- Author, Sanchia Berg
- Role, BBC News
A família de um homem negro assassinado no Reino Unido em 1959 está reivindicando acesso aos documentos do arquivo da polícia ligados ao caso – que nunca foi esclarecido.
Kelso Cochrane foi esfaqueado até a morte em uma rua do oeste de Londres, no que se acredita ter sido um ataque racista. Ninguém jamais foi acusado do crime.
A Polícia Metropolitana de Londres, a Scotland Yard, diz que o arquivo não está disponível ao público porque o caso ainda está aberto.
O advogado da família diz que esse sigilo não se justifica, e a família se diz disposta a tomar as medidas legais necessárias.
O assassinato é um dos eventos mais significativos da Black British History, a história dos cidadãos britânicos que se mudaram para o Reino Unido, no século passado, de ex-colônias do Caribe e da África.
Na época em que foi morto, o homem de 32 anos morava em Londres, trabalhava como carpinteiro e planejava estudar direito.
Kelso Cochrane nasceu em Antígua e chegou à Inglaterra cinco anos antes de sua morte, após uma passagem pelos Estados Unidos. Ele havia se casado lá, mas o relacionamento havia acabado.
Ele também havia deixado duas filhas pequenas nos Estados Unidos, para quem ainda enviava brinquedos — bonecas, jogos de chá e cordas de pular. Uma delas, Josephine, diz que essas “pequenas coisas” lhe davam “a impressão de que ele era um pai amoroso e que se importava”.
Como muitos outros membros da geração Windrush (como eram chamados os migrantes que vieram, após a Segunda Guerra, do Caribe), Cochrane morava na área de Notting Hill, no oeste de Londres. Era uma das poucas partes da cidade onde os novos imigrantes do Caribe podiam encontrar moradia, embora muitas vezes fosse cara, superlotada e em más condições. A área também abrigava uma população da classe trabalhadora branca bem estabelecida.
Na noite de 16 de maio de 1959, Cochrane fez uma visita ao hospital local, Paddington General. Ele tinha sofrido uma lesão no polegar durante o trabalho.
No caminho de volta para casa, ele foi atacado por um grupo de cinco ou seis jovens brancos. Testemunhas disseram que viram ele sendo cercado e espancado. Um agressor chegou a pular nas costas dele.
Dois homens jamaicanos que passavam pelo local correram para ajudar. Cochrane conseguiu se levantar, foi colocado em um táxi e levado para o Hospital St Charles, nas proximidades de North Kensington.
Cochrane não parecia estar sangrando muito, mas ele havia sido esfaqueado no coração com uma lâmina fina. Quando chegaram ao hospital, ele estava em estado de choque. Ele morreu lá, pouco antes da 1 da manhã.
Por volta das 4 da manhã, a notícia da morte chegou aos jornais. Uma edição tardia do Sunday Express daquela manhã trazia uma manchete chamativa: “Assassinato em Notting Hill”.
Notting Hill já era uma região conhecida pela tensão racial. No verão anterior de 1958, a região registrou tumultos que duraram dias.
Os confrontos terminaram no início de setembro, mas para os moradores negros, a corrente de violência persistiu.
Grupos de extrema-direita tornaram-se ativos na região, incluindo o Movimento Sindical de Oswald Mosley. Na primavera de 1959, outro grupo, a White Defense League, montou um escritório no coração de Notting Hill, dizendo que faria “campanha pelos interesses dos brancos”.
Mas, apesar de toda a tensão, ninguém havia sido morto em um ataque racista — até Kelso Cochrane.
O inquérito policial foi conduzido por Ian Forbes-Leith, com uma equipe de 20 oficiais à disposição.
A investigação rapidamente se concentrou em uma festa, que ocorria perto de onde Cochrane foi atacado. Vários convidados foram interrogados.
Dois deles foram detidos por mais de 48 horas — Patrick Digby, um marinheiro mercante de 20 anos, e John “Shoggy” Breagan, de 24. Mais tarde, eles foram libertados sem serem indiciados.
A polícia foi rápida em descartar a ideia de que o crime teria sido motivado por racismo. Forbes-Leith disse à imprensa que o esfaqueamento “não teve absolutamente nada a ver com conflito racial”. Ele sugeriu que o motivo poderia ter sido roubo.
Mas não era isso o que pensavam muitos na comunidade negra de Notting Hill. John Prince, amigo de Cochrane, disse à BBC em 2006 que o clima, na época, era de medo: “De repente, agora você se depara com a possibilidade de ser assassinado apenas por ser quem você é como pessoa”.
Em 6 de junho de 1959, centenas de pessoas — negras e brancas — se reuniram para o funeral de Cochrane em uma procuissão pelas ruas de Notting Hill, seguindo seu caixão até o cemitério de Kensal Green.
Após o assassinato, a ativista Claudia Jones e outros colegas criaram o Conselho de Coordenação de Amizade Interracial, que pagou os custos do funeral de Cochrane, organizou protestos silenciosos em frente à sede do governo em Whitehall e pressionou por leis contra o ódio racial.
Com o tempo, o inquérito policial foi arquivado.
Décadas depois, em 2006, o irmão mais velho de Cochrane, Stanley, veio, pela primeira vez, à Inglaterra. Ele queria descobrir quem matou o irmão dele. Uma equipe que fazia um documentário para a BBC o acompanhou.
O jornalista investigativo Mark Olden rastreou Patrick Digby e John Breagan, mas nenhum dos dois estava disposto a se encontrar com Stanley. Ambos negaram envolvimento no crime. Stanley pediu para ver o arquivo da polícia, mas só teve permissão para acessar uma versão resumida.
