- Author, Tao Zhang
- Role, The Conversation*
Uma nova série produzida na China, intitulada Quando Marx Conheceu Confúcio, recebeu mais de oito milhões de visualizações nas duas primeiras semanas após o seu lançamento online, no mês de outubro.
Mas não se trata de mais um drama de sucesso, como os que a China se acostumou a produzir nos últimos anos. Esta é uma série de propaganda que pretende popularizar a versão mais recente do chamado “Pensamento de Xi Jinping“.
Desde que o presidente Xi assumiu o poder na China, em março de 2013, seu regime vem se dedicando a introduzir controles ideológicos cada vez mais rigorosos e proibir o que ele chama de “falsas atividades, posições e tendências ideológicas”.
O Partido Comunista Chinês (PCC) publica comunicados regulares promovendo a linha ideológica do seu líder. Quando Marx Conheceu Confúcio é a versão mais recente deste esforço de propaganda.
Seu objetivo é conciliar os fundamentos marxistas oficiais do regime chinês com o apelo voltado à herança cultural específica da China.
Mas oito milhões de visualizações não representam uma grande audiência em um mercado do tamanho da China. E a recepção da série tem sido pouco positiva entre o público e os críticos, no país e no exterior.
A série consiste principalmente de diálogos entre Confúcio e Marx, em sessões de perguntas e respostas. Elas incluem questões levantadas por um grupo de jovens estudantes chineses e deliberações sobre essas conversas por acadêmicos e propagandistas oficiais.
O conteúdo, a estrutura e o objetivo dos episódios são claramente orientados à popularização das ideias de Xi Jinping, principalmente entre os jovens.
A série se destaca por diversos motivos. Ela combina alguns dos padrões e técnicas do entretenimento popular, como o emprego de inteligência artificial e tecnologias digitais sofisticadas, com a mistura de gêneros culturais tradicionais chineses, como o teatro de sombras, e estilos musicais modernos como o rap.
Mas sua maior característica talvez seja a improvável ideia dos diálogos entre duas figuras históricas que viveram separados por mais de 2 mil anos: Confúcio (551-479 a.C.) e Karl Marx (1818-1883).
No Ocidente, os comentários sobre a série vêm se dedicando à natureza considerada um tanto cômica da sua proposta. Mas existe muito mais em jogo, além das deficiências artísticas da produção.
Esta noção foi introduzida por Xi Jinping em julho de 2021, durante as comemorações do centésimo aniversário do Partido Comunista Chinês. Ela destaca a integração dos princípios básicos do marxismo à realidade específica da China e sua rica cultura tradicional.
Embora o marxismo seja a ideologia oficial do partido desde a era de Mao Tsé-tung (1893-1976), o confucionismo vem sendo invocado mais recentemente para estabelecer a coesão nacional.
Mas esta série eleva o significado de Confúcio ao mesmo nível de Karl Marx. Seria uma mudança improvável, não fosse sua aprovação pelo próprio presidente chinês.
Alguns analistas observam o trabalho de propaganda de Xi Jinping pela lente do seu permanente incentivo ao culto da personalidade na China. Mas esta perspectiva ignora os desafios mais profundos enfrentados pelo Estado unipartidário do país.
Legitimidade questionada
O filósofo político Ci Jiwei, professor de filosofia da Universidade de Hong Kong, defende que as campanhas de propaganda e repressão ideológica na China podem ser reações aos desafios de legitimidade enfrentados pelo partido.
Ci observa que o PCC “não pode ter outra fonte de legitimidade aceita pelo público, além do relacionado ao seu passado na revolução comunista”.
Mas essa legitimidade foi significativamente enfraquecida depois do massacre da Praça da Paz Celestial, em 1989.
Desde então, o partido depende da anuência do público ao seu controle, em troca de desenvolvimento econômico e da melhoria do padrão de vida das pessoas. Esta legitimidade pelo desempenho depende profundamente do sucesso econômico e apresenta vulnerabilidades inerentes que poderiam comprometer o regime.
Esta situação causa temor entre a liderança do PCC e explica o aumento da repressão dos valores liberais e do controle ideológico desde que Xi Jinping assumiu o poder, em 2012.
Até certo ponto, a intensificação dessa ofensiva ideológica, representada pelo “Pensamento de Xi Jinping” é consequência da mesma tendência – o que lhe valeu seu apelido popular de “acelerador do chefe“.
Mas essa iniciativa gerou um círculo vicioso, em que as imposições do governo geraram redução do crescimento da economia do país e a disparada dos índices de desemprego entre os jovens. Um exemplo é a política chinesa de zero covid.
Ci alerta que, sem adotar a democracia e abertura às visões dissidentes, a legitimidade do partido continuará a se enfraquecer, devido às profundas contradições e falhas inerentes ao monopólio de poder do PCC.
Reação de indiferença
Essas fissuras podem ter ficado mais evidentes com o projeto de recuperação do confucionismo, representado pela série Quando Marx Conheceu Confúcio.
Exceto pelo endosso oficial, a série parece ter recebido poucos comentários positivos na China. E o mais significativo é que as reações iniciais dos dois principais campos ideológicos – os maoistas e os confucionistas – apresentaram divergências significativas.
Os comentários em dois dos websites mais populares entre os maoistas e marxistas chineses de linha dura, o Wuyouzhixiang e a Associação das Canções Vermelhas, defenderam veementemente a condenação de Confúcio por Mao Tsé-tung e ridicularizaram o suposto afastamento dos princípios marxistas pela série.
Estes comentários rejeitam categoricamente a ideia de reconhecer o confucionismo como a raiz da cultura nacional e de considerar Confúcio e Marx como igualmente importantes.
E, entre os cidadãos chineses no exterior, dois blogueiros conhecidos, o Professor Li e o Sr. Shen, consideraram a concepção da série bizarra e constrangedora, e que sua doutrina não tem coerência.
Enquanto o Ocidente recebe com forte ceticismo a campanha de propaganda da China – a iniciativa de civilização global, a tentativa de promover o “pensamento de Xi Jinping” entre o público chinês parece ser um objetivo de difícil aceitação.
* Tao Zhang é professora da Escola de Artes e Humanidades da Universidade Nottingham Trent, no Reino Unido.
Fonte: BBC
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