- André Biernath – @andre_biernath
- Da BBC News Brasil em Londres
Em tratamento contra o câncer há 12 anos, a jornalista e escritora Ana Michelle Soares é uma das maiores referências do movimento pela valorização dos cuidados paliativos no Brasil.
Com a recente piora de seu estado de saúde, ela precisou ficar internada praticamente o tempo todo durante os últimos três meses.
E foi durante uma conversa com amigos próximos que ela teve uma ideia: fazer uma bucket list, ou uma lista de coisas para fazer antes de morrer.
Entre os desejos, Ana Mi — como é conhecida — incluiu coisas como “fazer algo perigoso”, comer alguns pratos específicos e repetir experiências simples, como rever o cachorro e dormir mais uma vez em casa.
Assim que compartilhou a lista num grupo de WhatsApp, familiares e amigos se mobilizaram para realizar cada um dos desejos dela — e criaram uma rede de apoio que envolveu até a cantora Duda Beat, o chef de cozinha Rodrigo Oliveira e a professora de filosofia Lúcia Helena Galvão.
“Esse momento que estamos vivendo mostra o sucesso absoluto de uma vida. No auge da fragilidade, ela foi capaz de tomar decisões sobre o que é importante e sagrado para si mesma”, comenta a médica Ana Claudia Quintana Arantes, amiga de Ana Mi e fundadora da Casa Humana, uma instituição que trabalha com reabilitação e cuidados paliativos.
‘Posso estar morrendo, mas estou gata’
Em outubro de 2021, a BBC News Brasil publicou uma reportagem sobre os erros e os mitos a respeito dos cuidados paliativos e do tratamento de doenças graves no país.
Ana Mi foi uma das personagens da matéria e compartilhou um pouco de sua história numa entrevista.
Ela contou que recebeu um diagnóstico de câncer de mama em 2011, quando tinha 28 anos de idade.
Quatro anos depois, em 2015, os exames mostraram que o tumor havia se espalhado para outras partes do corpo, num processo conhecido na medicina como metástase.
Com bom humor, Ana Mi lembrou de um episódio logo depois de receber essa notícia há oito anos. Ela se preparava para ir à balada, colocou um vestido vermelho, se olhou no espelho e pensou: “Posso estar morrendo, mas estou bem gata.”
“À época, eu vi no prontuário médico que, a partir dali, o objetivo do meu tratamento era ‘paliativo'”, relatou.
“Aquela palavra soava estranha para mim, era como se eu estivesse morrendo. E eu me sentia bem.”
No final de semana após a balada, Soares resolveu entender melhor o que esse tal de paliativo realmente significava. “Quando finalmente compreendi, percebi que era algo óbvio, que deveria ter sido oferecido a mim desde o começo do meu tratamento”, disse.
“Decidi então começar a fazer cuidados paliativos por mim mesma. Fui atrás de terapia, suporte espiritual e resolvi muitas questões que me causavam sofrimento”, completou.
Nos últimos oito anos, Soares virou uma das vozes mais ativas do movimento paliativista brasileiro.
Ela lançou os livros Enquanto Eu Respirar, em 2019, e Vida Inteira, em 2020, ambos pela Editora Sextante, cuida da conta de Instagram @paliativas, que tem mais de 170 mil seguidores, e coordena a Casa Paliativa, um espaço de convivência para pacientes com enfermidades que ameaçam a vida.
“Eu posso até estar com uma doença grave. Mesmo assim, ainda vale a pena viver da melhor forma possível”, declarou à BBC News Brasil.
Arantes destaca que o trabalho de Ana Mi congrega e inspira pacientes em cuidados paliativos de todo o Brasil.
“Em 2019, quando montamos a Casa do Cuidar, resolvemos criar também a Casa Paliativa, e Ana Michelle foi a responsável por estruturar esse projeto, que reúne pacientes independentemente do tipo de doenças que eles têm”, diz a médica, que também é autora dos livros A Morte é um Dia que Vale a Pena Viver e Histórias Lindas de Morrer (Editora Sextante).
“Hoje, a Casa Paliativa tem um grupo de Facebook com mais de 2,3 mil participantes e um banco de 130 aulas disponíveis gratuitamente sobre dor, fadiga, ansiedade, insônia, sexualidade, suporte familiar, luto, desistir e outros temas relacionados ao sofrimento”, informa Arantes.
“Fizemos fóruns de cuidados paliativos para pacientes em que esperávamos 200 ou 300 pessoas. No total, foram 15 mil inscritos e algumas aulas tiveram mais de 8 mil participantes simultâneos”, completa.
Os últimos desejos
Numa nova entrevista à BBC News Brasil, realizada por telefone direto do hospital onde está internada, Ana Mi revelou que a ideia de criar uma bucket list veio a partir da história de uma grande amiga: Renata Lujan, que também teve câncer, foi ativista do setor e morreu em 2018.
“Mesmo com a Renata muito mal, as pessoas fingiam que nada estava acontecendo. Todos sempre usavam o discurso de que logo ela ficaria melhor e sairia daquela condição”, lembra.
