedes é um mosquito que vive nas cidades”, destaca Souza.
“Ou seja, com um número maior de indivíduos concentrados em um espaço pequeno, há uma chance ampliada de o mosquito conseguir transmitir mais e mais.”
Soma-se a isso o fato de a expansão das cidades brasileiras acontecer na maioria das vezes de uma forma desordenada e desigual, sem saneamento básico ou coleta de lixo.
Isso, por sua vez, também representa uma boa notícia para o mosquito, que encontra um vasto número de reservatórios de água parada para botar os ovos, se reproduzir e perpetuar os ciclos de transmissão e infecção.
“A especulação imobiliária diminui áreas de mata e aumenta os criadouros do Aedes em regiões domésticas e urbanas”, resume Stucchi, que também integra a Sociedade Brasileira de Infectologia.
Para piorar, todo esse fenômeno é catapultado no Brasil e no mundo pelas mudanças climáticas, que geram aumento da temperatura média e alterações nos regimes de chuvas.
“Historicamente, as zonas temperadas do planeta, como partes dos Estados Unidos e Europa, não tinham a circulação de vetores transmissores de doenças. Eles ficavam restritos às regiões tropicais”, explica Souza.
“No Brasil, os Estados do Sul não sofriam com surtos ou epidemias de dengue. Mas as mudanças climáticas geraram condições favoráveis para o mosquito nesta região”, destaca Bastos, da FioCruz.
“Com toda uma população vulnerável à dengue, os casos explodiram ali nos últimos anos.”
O fenômeno meteorológico relacionado às águas do Oceano Pacífico fez os termômetros subirem ainda mais e alterou o regime de chuvas nos últimos meses.
Como o calor deixa os Aedes mais ativos, isso potencializa sua reprodução.
Neste contexto, a questão da chuva é uma faca de dois gumes.
Por um lado, pancadas d’água frequentes criam novos criadouros para o mosquito. Por outro, secas estimulam que as pessoas mantenham em casa reservatórios de água, muitos deles sem nenhuma proteção.
“Juntos, todos esses fatores criaram uma tempestade perfeita que leva ao panorama atual da dengue”, diz Bastos.
O especialista destaca que as curvas de casos de dengue em alguns Estados brasileiros durante o verão foi diferente do esperado.
Geralmente, os diagnósticos começam a subir entre o final de fevereiro e o começo de março, quando as chuvas ficam mais frequentes e intensas.
Mas, em lugares como São Paulo, Rio de Janeiro e Distrito Federal, as infecções começaram a se multiplicar a partir do final de dezembro, com um pico no meio de fevereiro.
“Já o Nordeste, que não sofreu tanto os efeitos do El Niño, não apresentou essa curva. Os casos estão elevados por lá, mas estão crescendo agora, como o esperado”, acrescenta o pesquisador da FioCruz.
Onde erramos e como podemos melhorar
Questionados pela BBC News Brasil sobre o que fazer agora para lidar com surtos e epidemias de dengue no futuro, os especialistas são unânimes em afirmar que não existe uma “bala de prata” para resolver a questão.
“Já passamos do ponto em que seria possível reduzir o impacto da dengue. Agora, temos que mitigar o problema ou agir para que a situação piore o mínimo possível”, analisa Souza.
Segundo os pesquisadores, os surtos frequentes e os números crescentes de casos indicam que as campanhas de conscientização sobre a dengue não estão funcionando.
Eliminar os pratinhos dos vasos de planta, limpar as calhas do telhado entupidas e tampar caixas d’água são atitudes importantíssimas para evitar criadouros do Aedes.
Porém, por mais que essa recomendação seja reforçada há anos, não está surtindo os resultados esperados, uma vez que o mosquito continua a assombrar, com cada vez mais intensidade, as temporadas de calor.
“Nossa comunicação sobre as doenças infecciosas no geral nunca foi boa e tem deixado a desejar”, opina Bastos.
Em paralelo às campanhas públicas, as estratégias de controle do transmissor ganharam novas ferramentas.
Uma delas é o Método Wolbachia, que libera mosquitos Aedes com uma bactéria no intestino capaz de bloquear a transmissão do vírus da dengue para as pessoas.
Já o tradicional fumacê, que joga inseticidas em uma determinada região, tem se tornado ineficaz, apontam os especialistas.
Isso porque os mosquitos desenvolveram uma resistência ao veneno — e as substâncias químicas utilizadas podem ser danosas a outras espécies, como algumas abelhas.
Para evitar surtos e epidemias devastadores no futuro, Souza vê a necessidade de um planejamento de longo prazo.
“Sabemos que os casos aumentam nos meses mais quentes, entre dezembro e março. Mas as estratégias de controle e prevenção devem acontecer o ano todo, até porque os ovos do mosquito permanecem no ambiente”, explica ele.
Já Bastos entende que o Brasil precisa melhorar a vigilância genética sobre o vírus causador da doença.
“Poderíamos monitorar os subtipos de vírus que estão circulando para saber se há alguma modificação na dinâmica e o que pode ser feito a partir daí”, resume ele.
Já Stucchi acredita que é preciso mudar como organizamos as cidades — desde o manejo de lixos e do saneamento básico até a construção civil.
“Para evitar outros surtos não apenas de dengue, mas também de chikungunya, febre amarela e outras viroses, precisamos olhar com mais cuidado a exploração imobiliária em áreas florestais”, diz a infectologista.
“O poder público também precisa investir em educação, além de vistoriar e agir nos terrenos abandonados, na coleta de lixo e na eliminação de esgotos a céu aberto.”
Uma novidade recente nesse campo foi a aprovação da Qdenga, uma vacina desenvolvida pela farmacêutica japonesa Takeda.
Ela foi incorporada no Programa Nacional de Imunizações (PNI) do Ministério da Saúde — porém, por uma restrição de doses, a campanha de imunização atual inclui apenas grupos específicos de cidades selecionadas.
“Além disso, a vacina só pode ser aplicada em pessoas de 4 a 60 anos. Por ora, não há indicação de uso justamente para aqueles públicos que têm uma taxa de mortalidade maior pela dengue, como as crianças pequenas e os idosos”, observa Stucchi.
“Precisamos de vacinas efetivas e seguras que cubram as faixas etárias mais acometidas.”
“A dengue sempre afetou mais os países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento. Agora que ela começa a aparecer na França, Itália e Estados Unidos, é possível que tenhamos mais investimentos para o desenvolvimento de drogas antivirais. Pelo menos, é a nossa esperança.”
Fonte: BBC
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