- Evanildo da Silveira
- De Vera Cruz (RS) para BBC News Brasil
Durante 5 horas, das 9h às 14h, do dia 13 de março de 1823, cerca de 3,6 mil homens protagonizaram, no sertão do Piauí, um dos mais sangrentos combates do processo de Independência do Brasil.
A Batalha do Jenipapo, como ficou conhecida, por ter ocorrido às margens do rio com este nome, no hoje município de Campo Maior, a 85 km de Teresina — que na época ainda não existia — foi decisiva, apesar da derrota dos brasileiros, para garantir e manter a autonomia e a unidade do país.
Ela opôs, de um lado, cerca de 2 mil combatentes leais ao jovem império, a maioria sem experiência militar, e, de outro, 1,6 mil soldados portugueses.
Sua história começou a ser desenhada no dia 8 de agosto de 1822, no entanto, um mês antes do Grito do Ipiranga, com a chegada a Oeiras (a 282 km de Teresina), então capital da província, do major português João José da Cunha Fidié, nomeado por D. João 6º para o cargo de governador das armas — maior autoridade de um Estado na época — do Piauí.
Segundo Antonio Carlos Silva Ferreira, mestre em Relações Internacionais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), ele veio com o objetivo de impedir a emancipação do Brasil.
“E caso isso não fosse possível em um primeiro momento, sua missão era garantir o domínio luso sobre as províncias das regiões Nordeste e Norte do Brasil, a partir do Piauí”, explica.
“A ideia era recriar o antigo Estado Colonial do Maranhão, composto pelo Maranhão, Piauí, e Pará.”
A tropa brasileira era formada, em sua maioria, por vaqueiros, roceiros, índios e escravizados libertos, sem nenhum treinamento militar e armados apenas com facões, machados, foices, porretes, enxadas, armas de caça e até arcos e flechas. As forças portuguesas, por outro lado, eram integradas por soldados profissionais, bem treinados e bem armados, inclusive com 11 canhões.
Não é de surpreender, portanto, que o combate tenha sido uma carnificina.
“No final da batalha, o cenário era de terror”, diz o historiador Eduardo José Afonso, do campus de Assis, da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp).
“Mortos à beira do rio, pedaços de cadáveres e feridos dos dois lados”, acrescenta.
“Quanto ao número de vítimas fatais, os depoimentos não são fiéis, pois não houve contagem. Mas estima-se que do lado das forças portuguesas houve 20 mortos e 60 feridos. Entre os independentistas, foram feitos 500 prisioneiros e mais de 200 perderam a vida.”
A maioria dos corpos foi deixada sem sepultura. Os que foram enterrados não estão identificados e seus túmulos não passam de pequenos montes de pedra. Apesar da simplicidade, é ponto de romaria de pessoas em busca de milagres.
“Com o passar dos anos, o campo de batalha se tornou um lugar santificado, há um cemitério dos combatentes e um marco, que se tornaram lugar de peregrinação”, conta o historiador Johny Santana de Araújo, da Universidade Federal do Piauí (UFPI).
“Também há um memorial construído na década de 1970, com um museu e vários artefatos usados no combate.”
Segundo Ferreira, a escolha do Piauí por Portugal como ponto de partida da missão de Fidié se explica pela sua relevância no conjunto das províncias nortistas, devido a sua posição geopolítica privilegiada — vizinha e com ligações terrestres com Bahia, Ceará e Pernambuco, onde o desejo separatista era forte.
“Além disso, o estado desfrutava de importância econômica”, diz ele.
“O delta do Parnaíba era escoadouro de diversos produtos da região, a ponto de empreendedores, como Simplício Dias da Silva, terem sua própria frota naval.”
Entre os principais produtos da província, estavam o algodão, a cana-de-açúcar, os cereais e o fumo e, especialmente, o gado bovino, que era a mercadoria mais importante.
“Assim, em razão da posição geográfica e da fartura de gado bovino, o Piauí abastecia de carne, sobretudo, as províncias vizinhas, isto é, Bahia, Ceará e Pernambuco, potenciais focos de resistência, de modo que o controle desse suprimento era uma possível ‘arma’ a ser usada para desabastecer os revoltosos e, em seguida, contra-atacá-los. Considerada a importância do Piauí, caso os portugueses pretendessem realmente ficar com o norte do Brasil após a independência, a ocupação militar da província seria então uma questão de vida ou morte para eles.”
Fidié chegou a Oeiras em meio a uma onda de revoltas no Nordeste contra o domínio português e a favor da independência, que começou na Bahia, em fevereiro de 1822 e se alastrou pelas outras províncias da região.
