Crédito, Emmanuel Lafont

Em 1805, uma artista inglesa pouco conhecida e professora de pintura amadora fez o que nenhuma mulher até então havia feito: publicar um livro sobre o tema da teoria das cores.

Embora poucos detalhes da vida e da carreira de Mary Gartside tenham sobrevivido, sua obra sem precedentes An Essay on Light and Shade, on Colours, and on Composition in General (“Ensaio sobre luz e sombra, sobre cores e sobre composição em geral”, em tradução livre) revela evidências de uma genialidade criativa extraordinária.

Modestamente apresentado pela autora como nada além de um guia para “as mulheres que me chamaram para ensinar pintura”, o estudo de Gartside é acompanhado por uma série de imagens surpreendentemente abstratas, diferentes de quaisquer outras produzidas anteriormente por um escritor ou artista de qualquer gênero.

À primeira vista, você poderia confundir facilmente as oito “manchas” de aquarela de Gartside com paisagens florais ampliadas que antecipam os estames e pistilos descomunais que a artista americana Georgia O’Keeffe começaria a explorar desmesuradamente mais de 100 anos depois.

Mas basta olhar novamente para estas ondas luminosas de quase pétalas, cuja vibração de cor não está presa a uma forma tangível, e qualquer certeza que você possa ter sobre o que estas imagens retratam ou significam começa a desmoronar.

Não são nem flores perfumadas colhidas do mundo real, nem flores imaginárias cultivadas na mente, as manchas abstratas de Gartside extrapolaram as fronteiras de si mesmas um século inteiro antes de a pintura abstrata se estabelecer nas telas mais conhecidas de Wassily Kandinsky, Kazimir Malevich e Piet Mondrian.

Crédito, Clive Boursnell

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‘Carmesim’, do livro de Mary Gartside

Mais uma metáfora para o resplendor das rosas do que rosas propriamente ditas, as manchas abstratas de Gartside tinham uma função teórica paradoxalmente precisa que desmente sua beleza amorfa.

Intitulados, por sua vez, “branco”, “amarelo”, “laranja”, “verde”, “escarlate”, “azul”, “violeta” e “carmesim”, estes experimentos evanescentes mostram cada “tonalidade em vários graus de saturação e mesclando-se de forma abstrata com outros”, explica a historiadora da arte Alexandra Loske em seu recente estudo Colour: A Visual History (“Cor: uma história visual”, em tradução literal).

O objetivo de Gartside era ilustrar as harmonias e tons contrastantes das cores primárias e secundárias de uma maneira mais orgânica, e talvez menos cientificamente distante do que as rodas de cores esquematizadas de seus famosos antepassados ​​do sexo masculino nesta área.

Embora suas manchas possam ter, como T.S. Eliot escreve no poema Burnt Norton, de 1936, “o ar de flores que são olhadas”, na verdade elas buscavam, à frente de seu tempo, se desfazer da pretensão autoconsciente da forma estabelecida, e, em vez disso, isolar a energia luminosa que tonifica nossa percepção de todas as coisas: a cor.

“As cores são os sorrisos da natureza”, escreveu o ensaísta romântico Leigh Hunt em 1840. “Quando estão extremamente sorridentes, e irrompem em outras belezas, são suas risadas; como nas flores.”

O que fica claro a partir dos estudos pioneiros de Gartside é que nenhum teórico nunca tinha ouvido mais atentamente a risada das cores do que ela.

“Não há outro exemplo de representação de sistemas de cores que seja tão inventivo e radical quanto as manchas de cores de Gartside”, escreve Loske.

Crédito, Charlotte Gann

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Loske quer garantir que Gartside receba crédito como pioneira no estudo das cores

Loske se dedica a devolver à história da arte as conquistas de escritoras e artistas mulheres esquecidas que, apesar de desencorajadas historicamente a assumir a paleta ou a caneta, conseguiram criar algumas das invenções estéticas mais fascinantes da história cultural.

“Se alguém for capaz de encontrar outra pessoa antes, ficaria muito feliz em saber”, diz ela à BBC Culture quando perguntada sobre o quanto está certa de que Gartside é a primeira autora feminina de uma teoria da cor.

“Ela é a primeira, sem dúvida, no mundo ocidental.”

A primeira

Loske se deparou com Gartside por acaso quando era estudante de pós-graduação, depois de conseguir uma bolsa de pesquisa no Royal Pavilion em Brighton, no Reino Unido, onde agora atua como curadora.

