- Author, Serie “Outlook”
- Role, BBC World Service
“Busquei no Google e o nome da instalação apareceu. Eu não podia acreditar!
“Havia memórias sobre as quais eu nunca tinha falado e, de repente, lá estavam. Tudo explodiu dentro de mim, saí correndo de casa… Queria gritar do alto das montanhas!”.
Em uma rápida pesquisa na internet, um fantasma do passado reapareceu na vida de Evy Mages.
Era a imagem de uma casa amarela de tom pálido à sombra dos Alpes austríacos cobertos de neve, no alto das encostas do vale do rio Inn.
Hoje é um prédio de apartamentos, mas suas paredes guardam um segredo horrível que foi escondido do mundo e de crianças como Evy, que ali viveram anos atrás.
Evy é hoje uma premiada fotojornalista austríaca e vive nos Estados Unidos.
Mas ela passou a maior parte de sua vida mantendo trancado em sua mente um capítulo sombrio de sua história, doloroso demais para que viesse à superfície.
Não contou sobre esse capítulo nem ao terapeuta que diz ter salvado sua vida.
Mas começou a enfrentar esse passado após essa pesquisa na internet, há alguns anos.
É por isso que, agora, aos 59 anos, ela é capaz de contar o que passou.
Não sem dificuldade e nervosismo, pois, apesar de hoje estar bem e feliz, Evy não falou muito sobre o assunto publicamente e é perturbador relembrar sua infância angustiante.
Seus primeiros anos, mesmo antes da casa amarela, foram turbulentos, solitários, difíceis.
Quando ela nasceu, na Áustria, em meados dos anos 60, sua mãe não era casada e, como em muitos lugares na época, isso era uma mancha para mães e filhos.
Evy foi colocada sob os cuidados de famílias de acolhimento, orfanatos e instalações para crianças.
Seu caminho deixou poucas memórias amáveis da Áustria e, quando se mudou para os EUA, jurou nunca mais voltar ou mesmo pronunciar uma palavra sequer em alemão na tentativa de evitar que memórias difíceis ressurgissem.
Em vão: elas continuavam a assombrá-la.
“Tenho medo do escuro, por isso mantenho as luzes acesas sempre e tenho aversão ao amarelo”.
A cor é um lembrete do que viveu.
“É um desafio para mim fazer as pazes com o amarelo. Tento lembrar a mim mesma que é a cor do Sol, das flores e da luz”.
Evy compra girassóis regularmente, para tentar reescrever o passado e livrar-se da fobia.
Mas o esforço foi eclipsado em um dia de 2021, quando fez uma descoberta assustadora.
Kinderbeobachtungsstation
Ela já havia conversado com a filha Lily e uma amiga, quando perguntaram sobre sua infância.
“Em geral, eu era bastante aberta e honesta sobre o meu passado, mas a parte de ter estado em um hospital psiquiátrico era um segredo, porque era muito tenebroso e inidentificável”.
Mas nesse dia, quando ficou sozinha, procurou um endereço que lembrava, de Innsbruck, e deparou-se com uma palavra que não tinha visto antes.
“Kinderbeobachtungsstation, o nome da instalação. Significa ‘Estação de Observação de Crianças’.
“Continuei a ler: ‘Doutora Maria Nowak-Vogl…’, e pensei: ‘Sim, acho que é ela. Acho que esse é o lugar”
“.
Kinderbeobachtungsstation era um nome novo para Evy; mas a pessoa que o dirigia começou aos poucos a ressurgir em sua mente.
E encontrou mais, muito mais.
Havia relatos detalhados de outras pessoas que tinham passado por lá.
Relatos que tocaram a fibra sensível do seu próprio trauma.
Evy lia incrédula.
Ela sempre achou que o lugar para onde foi enviada era um centro terapêutico para crianças com problemas, mas começou a se dar conta que o propósito era muito mais assustador.
“Tudo começou a fazer sentido. Foi realmente extraordinário ter a confirmação de que aquele lugar extremamente horrível existia”.