“No caso do Piauí, as notícias sobre a proclamação da independência feita por D. Pedro 1º, chegaram primeiro à Vila de Parnaíba [no litoral, a 610 km de Oeiras]”, conta Araújo.
Na cidade, viviam Simplício, um rico e instruído comerciante de espírito liberal, e outros membros da elite política e rural da região, que incluía o juiz João Cândido de Deus e Silva e o fazendeiro Leonardo Castelo Branco, além de José Francisco de Miranda Osório.
Em 19 de outubro de 1822, este pequeno grupo, juntamente a vereadores e outros líderes, proclamaram a adesão da Vila de Parnaíba à Independência.
Em seguida, convidaram outras vilas a fazer o mesmo, entre as quais Campo Maior, que contou às autoridades em Oeiras sobre o fato.
“Ao saber do ocorrido, o major Fidié deixou a então capital e marchou até Parnaíba, para sufocar o movimento separatista”, conta Araújo.
No meio do caminho, parou por 13 dias em Campo Maior, onde recebeu reforços e armas, mandadas pelo governo do Maranhão.
O comandante português era experiente e havia se destacado na guerra contra Napoleão Bonaparte, mas cometeu alguns erros fatais no Brasil, que levaram ao fracasso de sua missão de evitar a independência do país ou, pelo menos, manter as províncias do Norte e Nordeste sob domínio colonial de Portugal.
Um deles foi sua decisão de partir para a Vila de Parnaíba, levando praticamente todo o efetivo militar — mais de mil homens — de Oeiras, deixando a capital desprotegida.
Os adeptos da independência não desperdiçaram a chance.
“Em Oeiras, o antigo presidente da junta governativa, brigadeiro Manoel de Sousa Martins, futuro visconde de Parnaíba, também se sublevou contra Portugal, e da mesma forma declarou adesão à independência em 24 de janeiro de 1823, juntamente a vários de seus partidários, que incluíam seu irmãos e filhos”, conta Araújo.
Por essa Fidié não esperava. Como também não esperava o que encontrou em Parnaíba, onde chegou em 18 de dezembro de 1822, depois de mais de dois meses de marcha pelo escaldante sertão piauiense: a cidade abandonada pela elite.
Aqueles que haviam proclamado sua adesão à Independência haviam ido para a Vila da Granja, no Ceará, em busca de reforços militares.
Fidié e suas tropas ficaram na Vila de Parnaíba por mais de dois meses, onde cometeram saques e destruíram propriedades de independentistas. Neste período, ele recebeu outra notícia inesperada, a adesão de Oeiras ao imperador D. Pedro 1º.
O major resolveu, então, no dia 28 de fevereiro de 1823, retornar à capital para retomá-la. No meio do caminho, no entanto, tinha a vila de Campo Maior, agora sob o domínio dos adeptos da emancipação do Brasil, e onde ocorreria dali a duas semanas a Batalha do Jenipapo.
Ao saber do retorno de Fidié, o capitão Luís Rodrigues Chaves, comandante do exército independentista, composto por soldados do Piauí, Ceará, Pernambuco e Maranhão, resolveu organizar uma força para impedir a passagem das tropas portuguesas, que queriam chegar a Oeiras, por Campo Maior. Como só dispunha de cerca de 500 homens, ele fez uma conclamação popular, solicitando voluntários.
Cerca de 1,5 mil se apresentaram, que se juntaram aos militares de Chaves, não muito melhor armados, com armas de fogo não muito potentes e dois canhões velhos, que ficaram fora de operação logo depois dos primeiros tiros. Da cidade, o “exército” independentista partiu para impedir as tropas de Fidié de atravessarem o Rio Jenipapo e alcançarem Oeiras.
Como era época de seca, os combatentes se entrincheiraram no capinzal do leito seco e nos arbustos das margens. Os portugueses, por sua vez, haviam passado a noite do dia 12 de março numa fazenda, a 10 quilômetros daquele local, de onde saíram ao amanhecer do dia 13.
A estrada pela qual ia Fidié se bifurcava em duas pouco antes do rio, cada uma levando a um ponto onde a travessia era possível, distantes cerca de quatro quilômetros um do outro.
Como não poderia adivinhar por qual dos dois caminhos os portugueses chegariam, o capitão Chaves adotou a estratégia mais óbvia, ou seja, dividiu suas tropas em duas, cada uma postada em um dos locais de passagem, uma sob seu comando e a outra sob o do capitão cearense José da Costa Alecrim.
Mas Fidié não era bobo e fez o mesmo. Ele mandou a cavalaria pela estrada da direita e a outra ala, que incluída a artilharia e era comandada por ele próprio, foi pela da esquerda. E foi a primeira que chegou antes ao rio, sendo atacada pelos brasileiros.
