- Fatima Kamata
- De Tóquio (Japão) para a BBC Brasil
Durante o ano inteiro, eles não comiam carne às sextas-feiras, assim como em toda a Quaresma. Na Sexta-feira Santa mantinham-se em silêncio absoluto do meio dia às 15 horas, e desde a quinta à tarde falavam apenas em voz baixa. As crianças não podiam brincar nem cantar.
Esses eram alguns dos costumes de cristãos japoneses que se instalaram no Brasil na primeira metade do século 20. Naquela época, a pobreza rural assolava o Japão, onde as cidades cresciam e se modernizavam rapidamente, em contraste com o campo que continuava com o sistema feudal de séculos atrás.
Com o cenário econômico desfavorável, a emigração foi a opção encontrada por milhares de japoneses que ao longo de mais de um século fizeram do Brasil o país com a maior população de origem nipônica fora do Japão (cerca de 2 milhões), segundo o Ministério das Relações Exteriores do Japão.
A história do catolicismo no Japão começou com a chegada dos jesuítas em meados do século 16. Enfrentaram quase 300 anos de rígidas proibições, perseguições e execuções que levaram muitos a renunciarem sua fé ou então a praticarem a religião como kakure kirishitan, na clandestinidade.
O número de católicos no país asiático não alcança hoje 1% da população de 126 milhões de habitantes.
Os descendentes desses cristãos clandestinos, que conseguiram viver às margens da sociedade sob a rígida proibição imposta pelo xogunato Tokugawa, entre 1614 e 1873, têm uma profunda relação com a imigração japonesa para o Brasil, ocorrida no início do século 20.
“E contrastando com os anos de silêncio e isolamento no Japão, eles tiveram um papel ativo na comunidade, construindo escolas, igrejas, e ajudando os demais imigrantes a se adaptarem à sociedade brasileira”, diz o cientista de dados residente em Cingapura, Edson Aoki.
“Meus ancestrais também eram parte dessa minoria em sua própria terra natal.”
Segundo ele, a fé católica unia os imigrantes católicos em um poderoso espírito de comunidade e lhes dava um propósito maior, além de ajudar na integração do grupo à sociedade brasileira.
“Comparado com os demais conterrâneos, os imigrantes de Imamura se tornaram proficientes em língua portuguesa mais rápido”, diz.
“A nossa comunidade tem uma história de 450 anos: sobreviveu a séculos de perseguição no Japão e depois, tendo migrado, se adaptou e prosperou no Brasil e em outros países”, afirma.
As origens: a vila de Imamura
Entre os que emigraram, destacam-se os grupos originários de Imamura, uma pequena vila da cidade de Tachiarai, na Província de Fukuoka, no sul do Japão, onde viviam muitos cristãos clandestinos descobertos por missionários franceses.
Em 1867, eles constataram a presença de 500. Com a liberação total da prática cristã no Japão, o número saltou para 2.713 católicos em Imamura e adjacências em 1912, ano em que a primeira leva de católicos partiu para o Brasil.
No ano seguinte, outro grupo tomou o mesmo rumo, incentivado pelo padre Tamotsu Honda, um descendente de cristãos da Província de Nagasaki que professavam a fé na clandestinidade.
Diante da situação difícil enfrentada pelos japoneses, ele encorajou os fiéis para emigrar, argumentando que no Brasil as terras eram boas e podia-se praticar a religião de maneira livre.
Quase todos os que embarcaram tinham o sobrenome Aoki ou Hirata, uma das primeiras famílias no Japão a se converterem ao catolicismo, há cerca de 400 anos. Os bisavós paternos de Edson também saíram de Imamura em direção ao Brasil (uma parte em 1912 e a outra, em 1914).
Diferente da maioria dos conterrâneos que levaram na bagagem objetos íntimos e pequenos instrumentos de trabalho, como de costura no caso das mulheres, os imigrantes católicos japoneses carregaram na mala itens para a prática religiosa, como véu, crucifixo, terços, evangelho e missal, de acordo com estudos feitos pela professora Iolanda Toshie Ide, filha de um dos pioneiros de Imamura.
Seu pai, Simeão Sadame Hirata, fez parte dos católicos que emigraram em 1913. Como seus pares, ele tinha um nome de batismo e um sobrenome comum daquela região. No período de perseguição, os fiéis de Imamura se casavam entre si para que não fossem denunciados e reprimidos por questão religiosa, a ponto de todos possuírem o sobrenome Hirata ou Aoki.
Os padres proibiam o casamento entre parentes próximos para evitar a consanguinidade.
“Para se casar, minha mãe chegou em 1925 de Imamura, com um documento manuscrito pelo padre atestando a inexistência de parentesco com o noivo”, diz Iolanda, que só não nasceu Hirata porque, ao se casar, seu pai adotou o sobrenome da esposa por ela ser filha única.
Na nova terra, os católicos procuraram se manter próximos e professar sua fé. “Além de participar da missa, meus pais rezavam diariamente o terço em língua japonesa”, lembra eIa.
Catequese dos imigrantes
Preocupada com a evangelização dos japoneses que tinham emigrado, a Companhia de Jesus começou a enviar jovens europeus, sobretudo alemães, para se formarem no Japão e depois atuarem como missionários entre os grupos de imigrantes.
