- Author, J. Nicholas Reid*
- Role, The Conversation
As prisões são locais de sofrimento. Mas, em teoria, elas almejam algo além da punição: a regeneração.
Nos Estados Unidos, o objetivo de reabilitação de prisioneiros remonta, em parte, à inauguração em 1876 do Reformatório Elmira, no norte do Estado de Nova York.
Supostamente uma instituição de “regeneração benevolente”, o reformatório visava transformar os prisioneiros, não apenas privá-los [de liberdade] – embora o fundador Zebulon Brockway, conhecido como o “pai das correções americanas”, fosse notoriamente severo.
Mas a ideia de que a prisão e o sofrimento eram supostamente bons para o prisioneiro não surgiu no século 19. A evidência mais antiga remonta a cerca de 4.000 anos no passado: a um hino da Mesopotâmia, no atual Iraque, louvando uma deusa da prisão chamada Nungal.
Quase uma década atrás, como estudante de pós-graduação pesquisando a escravidão no início da Mesopotâmia, encontrei vários textos que tratavam do aprisionamento.
Alguns eram documentos administrativos que lidavam com informações contábeis cotidianas. Outros eram textos jurídicos, literatura ou cartas pessoais.
Fiquei fascinado com o aprisionamento nessas culturas: a maioria detinha suspeitos apenas brevemente, mas em textos literários e rituais, o aprisionamento era visto como uma experiência transformadora e purificadora.
A ‘casa da vida’
Por volta de 1.800 a.C. (antes de Cristo), estudantes treinados como escribas em Nippur, uma antiga cidade suméria (mais antiga civilização conhecida da região do sul da Mesopotâmia), frequentemente copiavam de uma seleção de 10 obras literárias.
Usando a escrita cuneiforme, esses aspirantes a escriba copiavam textos que incluíam as façanhas do lendário herói Gilgamesh enquanto ele lutava contra a fera Huwawa, o temível guardião da floresta.
Eles escreveram sobre um grande rei da Mesopotâmia chamado Šulgi, que afirmava ser um deus.
E enquanto o mestre escriba ditava esses vários textos, os alunos também ouviam falar de uma deusa da prisão chamada Nungal.
Embora sua justiça fosse inevitável, Nungal também era celebrada por sua compaixão. Sua “casa” trouxe sofrimento aos prisioneiros, cuja tristeza deu origem ao lamento. Por meio desse lamento, porém, os prisioneiros podiam ser purificados de seus pecados e se acertar com seus deuses pessoais, que eram seus protetores e mediadores perante os deuses maiores.
O “Hino a Nungal”, que data do segundo ou terceiro milênio a.C., detalha como um prisioneiro culpado condenado à morte não foi morto, mas arrebatado “das garras da destruição” e colocado na casa de Nungal, que ela chama de “casa da vida” – mas também um lugar de sofrimento, isolamento e dor.
Ainda assim, o hino descreve prisioneiros transformados por seu tempo na prisão.
A deusa diz que sua casa é “construída com compaixão, acalma o coração daquela pessoa e refresca seu espírito”.
Eventualmente, ela continua, eles lamentarão e serão purificados aos olhos de sua divindade.
“Quando tiver apaziguado o coração de seu deus por ele; quando o tiver polido como prata de boa qualidade, quando o tiver feito brilhar através do pó; quando o limpar da sujeira, como prata da melhor qualidade… ele será confiado novamente nas mãos propícias de seu deus.”
Fato ou ficção
Até que ponto os antigos acreditavam em tais histórias sobre os deuses permanece uma questão de debate. Textos como o “Hino a Nungal” eram assuntos de religião sincera ou apenas contos de fadas que ninguém levava a sério?
Por se tratar de um texto literário, também não é uma fonte confiável sobre o sistema de justiça.
Os reinos da Mesopotâmia durante esse tempo parecem ter usado prisões para deter suspeitos antes da punição, semelhantes às prisões que mantêm suspeitos antes do julgamento hoje.
Eles também detiveram pessoas para forçá-las a pagar uma multa ou dívida e para coagir ao trabalho – às vezes por mais de três anos. Mas a punição, que normalmente envolvia consequências físicas ou financeiras, não incluía tempo na prisão.
Ainda assim, a detenção implicava sofrimento, com um prisioneiro descrevendo a “prisão” como uma “casa de angústia ou fome” em uma carta escrita a seu superior.
Em outro texto, o remetente diz que foi solto, mas reclama de espancamentos sofridos por outro preso durante o processo investigativo – embora o remetente não mencione a natureza do suposto delito.
No entanto, os estudiosos Klaas Veenhof e Dominique Charpin encontraram evidências de Nungal desempenhando um papel no processo judicial.
Em alguns templos, os juramentos eram feitos na presença de uma rede de arremesso, semelhante à usada para lançar peixes, que simbolizava Nungal e a justiça inescapável.
A visão lançada no hino provavelmente foi dobrada em uma prática ritual posterior, onde a prisão foi usada para purificar o rei.
Durante o festival de Ano Novo, o rei foi despojado de suas insígnias e entrou em uma prisão improvisada feita de junco, onde ofereceu orações aos deuses por seus pecados. Por meio de orações e rituais, ele foi considerado purificado e apto a retomar seus deveres reais.
Ontem e hoje
Embora a maioria das pessoas não tenha passado longos períodos nas prisões da Mesopotâmia, elas sofreram nelas.
Talvez seja essa experiência que fez com que um texto como o “Hino a Nungal” fosse escrito, explorando como tal experiência poderia ser usada para reformar o prisioneiro por meio do lamento.
A noção de que a prisão pode ser boa é difundida, mas é correta?
A forma como os sistemas prisionais pensam sobre a regeneração é muito diferente hoje de como o “Hino a Nungal” a prevê.
No entanto, a poderosa ideia de que o sofrimento pode ser bom para os prisioneiros tem profundas raízes históricas – permitindo que os sistemas carcerários afirmem que o sofrimento dentro de suas paredes é compassivo [isto é, representa um ato de compaixão].
*J. Nicholas Reid é professor de Estudos do Antigo Testamento e do Antigo Oriente Próximo, no Seminário Teológico Reformado, em Jackson, nos Estados Unidos.
Fonte: BBC
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