“Ninguém entendia que ela estava numa situação grave e precisava de uma rede de apoio, com momentos para dar risada, brincar, falar besteira… Ou seja, deixar de tratá-la com aquele ar morimbundo, para encará-la como uma pessoa viva”, explica.
O termo em inglês bucket list vem da frase kick the bucket, ou “chutar o balde”, em tradução livre. Trata-se de uma figura de linguagem equivalente ao “bater as botas” em português.
Essa expressão, inclusive, serviu de título para um filme de 2007, lançado no Brasil como Nunca É Tarde Demais. A história, estrelada por Morgan Freeman e Jack Nicholson, acompanha dois amigos em estado terminal, que resolvem fazer uma viagem e cumprir uma lista de desejos antes que ambos “chutem o balde” — ou “batam as botas”.
“A Renata tinha pouco tempo de vida, mas conseguimos fazer muitas coisas que eram importantes para ela”, diz Ana Mi.
Entre os desejos que puderam ser realizados a tempo, Renata conseguiu visitar os campos de lavanda de Cunha, em São Paulo, e recebeu a benção do padre Fábio de Melo, de quem era grande admiradora.
“Sempre me incomodou muito o fato de as pessoas só homenagearem alguém querido depois da morte. É só nesse momento que vemos aquelas postagens nas redes sociais, que repetem os mesmos discursos de sempre”, aponta Ana Mi.
“Por que não dizer isso para a própria pessoa, enquanto ela ainda está viva?”, questiona.
Foi a partir dessa experiência prévia — e do agravamento de seu quadro clínico e do esgotamento das opções terapêuticas contra o câncer — que a ativista resolveu montar sua própria bucket list. Entre os desejos, ela listou:
- Fazer algo perigoso;
- Comer dobradinha do [restaurante] Mocotó e da mãe, polvo da Gê e “arroz imoral” do Tom [dois amigos];
- [Participar da] Festa na Vila inFINITO;
- Dormir mais uma vez em casa;
- Ver o documentário;
- Conhecer [a professora de filosofia] Lúcia Helena Galvão pessoalmente;
- Ver o Malbec [cachorro]
O empreendedor social Tom Almeida, amigo próximo da ativista, relata que a mobilização em torno da bucket list aconteceu de forma orgânica. Segundo ele, amigos, familiares e admiradores se voluntariaram para ajudar e se organizaram a partir de um grupo de WhatsApp criado pela própria Ana Mi.
Uma das primeiras surpresas foi a criação de um clipe musical, em que a cantora Duda Beat faz uma versão da canção Bixinho, uma das preferidas de Ana Mi.
A artista, inclusive, gravou uma mensagem em que “deseja muita luz e muito amor” para a ativista.
Em um dos trechos, a música diz: “É já que estamos aqui/ Vamos aproveitar/ O tempo que nos resta.”
Além da artista, várias pessoas também participaram da ação: elas enviaram vídeos em que cantam e dançam o hit de Duda Beat.
“Toda essa comoção é bonita e divertida, com muitas pessoas contribuindo e celebrando ao mesmo tempo”, resume Almeida, que também é fundador do Movimento inFINITO, especialista em luto e ativista dos cuidados paliativos.
“Muitas pessoas vivem esse momento crítico, com risco de perder a vida, e não falam sobre. A morte ainda é um grande tabu”, constata ele.
“Mas existe vida até o último momento. Ao cumprirmos a lista, estamos celebrando isso e gerando uma onda de amor e de reconhecimento sobre tudo o que Ana Mi construiu e inspirou”, complementa.
Outra meta concluída recentemente foi a de comer dobradinha preparado no restaurante Mocotó, localizado na capital paulista.
O responsável pelo prato, o chef Rodrigo Oliveira, gravou um vídeo em que fala sobre o envio da marmita e deseja que o prato “traga um gosto de casa e um gosto do Nordeste”.
Para Almeida, o trabalho de Ana Mi é capaz de “legitimar o papel dos pacientes em cuidados paliativos”.
“Muitas vezes, as associações do setor focam muito naqueles indivíduos que conseguiram se curar, o que de fato é maravilhoso”, diz.
“Mas também devemos prestar atenção naqueles que não tem a possibilidade de cura. Eles ainda têm a vida. E a Ana Mi consegue trazer tudo isso de forma poética e bem humorada”, define.
Arantes concorda. “Não existe fracasso no processo de adoecimento e de finitude. Temos que parar de dizer que ‘fulano perdeu a batalha contra o câncer’. Falar isso é vergonhoso”, critica.
Pré-estreia no hospital
Outro desejo de Ana Mi foi o de assistir um documentário sobre longevidade chamado Quantos Dias, Quantas Noites, produzido pela Maria Farinha Filmes, para o qual ela deu entrevistas.
“Eu sempre brincava com o Cacau Rhoden [o diretor]: ‘Se eu morrer antes de ver o filme, eu te mato'”, diz ela.