Havia também os missionários japoneses, como o Monsenhor Domingos Chohati Nakamura, enviado ao Brasil em 1923.
Ao longo de 17 anos ele percorreu os Estados de São Paulo, Mato Grosso, do Paraná e a região sul de Minas Gerais para a evangelização. Batizou 1.750 pessoas (1.304 japoneses, 440 brasileiros e 6 mestiços) até falecer aos 76 anos de idade, no interior paulista.
Para o batizado, como padrinhos muitas vezes eram escolhidas pessoas influentes do local, prática que teria contribuído para uma integração mais rápida desses imigrantes na sociedade brasileira.
Segundo a professora Iolanda, havia uma certa rigidez, por exemplo no prazo para batizar crianças (até três dias após o nascimento), assim como locais separados por sexo nas igrejas e nos centros comunitários. A missa era celebrada em latim e as demais devoções geralmente eram feitas no idioma japonês.
Nos primeiros anos de Brasil, os imigrantes católicos ficaram em regiões diferentes do Estado de São Paulo, mas, com o passar do tempo e a possibilidade de adquirir terras, eles acabaram se aglomerando em Promissão, no interior de São Paulo, e adjacências.
Essa cidade de pouco mais de 40 mil habitantes e cujo nome faz referência à bíblica Terra Prometida recebeu 78 famílias japonesas de Imamura e de diversas partes de Nagasaki. E foi no bairro Gonzaga, na zona rural do município, que eles construíram uma igreja em esquema de mutirão comunitário.
Mártires no Japão
De acordo com o engenheiro Hermiro Yamaguti, outro descendente de cristãos ocultos, as comunidades católicas de imigrantes e de evangelizados pelos padres vindos do Japão ergueram as suas capelas, porém de madeira. As construções posteriores de igrejas em alvenaria foram realizadas por construtores.
Mas a Igreja do Cristo Rei dos 26 Mártires do Japão, no bairro Gonzaga, foi fruto do mutirão. O nome é uma homenagem aos missionários executados em Nagasaki, em 1597, durante a perseguição ao cristianismo promovida pelo Xogunato de Tokugawa.
Já o projeto arquitetônico é uma cópia da igreja São Miguel Arcanjo, que foi erguida em 1913 na vila Imamura em solo japonês. A réplica da obra no Brasil tinha um significado muito especial para os imigrantes, já que eles não puderam ver a obra pronta e poucos conseguiram retornar depois ao Japão.
Ao lado da igreja, foi erguida uma gruta em louvor à Nossa Senhora de Lourdes, semelhante a de Imamura, usando pedras de basalto trazidas em carroças do Salto de Avanhandava, a 50 quilômetros de distância.
De acordo com a professora Iolanda, as famílias reservavam o estritamente necessário para a sobrevivência e doavam tudo o mais para a construção da igreja. “Toda comunidade priorizou a fé, manifestada na construção do templo”.
Assim como os pais de Iolanda, as famílias de Edson Aoki e do cantor Joe Hirata também participaram do mutirão.
“O terreno da igreja era rodeado de cafezais e foi doado por minha família para a Companhia de Jesus, Ordem de São Francisco Xavier, que aportou em 1549 em Kagoshima para evangelização dos japoneses”, conta o engenheiro Hermiro.
Todos os envolvidos no grande projeto eram católicos, a maioria trabalhando na monocultura cafeeira e uma pequena parcela estabelecida como pequenos comerciantes. Sem qualquer experiência com obras, eles procuraram seguir fielmente a planta original da igreja de Imamura e sempre sob a coordenação dos padres enviados do Japão para assistir os imigrantes.
Como a edificação demandava enorme quantidade de tijolos, decidiram construir uma olaria anexa à obra e trazer argila, água e outros insumos em carroções puxados por juntas de bois. Os tijolos eram moldados e queimados pelos próprios imigrantes e todas as peças traziam uma marca de cruz ao centro.
Os confessionários e as portas confeccionados em madeira de lei extraída da mata da região eram entalhados pelos imigrantes. Após três anos de obras, a igreja ficou pronta para ser inaugurada em 1938.
Porém, com o enfraquecimento do solo e a queda da monocultura cafeeira, muitos daqueles imigrantes foram buscar outras terras férteis e a igreja ficou um tempo esquecida.
Ao visitar o bairro Gonzaga, depois de alguns anos, Hermiro Yamaguti diz ter se deparado com um cenário desolador, e decidiu então trabalhar pela recuperação do local.
“O meu principal objetivo é valorizar a fé, o trabalho e os sacrifícios dos imigrantes que foram em busca de uma vida melhor para todos nós”, diz.
Parte dos católicos que estavam em Promissão havia se mudado para Arapongas, no norte do Paraná, onde estabeleceram uma nova comunidade católica, a Colônia Esperança, e lá ergueram a Igreja Sagrado Coração de Jesus com a ajuda de imigrantes que doaram parte dos lucros da colheita para as obras.
O avô e o pai do cantor Joe Hirata, Kizo e Nicolau Yoshikatsu, também se envolveram com a construção.
“Eles ajudaram a levantar as duas igrejas, no Gonzaga e no Paraná. Agora falta eu fazer o mesmo para dar continuidade à tradição da família”, diz Hirata.
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