E não só existia, mas as razões de sua existência eram muito diferentes das que eu tinha em mente, por décadas.
Eles não a levaram lá para cuidar dela, mas para que ela fizesse parte de um experimento de massa.
“Meu passado me confrontou de uma maneira muito profunda, e eu imediatamente aceitei o desafio.
“Depois de décadas e décadas de vergonha, eu queria virar a página.
“Uma vez que você enfrenta esse tipo de informação, você não pode ignorá-la – você deve lidar com ela, ou ela lida com você”.
Uma noite escura
Ela queria saber em que consistia o experimento de que tinha feito parte naquela casa de Innsbruck.
O que tinham feito com ela?
Evy decidiu voltar no tempo e descobrir.
Quando tudo começou, ela vivia com uma família adotiva num albergue que a mãe, Anni, geria.
“Eu não gostava de Anni e assumia o papel de pessoa sofrida que tinha que lidar com uma criatura difícil.
“O padre me tirava da escola regularmente para me repreender por ser tão boba e fazer a minha mãe passar por situações chatas”.
A família acolheu Evy quando ela tinha cerca de 3 ou 4 anos e “desde que me lembro, ela me acusava de danificar coisas em sua casa”.
Rotineiramente, Anni a culpava por ter quebrado pratos ou arranhado paredes que Evy não tinha tocado. E batia nela até que confessasse, para depois puni-la, trancando-a no sótão por horas.
Ou então impedia Evy de usar o banheiro até que a menina não aguentasse mais, o que levava a outro castigo.
“Não tinha para onde eu ir ou a quem pedir ajuda. Nem mesmo aos serviços de bem-estar infantil, a quem nunca disse como as coisas eram ruins porque Anni me disse que a alternativa seria muito pior”.
Assim viveu, sob ameaças, humilhações e abusos, até que em uma noite no final de dezembro de 1973, com apenas 8 anos, sem que fosse avisada, Evy foi levada para a Casa Amarela de Innsbruck.
“No meio da noite, alguém veio, me tirou da minha cama e me levou para um carro.
“Estava escuro, fazia frio e eu estava com muito medo.
“Nada foi dito, e viajamos durante muito tempo.
“Não lembro quem estava no carro, mas lembro que Anni estava lá quando chegamos a Innsbruck.
“Eles me deram roupas da instituição, essa roupa interior tipo calças grandes e depois uma saia.
“Lembro-me do interior da casa, madeira por toda parte nas paredes, havia um grande aquário no corredor.
“No 2º andar, havia um quarto grande com uma janela, camas empilhadas com cartões de metal, e cada cartão com uma cor para identificar cada criança: a minha cor era amarela.
“Não lembro exatamente quando me dei conta que era um hospital psiquiátrico. Só lembro dos adultos de batas brancas.
“Havia um forte cheiro de cola e um alto-falante sobre a porta que durante o dia fazia muitos sons estridentes, muitos sinais e alertas”.
Confusa e assustada, passou a seguir as regras do lugar.
“Não nos deixavam falar. E a linguagem permitida era abreviada.
“Tínhamos de pedir permissão antes de fazer qualquer coisa. Então, por exemplo, tínhamos que dizer ‘por favor, escova de dentes’ ou quando comíamos, você se sentava à mesa e dizia ‘por favor, colher’ antes de pegar um utensílio”.
“E tinha que comer tudo o que estava no prato.
“Qualquer coisa que você deixasse, eles te serviriam na próxima refeição, mesmo que estivesse podre, até que você comesse”.
A médica
Quase todos os elementos sádicos que regiam a vida de Evy e das outras crianças eram uma criação da psiquiatra que dirigia o centro: a doutora Maria Nowak-Vogl.
“Ela era uma médica treinada pelos nazistas e era adepta dessa ideologia.
“Mas na Áustria eles a veneravam. Ela era considerada uma especialista em psiquiatria infanto-juvenil e tinha laços estreitos com o sistema de bem-estar austríaco, por isso havia um suprimento interminável de crianças”.