Ao ouvir os tiros, os comandados de Chaves da esquerda concluíram que toda a tropa portuguesa estava vindo pela direita e abandonaram suas trincheiras e correram para lá.
O deslocamento precipitado deixou aquela passagem livre para Fidié, que atravessou o rio e instalou a artilharia e seus canhões em uma elevação do outro lado e começou a atacar as tropas de Chaves.
No desespero, sem ver alternativa, o comandante brasileiro decidiu mandar atacar os portugueses por todos os lados, numa estratégia com algo de suicida.
“Foi um massacre”, diz Araújo.
“As ondas sucessivas das forças independentistas, que se lançavam sobre as tropas de Fidié no afã de vencer os portugueses, foram sendo varridas pelos tiros dos mosquetes e pela artilharia dos inimigos.”
Fidié venceu, mas pode-se dizer que foi uma vitória de Pirro — expressão que se refere ao rei Pirro, de Épiro, região da Grécia, que derrotou os romanos em duas batalhas, em 280 a.C. e 279 a.C, às custas de perdas irreparáveis de seu próprio exército.
Durante a batalha, os mantimentos, a munição e as armas dos portugueses foram roubadas pelos inimigos, e depois dela, eles estavam tão cansados, que o major desistiu de perseguir os brasileiros, que fugiam em massa.
O que ele fez foi ficar numa fazenda, nas cercanias de Campo Maior, descansando e recuperando seus soldados durante dois dias.
“Depois disso, Fidié desistiu de seguir para Oeiras e atravessou na divisa para o Maranhão, antes sofrendo emboscadas e perdas no caminho”, conta Ferreira.
“Em junho de 1823, cansados e sedentos, os portugueses se renderam. O major foi preso e conduzido a Oeiras, e depois ao Rio de Janeiro, de onde foi deportado para Portugal.”
Embora pouco conhecida fora da região onde ocorreu, a Batalha do Jenipapo serve para mostrar que a Independência do Brasil não foi um processo rápido e sem sangue.
“Ela não ocorreu do dia para a noite, nem de forma pacífica ou da mesma maneira em todas as províncias”, explica o historiador João Paulo Peixoto Costa, da Universidade Estadual do Piauí.
De acordo com ele, a adesão das províncias à Independência não se deu de forma imediata, tanto pelas distâncias e demoras na chegada das notícias, quanto pelos debates internos travados entre diferentes projetos, sejam das elites ou dos populares.
“Mesmo nesse momento, os embates não se tratavam de conflitos de nacionalidades, pois todos eram portugueses”, diz.
“O conceito de portugueses e brasileiros dizia respeito aos projetos que cada grupo ou indivíduo aderia, e não ao local de nascimento ou identidade nacional.”
No caso do Piauí, Araújo diz que a história da Batalha do Jenipapo acabou sendo esquecida e deixada de lado quando se fala do processo de consolidação da independência no Brasil.
“Costuma-se lembrar muito da Bahia, do Pará, da Província Cisplatina e da ação de Lorde Cochrane no Maranhão”, explica.
“Mas a luta no Piauí e no Maranhão ficou relegada à historiografia local.”
Apesar disso, para ele, a Batalha do Jenipapo teve importância fundamental para a consolidação da independência do Brasil no Norte.
“O seu resultado, mesmo tendo sido positivo para os portugueses, não permitiu a eles que se mantivessem na província, cujas forças antiportuguesas estavam começando a aumentar em tamanho.”
Esta percepção da Batalha do Jenipapo vem mudando, no entanto.
“A partir dos anos 2000, historiadores piauienses buscaram resgatar e enaltecer a participação do seu estado nas lutas pela Independência do Brasil”, constata Ferreira.
“Além da divulgação do combate, os esforços tiveram êxito na decretação da Lei Estadual nº 5.507, de 17 de novembro de 2005, que determinou a inscrição da data — 13 de março de 1823 — na bandeira do Piauí, além de torná-la feriado.”
Tudo isso poderia ser diferente, se Fidié não tivesse cometido erros estratégicos que comprometeram a sua missão, apesar da vitória na Batalha do Jenipapo.
“É provável que a Independência do Brasil tivesse se restringido às províncias situadas abaixo do Paralelo 10 [que passa na altura de Sergipe e um pouco acima de Palmas, no Tocantins] e que a região acima dele tivesse se mantido como uma espécie de ‘Guiana Portuguesa'”, imagina Ferreira.
“Considerando que as colônias portuguesas obtiveram sua independência a partir de 1973, é plausível considerar que atualmente a ‘Guiana Portuguesa’ fosse mais uma nação de idioma português na América do Sul.”
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