Entre os que assistiram ao documentário estava a enteada de Patrick Digby, Susie Read. Ela contatou Olden e disse a ele que se lembrava dos amigos de Digby o provocando com um nome estranho – “Oslo” ou “Kelso”.
Ela nos disse que, certa vez, durante uma discussão, ela questionou Digby sobre a acusação: “Ele disse: ‘Bem, se eu tivesse feito isso, você nunca poderia provar.’ Eu disse, ‘Você o matou? Ele disse, ‘Sim’.”
Digby morreu em 2007.
Olden continuou cavando. Ele falou com um convidado na festa da Southam Street, que lhe disse que Digby havia voltado à festa após o ataque e confessou (o ctrime) às pessoas presentes.
Ele falou novamente com John Breagan, que disse que ele e Digby haviam deixado a festa juntos antes do assassinato. Quando questionados pela polícia sobre o motivo, um deles disse que era para procurar garotas, o outro disse que era para brigar. Mas, quando foram detidos na delegacia, eles foram mantidos em celas adjacentes. Breagan disse a Olden que isso permitiu que eles “alinhassem” suas histórias. Breagan morreu em 2019.
Em 2011, Olden publicou um livro, Murder in Notting Hill, que levou a filha de Kelso Cochrane, Josephine, a contatá-lo. Crescendo em Nova York, ela sabia que o pai havia morrido, mas não sabia. até então, que ele tinha sido assassinado.
Josephine está agora no centro dos esforços da família para abrir os arquivos da polícia. Ela nos disse que, como não conhecia o pai dela quando criança, queria saber “tudo” sobre o assassinato e a investigação “antes de morrer”.
O arquivo de investigação sobre o assassinato de Kelso Cochrane foi transferido para os Arquivos Nacionais em Kew, mas permanecerá fechado até 2054 — após o 100º aniversário de Josephine.
Não é incomum que casos de assassinato não resolvidos sejam restritos por até 100 anos — para que eles só se tornem públicos depois que todos os envolvidos morreram.
Mas alguns arquivos de assassinatos não resolvidos em Londres no mesmo período foram abertos, como o de Freda Knowles, assassinada em 1964, ou Ernest Isaacs, morto a tiros na casa dele em 1966.
O historiador de crimes Mark Roodhouse, da Universidade de York, usa arquivos policiais de meados do século 20 para suas pesquisas. Ele diz ter ficado surpreso ao saber que o acesso ao arquivo Kelso Cochrane ainda é restrito.
Na primavera de 2020, fiz meu próprio pedido baseado na lei de Liberdade de Informação para que o arquivo Cochrane fosse aberto antecipadamente, por motivos de interesse público.
Consegui abrir outros arquivos com antecedência, principalmente dezenas de arquivos sobre abuso sexual infantil logo após o escândalo de Jimmy Savile (conhecido apresentador de rádio e TV que abusou sexualmente de centenas de pessoas impunemente).
Na ocasião, porém, meu pedido foi recusado.
A Polícia Metropolitana disse então que o caso Cochrane ainda estava aberto e que “novas técnicas científicas” significavam que “casos até então considerados insolúveis estão sendo examinados novamente”.
Também me disseram que liberar os arquivos causaria “sofrimento mental imediato” à família. No entanto, é a família de Cochrane que agora deseja que o arquivo seja divulgado.
Além do mais, os principais suspeitos estão mortos e é difícil apontar para qualquer evidência que pudesse, hoje, ser examinada por “novas técnicas científicas”. A equipe de documentários da BBC foi informada em 2006 que as roupas de Kelso Cochrane haviam sido destruídas no final dos anos 1960.
Voltamos à Polícia Metropolitana nos últimos meses, pedindo que eles explicassem por que a família Cochrane não conseguiu acessar o arquivo. Eles nos disseram que “como acontece com todos os assassinatos não resolvidos, este caso não está encerrado e qualquer evidência que vier à tona será avaliada e investigada de acordo”.
Eles disseram que membros da equipe responsável pelo caso tentaram, sem sucesso, se encontrar com a família de Cochrane, para discutir os detalhes dessa investigação de assassinato.
Daniel Machover, advogado da família Cochrane, diz que a família seguirá um caminho formal para obter o arquivo — contestando os motivos anteriormente apresentados para retê-lo.
Machover reuniu várias declarações para apoiar o pedido, de parentes de Kelso Cochrane e de jornalistas que tentaram obter acesso ao arquivo durante muitos anos, inclusive eu.
Machover também forneceu os atestados de óbito dos principais suspeitos e de outras pessoas que provavelmente foram testemunhas importantes no caso.
Ele diz que é tarde demais para a justiça criminal, mas a família espera que haja algo no arquivo que “pelo menos dê a eles uma imagem, um sabor, uma ideia do que foi feito para tentar garantir uma acusação criminal e um processo criminal”.
Machover representou muitas famílias negras em ações contra a Polícia Metropolitana. Ele acredita que é preciso reconhecer os acontecimentos do passado para lidar com a desconfiança hoje.
Comparações foram feitas com o assassinato em Londres do adolescente Stephen Lawrence, em 1993 — em ambos os casos, houve relutância por parte da Polícia Metropolitana em apontar o racismo como motivação, e uma falha inicial em indiciar alguém pelos crimes.
A menos de um quilômetro de onde foi atacado, uma rua recebeu o nome de Kelso Cochrane, assim como um novo bloco de habitação social.
Os membros da família Cochrane agradecem o reconhecimento, mas ainda querem algo mais.
Millicent Christian, filha do primo de Cochrane, diz que a mãe de Stephen Lawrence, Doreen, acabou alcançando “algum tipo” de justiça. “Estamos procurando o mesmo para o nosso Kelso.”
Fonte: BBC