Nowak-Vogl dava a última palavra sobre o que acontecia na Casa Amarela. Ela elaborou uma lista de regras que todas as crianças tinham que seguir, além das instruções para seus funcionários.
“Era muito longa e absurda. Entrava em detalhes de coisas, como terem que verificar nossa roupa interior ‘com os olhos e o nariz’ em busca de evidências de nossos hábitos de banho.
“Era um ambiente muito intrusivo. Eles te vigiavam, te investigavam. Eles te forçaram a contar até os teus sonhos”.
As crianças viviam aterrorizadas: nenhuma sombra de resistência era tolerada.
Evy lembra claramente de um momento perturbador quando, sem querer, violou as regras.
Disseram para que formássemos uma fila para ganhar um doce, e quando deram, estava “cheio de formigas e fiquei assustada”.
“Devo ter gritado, e os adultos com batas brancas me levantaram, me levaram para fora e me deram uma injeção”.
Isso acontecia com frequência, mas Evy e as outras crianças, ou pais e tutores, não eram informados o porquê ou para quê.
Evy entendeu isso como outro castigo, mas quando começou seu processo de investigação há alguns anos, descobriu algo ainda mais chocante.
Os ‘tratamentos’
Nowak-Fogl dava sedativos fortes às crianças, incluindo Rohypnol, e também um estranho hormônio chamado epifisan.
Epifisan é um extrato derivado das glândulas pineais do gado que os veterinários usavam para suprimir o período fértil de éguas e vacas.
Embora ninguém soubesse qual seria o efeito em humanos, Nowak-Vogl o testava com o objetivo de suprimir desejos sexuais nas crianças e desencorajar a masturbação.
“Ela era obcecada por sexo e sexualizava as crianças. Nós éramos seus objetos de teste. Ela nos tratava como animais. Ela nos drogou com medicamentos poderosos”.
Quanto mais Evy descobria sobre Nowak-Vogl, pior se sentia.
Ela descobriu que a abordagem da médica para tratar as crianças parecia ser influenciada pela visão nazista de que os supostos defeitos das crianças “problemáticas” sob seu comando tinham origem genética.
Isso, somado a uma vertente muito conservadora do catolicismo austríaco da época, significava um perigo para crianças como Evy.
“Por ser filha de uma mãe solteira, ela definitivamente se encaixava no molde das crenças de que crianças como eu éramos menos (capazes).
“Ela tinha acesso às crianças vulneráveis, àqueles que realmente precisavam de apoio: éramos os indesejados, os párias da sociedade”.
Para Nowak-Vogl, as crianças canhotas ou com gagueira, as que urinavam na cama ou se masturbavam, tinham nascido com problemas.
Ela acreditava que essas “crianças defeituosas” precisavam ser corrigidas – em vez de receber cuidados – para proteger a sociedade austríaca.
E assumiu como sua missão pessoal remodelá-los para transformá-los em indivíduos produtivos, obedientes e sexualmente “normais”.
“As noites eram as mais assustadoras.
“Nós nos deitávamos com o cobertor debaixo das axilas e nossos braços em cima para que não nos tocassem.
“Os colchões tinham um alarme que avisava quando alguém molhava a cama.
“Pessoas com batas brancas vinham te levar e dar um banho gelado como castigo, e depois você tinha ficar no canto do corredor, onde a única luz vinha do aquário.
“Dava medo dormir.
Depois vinha a humilhação pública.
“No dia seguinte, as crianças tinham que se colocar ao redor da cama da criança que tinha tido o acidente, humilhar e rir dela”.
Das cinzas
O que Evy descobriu sobre o lugar era realmente horrível, mas a ajudou a colocar suas memórias no contexto adequado.
“Foi absolutamente chocante descobrir que mais de 3.650 crianças foram afetadas”.
Em 2013, uma comissão de especialistas sob a tutela da Universidade Médica de Innsbruck emitiu um relatório condenatório do centro, afirmando que a Nowak-Vogl tinha cometido abusos sistemáticos sob o pretexto de lidar com crianças “difíceis”.
