Esta é a história de uma guerra travada logo nos primórdios da internet. E o que estava em jogo era crucial: quem era o dono desse novo mundo, quem fazia as regras e quais elas seriam.
Tudo começa quando Brad Templeton, um designer de software, publicou, em 1988, uma piada tida por ofensiva por pessoas em um fórum de discussões na internet — e se torna a primeira pessoa a ser denunciada publicamente (ou “cancelada”) por algo que fez online.
Esta história é contada no terceiro episódio do podcast As Estranhas Origens das Guerras Culturais, da BBC News Brasil. Trata-se de uma adaptação em português da série em inglês Things Fell Apart, da Rádio 4, da BBC, escrita e apresentada pelo autor e jornalista anglo-americano Jon Ronson.
No terceiro episódio (chamado A piada do judeu e do escocês), Ronson entrevista Brad Templeton e outros personagens que estiveram diretamente envolvidos nas batalhas desta guerra cultural para mostrar como a mesma viria a mudar a internet para sempre.
Na década de 1980, antes da invenção da World Wide Web, havia uma rede de comunicação por computador chamada Usenet. Era uma plataforma que permitia a troca de mensagens em fóruns agrupados por assunto, usada pelo relativamente pequeno número de pessoas que tinham acesso a computadores em instituições acadêmicas e tecnológicas – e que sabiam de sua existência. Gente como Brad Templeton, que até então usava o computador apenas para jogar e fazer planilhas.
“A Usenet foi uma epifania para mim. Entendi que o objetivo real, o uso mais importante dos computadores, era conversar com outras pessoas”, contou Brad Templeton a Jon Ronson no podcast.
Havia páginas na Usenet dedicadas a conversas sobre ateísmo, sexo, vinhos ou tecnologia.
“Era como uma praça. Todas as noites, seu computador ligava para outros computadores e ligava tudo de novo com eles, e então você podia conversar com pessoas de todo o mundo.”
Um ponto
Templeton acessou a Usenet por meio da Universidade de Waterloo, no Canadá, onde havia estudado, pois não era algo que alguém pudesse se conectar de casa.
Normalmente, um computador era necessário em um laboratório, empresa de informática ou universidade.
“Portanto, o público era altamente educado, geralmente bem de vida, provavelmente não tão etnicamente diverso e com conhecimento de tecnologia. Uma elite.”
Eles foram pioneiros.
Para se ter uma ideia de quanto, certo dia, em 1982, Brad postou uma mensagem sugerindo que os e-mails seriam mais fáceis de ler se tivessem um ponto. Outros concordaram, e é por isso que nossos endereços de e-mail agora terminam em “.com”.
Mas Templeton queria que seu legado da Usenet fosse “mais divertido” do que isso, então ele criou seu próprio quadro de mensagens dedicado ao humor, chamado rec.humor.funny (RHF), que rapidamente conquistou milhares de assinantes.
Uma piada por dia
As pessoas lhe mandavam piadas e as que ele achava mais engraçadas passavam a fazer parte de uma coleção da qual seu computador escolhia aleatoriamente uma e publicava todas as manhãs.
E um dia, uma delas fez dele um tipo diferente de pioneiro – a primeira pessoa na história a ser publicamente denunciada por algo que fizera online.
“Era uma piada baseada em estereótipos judeus e escoceses. E a aleatoriedade do computador optou por lançá-la em um dos aniversários da Kristallnacht, a Noite dos Cristais.”
Na noite de 9 para 10 de novembro de 1938, nazistas e simpatizantes vandalizaram ou destruíram lojas pertencentes a judeus na Alemanha e na Áustria. Por causa do intenso barulho de janelas sendo quebradas, essa noite passou para a história como Noite dos Cristais.
E como era piada? Brad Templeton: “Era assim: um escocês e um judeu estão jantando juntos e na hora que chega a conta, há uma certa surpresa quando o escocês diz, ‘eu pago’. E daí ele paga. No dia seguinte, sai no jornal uma notícia dizendo que um ventríloquo judeu foi encontrado estrangulado num beco”.
“O fato é que, quando a piada foi divulgada, ela enfureceu um colega judeu do MIT (Massachusetts Institute of Technology)”, disse Templeton.
Esse judeu era um britânico chamado Jonathan Richmond. Ele morava no MIT com outro britânico que se lembra bem do incidente. Ele é hoje é um executivo bem-sucedido e não quis ser identificado no podcast – onde foi chamado pelo pseudônimo de “Amir”.
“Éramos ambos sensíveis ao racismo e ao antissemitismo, por isso não era incomum sermos incomodados por esse tipo de coisa. Mas essa piada em particular nos afetou pessoalmente. Além disso, havia algo muito importante na data, pela Kristallnacht“, contou Amir.
É por isso que Jonathan e Amir também se tornaram pioneiros – ninguém jamais havia tentado disciplinar o mundo online antes.
Jonathan fez um apelo à comunidade da Usenet, escrevendo que geralmente gostava de piadas que o faziam rir de si mesmo, mas que não podia tolerar o humor preconceituoso associado a perseguição e assassinato.