O problema é que o documentário está em fase de finalização e só deve ser lançado daqui a alguns meses.
“Eu fiquei muito honrado de ela colocar o filme na bucket list. Não tivemos nenhum tipo de vaidade ou narcisismo em querer revelar o material só quando ele estivesse totalmente finalizado”, relata Rhoden.
“Como a Ana Mi estava na UTI [Unidade de Terapia Intensiva], pensei que iríamos mostrar a versão na tela de um computador. Mas os amigos e a equipe do hospital resolveram fazer uma verdadeira sessão de cinema”, conta o diretor.
No dia 6 de janeiro, toda essa turma decorou o auditório do Hospital Nove de Julho, na capital paulista, com direito a balões, cartazes e pipoca.
Ana Mi foi então transferida com todos os cuidados da UTI para o local de exibição. Ao entrar na sala, foi ovacionada, relatam os amigos e profissionais da saúde presentes.
“Foi uma das experiências mais emocionantes e loucas da minha vida”, admite Rhoden.
“O filme traz uma perspectiva completamente diferente sobre a longevidade, não apenas como essa busca incessante por chegarmos a uma idade avançada, mas também por meio da intensidade e da relatividade do tempo”, diz.
“E a história da Ana Mi traz uma provocação reveladora e contundente sobre como nós nos relacionamos com o tempo que temos”, completa.
O diretor diz que conhecer a escritora e ativista o transformou completamente. “Nunca mais serei o mesmo. Ela carrega uma força de inspiração que jamais vi. Mesmo com o agravamento da doença, ela traz uma pulsão de vida exuberante.”
Arantes avalia que toda essa experiência também ajuda a refletir sobre o que é ter sucesso na vida.
“Para mim, esse sucesso não significa morrer velhinho e saudável, com o colesterol controlado, sem nunca ter sido diagnosticado com câncer, doença cardíaca ou osso quebrado. Sucesso é chegar no final da vida com a capacidade de fazer um grupo de WhatsApp para que as pessoas viabilizem os seus sonhos”, afirma.
“O que a Ana Mi faz é despertar o melhor de nós. Ela transforma milhares de vidas por meio do amor, da responsabilidade de abraçar uma causa e de ser dona da própria vida, mesmo que o corpo já esteja frágil.”
Outras ações relacionadas à bucket list já atendidas foram a visita da professora de filosofia Lúcia Helena Galvão e uma campanha de doação de sangue entre seguidores e admiradores.
O que são os cuidados paliativos?
Em resumo, cuidados paliativos são uma área que lida com o sofrimento gerado pelo diagnóstico e pelo tratamento de uma doença que ameaça a vida.
“Muitas vezes, o paciente morre na UTI [Unidade de Terapia Intensiva], longe de seus familiares e submetido a procedimentos que causam angústia e não vão mais salvar a vida dele”, apontou.
O paliativista atua junto do enfermo e de toda a sua família para aliviar possíveis focos de aflição e garantir o mínimo de bem-estar, dignidade, autonomia e independência neste momento.
Para Crispim, os profissionais de saúde ainda carregam uma noção muito equivocada do que é cuidar de alguém.
“A nossa medicina é condicionada a entregar três coisas como valor: exames, medicamentos e procedimentos”, disse.
“Mas há um limite de até onde a medicina vai e nós podemos, sim, prover um outro tipo de cuidado, que aproxima e conecta as pessoas sem ‘abandonar’ o paciente”, completou.
“A sociedade tem um entendimento de que fazer intervenções é sempre bom e deixar de fazer é ruim. No cuidado paliativo, nós também prescrevemos tratamentos e procedimentos, mas nosso objetivo principal não é mais o controle da doença ou a cura”, resume Arantes.
Que fique claro: a decisão sobre fazer ou não determinado tratamento depende de uma conversa franca e honesta, que envolve toda a equipe médica, o paciente (se ele estiver consciente) e a família. A partir dessa reunião, é possível chegar a um consenso e tomar uma decisão em conjunto sobre o melhor caminho a seguir.
Ao contrário do que diz o senso comum, os cuidados paliativos não são indicados apenas no final da vida — e idealmente eles devem estar presentes desde o momento do diagnóstico de uma enfermidade que traz sofrimento e é potencialmente fatal (como o câncer e as doenças cardíacas, neurológicas, renais…).
Morte como conselheira
Ana Mi entende que toda a comoção e as homenagens das últimas semanas têm a ver com aquilo que ela construiu.
“Penso que sou uma pessoa que sempre está à disposição. E isso é algo que a gente escolhe estar. Eu estou sempre à disposição da vida”, explica.
Questionada pela BBC News Brasil sobre como esses 12 anos recentes transformaram sua visão de mundo, Ana Mi destaca que “a morte se tornou uma grande conselheira”.
Mas quais seriam os conselhos que ela aprendeu com a morte nesse período?
“O primeiro deles é não perder tempo”, responde.
“E o segundo é apreciar a vida da forma como ela se apresenta”, conclui.
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