“Queriam que alguém se debruçasse sobre a teoria das cores. Passei muitos anos felizes fazendo este doutorado, e tudo o que consegui encontrar foram nomes de homens. Até que me deparei com esta única mulher, que era Mary Gartside. Apenas uma, e foi isso que realmente me incentivou”, ela recorda.

O pouco que sabemos sobre a vida e a carreira de Gartside pode ser resumido em uma frase ou duas.

Nascida em 1755, talvez em Manchester, no Reino Unido, ela acabou ensinando mulheres a pintar aquarela em Londres, e conseguiu exibir sua própria obra em pelo menos três ocasiões entre 1781 e 1809, pelo menos uma vez na Royal Academy.

No poema de Amy Clampitt, Balms (1980), que lembra um encontro casual com uma cópia das aquarelas de Gartside e a “suculência pungente e aveludada” dos “tons puros” que encarnam, a poeta americana lamenta a escassez de detalhes biográficos conhecidos sobre a criadora das pinturas, escrevendo versos que podem ser traduzidos como: “Mary Gartside / morreu, não consegui nem sequer / saber em que ano”.

Durante o lockdown imposto pela pandemia de covid-19 no ano passado, Loske continuou pesquisando e finalmente conseguiu, com a ajuda de colegas, precisar o ano: 1819.

“Foi particularmente bom descobrir isso”, diz Loske, “porque sempre pensei que ela havia morrido sem ter sido capaz de desfrutar de seu relativo sucesso”.

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O tratado de Goethe foi publicado cinco anos após as teorias de Gartside

Desafio à teoria de Newton sobre cores

O modesto ensaio de Gartside (que foi seguido três anos depois, em 1808, por uma edição revisada, na qual ela bravamente o renomeou como Um ensaio sobre uma nova teoria das cores e sobre a composição em geral) antecede em meia década o célebre tratado de Johann Wolfgang von Goethe, Teoria das Cores, de 1810, no qual o renomado poeta e crítico alemão procurou corrigir o que ele acreditava serem erros básicos na compreensão de Isaac Newton sobre nossa experiência de cor no mundo.

Assim como Goethe, que vinha desenvolvendo suas ideias há décadas, Gartside parecia discretamente determinada a recalibrar a conceito do espectro de cores que compõem a luz branca, de Newton, que o matemático inglês notoriamente descobriu quando era estudante durante um lockdown em decorrência da epidemia de peste bubônica em 1666.

“Chamar de ‘teoria’ é muito inteligente. Ela coloca isso em um contexto mais sério, algo que vai além de ser um manual de pintura. É mais interessante em termos de pegar ideias newtonianas e adaptá-las à pintura.”

“(A teoria) de Newton tinha a ver com cores imateriais, com dividir o arco-íris e com luzes coloridas. Alguém teve que adaptar todo este conhecimento fantástico à cor material, e ela faz isso lindamente”, afirma Loske.

O espectro de cores que Newton descobriu com seus prismas cuidadosamente angulados parecia muito mais encenado do que natural — tons de um intelecto obsessivo sob condições controladas artificialmente, em vez dos tons desgrenhados da realidade desordenada.

A insistência de Newton em curvar o arco-íris para acomodar uma sétima cor redundante, o índigo, para ficar ao lado do azul, meramente para garantir que houvesse tantas cores quantos planetas no céu e notas na escala musical, é muitas vezes apresentada como prova de que ele moldou o que seus olhos realmente viam para se adequar a um ideal aerado.

O século entre a publicação de Óptica: ou um tratado das reflexões, refrações, inflexões e cores da luz — em que Newton apresenta formalmente suas ideias — e os volumes de Gartside e Goethe sobre a teoria das cores na primeira década do século 18, seria palco de uma enxurrada de publicações de escritores e artistas dispostos a conciliar os conceitos clínicos de cor de Newton com os aspectos práticos de misturar pigmentos em uma paleta.

Reinventando a roda da cor

No centro de cada um destes esforços — empreendidos por todos, do pintor francês Claude Boutet, em 1708, ao entomologista britânico Moses Harris, em 1766, ao entomologista austríaco Ignaz Schiffermüller, em 1772 — estava uma releitura do, curiosamente incolor, disco de cores seminal, que Newton apresentou em sua Óptica.

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O disco de cores de Newton

Para Goethe, foi a incapacidade de Newton de reconhecer o papel fundamental que a escuridão desempenha na formação das cores que vemos na experiência cotidiana que motivou sua própria reformulação da roda de cores.