Mas as pessoas da Usenet reagiram chamando ele de um nerd que deveria aprender a “rir de si mesmo” e quase ninguém ficou do lado dele.
Bobo?
Amir, entretanto, explicou por que ficou ofendido pela piada. “Meus pais vieram da África Oriental para o Reino Unido na década de 1960, quando havia placas nas janelas de casas e empresas anunciando que asiáticos e negros não eram aceitos. Fui atacado várias vezes nas ruas. Finalmente nos mudamos para o Canadá na década de 1980, em parte porque estávamos fartos dos abusos racistas.”
Coincidentemente, antes de ir para o MIT, Amir frequentou a mesma universidade onde Brad Templeton postava suas piadas.
A Universidade de Waterloo costumava ser um banco de talentos.
“Além disso, era responsável por enviar mais graduados para a Microsoft – que era a maior empresa da época – do que qualquer outra universidade do planeta”, disse Amir.
Assim, pareceu a Amir e Jonathan que a coisa toda era um mau presságio. Um tom estava sendo estabelecido naquele novo mundo que poderia afetar as gerações futuras.
“Eu sabia que minha universidade tinha um grande papel em todo o espaço da tecnologia da informação e que se algo assim não fosse controlado, teria um grande impacto negativo também, então teve que ser cortado pela raiz”, diz Amir.
Mas suas tentativas tinham falhado até agora. Que recurso eles ainda tinham?
O quarto poder
Eles tiveram a ideia de aproveitar a visita de Amir à namorada em Waterloo para conversar com o jornal local.
“Lembro que quando li essas piadas fiquei com o estômago embrulhado”, contou a repórter Luisa D’Amato, que trabalhava no jornal Waterloo Region Record, ao podcast.
Ela tinha vasculhado o fórum de discussões do Brad e achou outras piadas que a deixaram bem abaladas.
“Tinha uma piada sobre um homem afro-americano que estava saindo com uma gorila e queria entrar em um bar, mas não conseguia levar a gorila com ele. Então ele a depilou, colocou um vestido nela e aí todo mundo achou que ele estava saindo com uma mulher italiana.”
“Apesar de eu estar abordando isso como repórter, dando a atenção devida a todos os lados da história, me fez sentir marginalizada e depreciada.”
“E lembro de pensar ‘Meu Deus, não tem ninguém no comando. Se você não gosta de algo que um jornal escreve, por exemplo, é possível entrar em contato com uma entidade maior que regula a mídia. Mas nesse caso não havia nada parecido. Era como no Velho Oeste.”
Depois de investigar, Luisa publicou um artigo intitulado “Sistema de computador da Universidade de Waterloo é usado para enviar piadas racistas”.
Brad contou que “foi constrangedor para a universidade. Eles não gostavam de estar na primeira página do jornal como envolvidos em racismo horrível e antissemitismo”.
Mesmo assim, ele foi inundado com mensagens de apoio de usuários da Usenet. Recebeu, também, uma carta de um homem que dizia ser um nazista que havia lutado por Hitler e vivia no Canadá, e que disse “achar ótimo” que as pessoas estavam fazendo piadas sobre judeus.
“A universidade anunciou quase imediatamente que não toleraria ser um centro para esse tipo de material ofensivo e suspendeu a conta de Brad Templeton”, diz Luisa.
“Eu estava atormentado, não conseguia dormir bem”, diz Templeton.
Mas a vitória de Jonathan e Amir durou pouco.
Nada para fazer
“Essa foi a primeira vez que vi alguém em uma posição de autoridade tentando banir algo na Usenet, e lembro-me de ter pensado: ‘Que idiotas! Eles acham que podem banir. Não vai funcionar'”, disse o pioneiro da Usenet e cientista da computação Brian Reed, que na época era professor assistente de engenharia elétrica na Universidade de Stanford, no coração do emergente Vale do Silício.
“Todos os tecnólogos entenderam que a internet não tinha censura. Foi projetada para ser assim. Se você fosse proibido de fazer algo, nada mudaria porque outras cem pessoas continuariam com a tarefa.”
Vários usuários da Usenet se ofereceram para hospedar o site de Templeton, que ele reativou imediatamente.
Mas a batalha não tinha acabado.
Enquanto isso, na Califórnia…
O destino da piada antissemita estava prestes a ser alvo de nova disputa, desta vez na Universidade de Stanford, onde o veredicto afetaria a vida de todos que já usaram as redes sociais.
Na década de 1980, o campus de Stanford era um lugar bastante progressista. Mas havia um pequeno número de estudantes conservadores com um meio poderoso para fazer suas vozes serem ouvidas: o jornal universitário Stanford Review.
Seu editor foi Peter Thiel, mais tarde fundador do PayPal, e também um dos primeiros investidores no Facebook, Airbnb, LinkedIn, Yelp e Spotify, que por décadas personificaria a cultura libertária do Vale do Silício.
Nas páginas do jornal, ele e sua equipe lamentavam o politicamente correto, em meio a um clima tenso, de constante confronto de opiniões.
Erik Charles, estudante da universidade que também era fuzileiro naval e colaborava com o Stanford Review, conta no As Estranhas Origens das Guerras Culturais um caso que ilustra a polarização em voga no campus.