A Kinderbeobachtungsstation foi descrita como uma combinação de “casa de acolhimento, prisão e clínica de testes” onde crianças, a maior parte delas entre 7 e 15 anos, eram internadas por vários meses.
A Casa Amarela funcionou por 33 anos, de 1954 a 1987.
Mesmo após o projeto ser encerrado, Nowak-Vogl continuou a dar palestras em universidades e recebeu uma medalha da Igreja Católica antes de morrer, em 1998.
Não é de se admirar que, sob seu controle, as crianças nunca tenham questionado as práticas.
Evy nunca soube o motivo de ter sido levada para lá ou de ter sido inesperadamente enviada de volta para viver com Anni, sua mãe adotiva, para seu horror.
“Eu achava que era culpa minha ter ficado reclusa em Innsbruck. Acho que muitas crianças tendem a pensar assim”.
“Foi assustador. Naquela mesma noite, na mesa do jantar, Anni inclinou-se e apontou para um pequeno risco na cadeira e disse ‘como isso aconteceu?’, e meu coração afundou. Eu sabia o que isso significava: tinha começado tudo de novo”.
Evy teve que suportar viver com Anni até ter idade suficiente para deixar a Áustria e começar uma nova vida.
Com a ajuda de amigos e através de um trabalho em um cruzeiro no Caribe, ela chegou a Nova York.
“Eu adorei. Foi o primeiro lugar em que senti que não te julgam, que todos têm uma história”.
Ela conseguiu escapar e tinha novos horizontes. Mas o abuso seguia com ela, no fundo.
Ela tinha muita dificuldade para dormir e desenvolveu um distúrbio alimentar que foi bastante difícil de superar.
“O simples fato de aprender a comer foi realmente uma grande luta.
Depois de passar por Kinderbeobachtungsstation, não procurei ajuda de um psicólogo por causa da minha desconfiança em relação aos médicos e psiquiatria em geral.
“Só quando eu tinha quase 30 anos consegui fazer terapia”.
‘Corajosa’
Apesar de tudo, primeiro em Nova York e depois em Washington, ela fez uma carreira de sucesso como fotógrafa, apaixonou-se, casou, teve três filhos e muitos gatos.
Em 2021, quando descobriu a verdade sobre a Casa Amarela, Evy estava cercada pelo que nunca tinha tido: uma família.
E os filhos acompanharam-na quando ela voltou para a Áustria em busca de respostas aos horrores de seu passado.
Eles descobriram que havia uma comissão oficial investigando o que tinha se passado na Casa Amarela e Evy deu um testemunho.
“Um dia, enquanto verificava o meu e-mail, vi uma mensagem de um funcionário tirolês. Era uma carta oficial de desculpas, e dizia: ‘O que aconteceu com você nunca deveria ter acontecido. Só posso prometer que vou aprender com a sua história’.
“Foi muito significativo. Senti como se tivesse havido um reconhecimento oficial do que aconteceu a muitos de nós, que agora era considerado realmente errado e indescritível o que há não muito tempo era completamente aceitável”.
Em uma de suas viagens, Evy encontrou-se com Anni.
“Ela foi surpreendentemente gentil. Pensei que a veria por 10 segundos e depois me expulsaria. Eu estava pronta para enfrentar algo realmente assustador. Mas encontrei uma velha feliz por me ver e conhecer o meu filho”.
Quando Anni se desculpou com ela (depois de dizer que ambas tinham sofrido), ela chorou e Evy a consolou.
“Eu não lhe desejo o mal. Só não perdoo os abusadores de crianças”.
Após o turbilhão de emoções que viveu, Evy diz que se sente diferente de quem era há alguns anos.
“O processo de desenterrar tudo isso realmente me modificou. Durmo bem, tenho mais confiança, estou numa situação muito melhor”.
Em uma de suas visitas à Áustria, Evy tomou posse de um arquivo com documentos de seu tempo na Casa Amarela.
Em um deles, algum desses adultos de batas brancas tinha feito uma avaliação dela, que dizia: “A menor é corajosa o suficiente para se afirmar na vida”.
Fonte: BBC
Você precisa fazer login para comentar.