Em 1798, Goethe e o dramaturgo Friedrich Schiller colaboraram em um diagrama complexo que chamaram de “Rosa dos Temperamentos”, no qual as órbitas concêntricas de uma dúzia de cores e traços de caráter correspondentes giram em torno de um abismo escuro que se abre no centro do diagrama.

Por fim, esta roda elaborada daria lugar ao círculo de cores mais famoso e simplificado de Goethe, que ele criou em 1809 e incluiu no ano seguinte em sua própria “Teoria das Cores”.

As rosas abstratas de Gartside, que mais parecem estilhaços luminosos suspensos no meio de uma explosão do que esquemas científicos antiquados, são muito menos editorializadas ou cuidadosamente legendadas do que os círculos de Goethe.

Ao apagar as etiquetas que seus precursores do sexo masculino inseriram em seus diagramas, Gartside permite que os choques e harmonias de cores se manifestem por si só.

Ao fazer isso, ela reivindica o diagrama cromático como um documento puramente estético — uma obra de arte.

É tentador, dada a proximidade das datas de publicação dos estudos de Goethe e Gartside, se perguntar se poderia ter havido alguma polinização cruzada de ideias — ou se, de fato, a obra de Gartside teve alguma influência nas ideias ou práticas de artistas e teóricos posteriores. Quem vai poder dizer?

Mas é uma pergunta que Loske também se faz — ela acredita que há ecos da “dimensão abstrata das ilustrações de Gartside” nas de JMW Turner, que tem sido visto pelos historiadores como um precursor da arte abstrata.

Os dois artistas contemporâneos sem dúvida compartilham um fascínio pelo peso da cor sem gravidade separada da substância incidental.

“É provável que Turner sabia sobre o trabalho dela por meio de sua associação com várias sociedades de aquarela”, diz Loske, antes de admitir que “infelizmente, não há evidências disso”.

Crédito, Clive Boursnell

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As manchas Gartside romperam os círculos de cores dos teóricos anteriores

“Não há evidência disso” é o beco sem saída desanimador, embora familiar, a que chega qualquer crítico que tente avaliar a contribuição de artistas e escritoras do sexo feminino cujas realizações foram totalmente ignoradas, desprezadas de forma humilhante ou desonestamente não reconhecidas.

Estas são as três vertentes lamentáveis pelas quais a história cultural conspirou com frequência contra a genialidade das mulheres. É uma designação em que se encontra também o legado irresistível da artista e pintora americana Emily Noyes Vanderpoel, cujas notáveis ​​ideias e obras Loske também passou um tempo ressuscitando.

Assim como Gartside, um século antes, Vanderpoel, de Nova York, cercou-se de aquarelistas amadores e publicou um estudo de cor ilusoriamente despretensioso, cujas ilustrações internas, devidamente analisadas e reconhecidas, confundem a cronologia dos marcos da arte moderna.

O que distingue a obra de Vanderpoel, Color Problems: A Practical Manual for the Lay Student of Color, publicada em 1902, são sequências de “análises de cores” nas quais, “Vanderpoel decompõe uma imagem, um objeto ou um padrão de design em seus componentes cromáticos, e apresenta a cor principal resultante em uma grade quadriculada de 10 x 10, com a distribuição proporcional de cada cor para o total de 100 quadrados anotada abaixo”, escreveu Loske.

O resultado é uma série de esquemas impressionantes — matrizes semelhantes a QR Codes de pura cor pixelizada que antecedem as abstrações geométricas de Piet Mondrian e seus descendentes minimalistas.

Mensurar plenamente o significado de Vanderpoel ou Gartside para o desenrolar da história da arte exigirá o tipo de atenção acadêmica que é dispensada àqueles com um perfil de maior visibilidade — um dilema para o qual Loske está determinada a encontrar uma solução.

“Quero criar um cânone de mulheres que escreveram sobre cores”, diz ela sobre sua ambição mais ampla.

“Com as mulheres há toda uma série de problemas: a logística, como você obtém educação, como você obtém acesso a recursos, quem permite que você escreva, quem permite que você publique.”

A imagem que Loske está montando pacientemente, de cada figura feminina esquecida com um traço em sua tela, promete desafiar a imagem que temos na nossa cabeça sobre as paletas de quem realmente influenciou as formas de arte. Mal posso esperar para vê-la.

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