“Havia essa conversa no campus sobre se Beethoven tinha ancestralidade africana. E havia um estudante negro que era categórico sobre isso e dois outros estudantes que achavam que isso era ridículo. Havia um folheto de um concerto da música de Beethoven que estava para acontecer. Então eles adulteraram o folheto com todo tipo de estereótipo negro – um cabelo black power, lábios, não sei se fizeram o nariz também, e colocaram esse flyer perto da porta do dormitório da pessoa que tinha sido categórica dizendo que Beethoven era negro.”
Os dois alunos foram expulsos da residência universitária.
O caso levou vários estudantes a protestarem, pedindo a introdução de códigos de expressão, regras que proibissem o uso de determinadas expressões, para coibir racismo no campus. Erik Charles e Peter Thiel, no entanto, não achavam que o folheto justificava a expulsão de seus autores.
“Isso é o bastante para que te expulsem dos dormitórios?”, disse Charles. “Você poderia ter rasgado o folheto e jogado fora. Essas são as nossas novas regras? Esse é o nosso novo jogo? Você acredita ou não em liberdade de expressão?”
Em meio a essa atmosfera tensa, uma usuária da Usenet chamada June Janice, que trabalhava no Centro de Computação da Universidade de Stanford, se conectou à plataforma para ver a piada do dia de Brad Templeton.
Foi a piada antissemita. “Achei ela engraçada e então começou todo o alvoroço para saber se aquele tipo de material deveria estar ali”, disse June.
Para ela, o fechamento do site de Brad por causa da piada era “ridículo”, e ela contou isso a seu chefe John Sack, o diretor do Centro Computacional da Stanford, pensando que ele provavelmente também acharia aquilo uma tempestade em um copo d’água.
Mas Sack achou que o caso era sério, e que caberia a ele pensar em como a universidade deveria reagir à piada. Ela deveria mantê-la ou bani-la? O que pôs John Sack – dado que estávamos em Stanford no fim dos anos 1980 – em um momento chave da história.
“Stanford era pioneira em unir acadêmicos com a cidade da instituição”, contou Sack. “A ideia de que uma faculdade poderia criar empresas que se tornariam centros de excelência empresarial. Isso é de fato o nascimento do Vale do Silício. O poder intelectual de engenharia localizado em Stanford poderia essencialmente se tornar uma força da economia e dos negócios, não apenas uma força intelectual.”
Além do que, segundo Sack, “o uso de computadores estava começando em um contexto social, então estávamos navegando nas áreas cinzentas de quanto permitir que o computador fizesse por e para as pessoas”.
A piada de Brad Templeton seria o caso piloto perfeito. Os engenheiros de computação – os arquitetos da emergente internet – estavam assistindo.
“O curso não estava claro. Eventualmente, teríamos que tomar uma decisão.”
O ponto final
Após semanas de deliberação, foi anunciado que a página de Brad também seria banida em Stanford.
O motivo foi explicado em um ensaio detalhado. Resumindo, ele dizia que “o amor de Stanford pela liberdade de expressão” importava menos que “a busca coletiva por uma maneira melhor de reconhecer cada pessoa um indivíduo, não uma caricatura”.
A decisão, entretanto, causou grande indignação em um professor titular de Stanford, John McCarthy, acadêmico tido como um dos maiores nomes da computação na época e um dos fundadores do conceito de inteligência artificial.
McCarthy estava horrorizado com a ideia de que normas regulando a expressão se tornassem a regra na internet. Ele publicou uma réplica feroz ao banimento, chamando John Sack de “lacaio” que havia passado aquelas semanas não deliberando, “mas perdendo tempo”. Ele também lançou um abaixo-assinado online – um dos primeiros na história da internet – juntando 100 assinaturas na faculdade. Na época, assim como em muitas casos hoje, o abaixo-assinado online teve um efeito formidável. O banimento da página de piadas de Brad foi rapidamente revertido.
O argumento de John McCarthy, acredita John Sack, podia ser resumido assim: “Estamos explorando a vanguarda da computação aqui. Vamos continuar explorando, não tente interromper isso. Basicamente, precisamos descobrir as fronteiras da livre expressão trombando com elas ou as atravessando”.
Jon Ronson, que também é autor de livros como de Os homens que encaravam cabras, O teste do psicopata e Humilhado – Como a era da internet mudou o julgamento público, fecha essa história contada no podcast Things Fell Apart dizendo que “essa foi a internet com a qual vivemos pelas décadas seguintes – uma utopia de engenheiros libertários onde a liberdade de expressão floresce sem amarras, sem considerar os perigos que isso poderia causar à sociedade”.
“E por perigos eu me refiro não apenas a discursos ofensivos, mas também a fake news. E pelo fato de que liberdade de expressão sem restrições conduz a conflito, o que mantém as pessoas online por mais tempo do que harmonia, é uma ideologia lucrativa para as empresas de tecnologia.”
“E daquele dia em diante”, finaliza Ronson, “a internet, a seu modo terrivelmente particular, iria influenciar a ferocidade com a qual cada guerra cultural seria enfrentada dali em diante”.
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