- Author, Greg McKevitt
- Role, BBC Culture
Filho de missionários cristãos escoceses, Eric Liddell nasceu na China, em 1902, e morreu no mesmo país, em um campo de concentração japonês, em 1945.
Ele jogou na seleção escocesa de rúgbi e ganhou a medalha de ouro para o Reino Unido nos Jogos Olímpicos de Paris, em 1924. Muitos anos depois, sua vida inspirou um filme vencedor do Oscar sobre suas conquistas esportivas.
Depois do seu sucesso olímpico espetacular, ele passou o resto da vida trabalhando como missionário, mesmo que a atividade o colocasse em perigo. Liddell morreu sem nunca chegar a conhecer sua filha mais jovem.
A vida de Eric Liddell foi extraordinária, marcada pela fé, tragédia e coragem.
Com cinco anos, Liddell viajou com seus pais da China para a Escócia. Ele foi enviado para a Escola dos Filhos de Missionários em Londres, hoje conhecida como Eltham College.
Em 1920, Liddell voltou à Escócia para cursar a Universidade de Edimburgo. As pessoas identificaram rapidamente seu notável potencial para o esporte e o jornal Glasgow Herald anunciou que ali estava um futuro campeão britânico.
O professor Neil Campbell (1903-1996), amigo de Liddell na universidade, conta que seu estilo de correr era fora dos padrões, mas não era desajeitado.
Em entrevista à BBC em 1984, ele disse: “É verdade que ele corria muitas vezes com a cabeça baixa. Agora, as pessoas perguntam, ‘bem, como ele via para onde ir?’ Mas, se você mantiver sua cabeça baixa, você pode ver perfeitamente o que está à sua frente.”
“Ele usava os braços de forma bastante agressiva e balançava um pouco – pelo menos, é o que parecia olhando de trás – como um trem expresso”, diz o professor.
Esportista com imensas qualidades, Eric Liddell jogou sete vezes pela seleção nacional de rúgbi da Escócia, entre 1921 e 1923. Mas era muito difícil treinar e competir em dois esportes de elite. Por isso, ele decidiu se concentrar no atletismo, onde já havia se estabelecido como um dos principais corredores do país.
Liddell foi selecionado para a equipe britânica que disputou os Jogos Olímpicos de 1924 e era um dos favoritos na sua prova mais forte, os 100 metros rasos.
No entanto, quando foi publicado o cronograma dos Jogos, as eliminatórias dos 100 metros estavam marcadas para um domingo, o que levou o corredor a fazer uma declaração surpreendente. Domingo era o Sabá Cristão, o Dia do Senhor – e nada neste mundo iria convencê-lo a correr.
No filme Carruagens de Fogo (1981), que conta a sua história, Liddell só fica sabendo que as eliminatórias dos 100 metros rasos seriam no domingo ao embarcar no navio para a França. Mas, na verdade, o programa foi divulgado vários meses antes.
Ainda assim, a licença criativa do filme reflete o drama causado na vida real pelos princípios do seu protagonista.
Voltando 60 anos no tempo, seu amigo e colega no atletismo Greville Young contou que, embora os conhecidos de Liddell soubessem dos seus fortes sentimentos religiosos, “aquilo causou enorme furor entre muitas pessoas, principalmente junto à imprensa e aos jornalistas”.
Repórteres bateram à porta do seu alojamento de estudante em Edimburgo, exigindo falar com Liddell. Segundo Young, “eles foram quase ameaçadores e houve gritos de ‘ele é um traidor do seu país’.”
Aquilo não perturbou Liddell, segundo seu amigo. “Ele simplesmente aceitou a situação e não me lembro dele nunca preocupado. Ele dizia: ‘É a minha crença. Não critico os outros a respeito, mas não vou correr no domingo.'”
A decisão de Liddell fez com que ele precisasse desistir da sua prova mais forte e se concentrar nos 400 metros. Em vez de correr em linha reta até a chegada, esta prova exige resistência para manter o ritmo por uma volta inteira na pista. Na época, ela recebia o nome de corrida de quarto de milha.
O atleta escocês Tom Riddell (1905-1998) contava que a distância maior expunha as idiossincrasias de Liddell, mas ele ainda conseguia confiar no seu ritmo eletrizante.
Riddell declarou para o documentário Eric Liddell: O Escocês Voador que “seu estilo de correr era ótimo, provavelmente até as últimas 200 jardas [180 metros], quando ele realmente precisava de um esforço maior”.
“A cabeça ia para trás e os ombros vinham para cima e, quando aquilo acontecia, os outros corredores podiam simplesmente dizer: ‘podemos desistir’.”
Liddell começou os Jogos de Paris com sucesso, conquistando o bronze nos 200 metros. Mas poucos acreditavam que ele conseguiria uma colocação melhor na final da distância mais longa, no dia 11 de julho de 1924, uma sexta-feira.
Quando soou o tiro de partida, Liddell impôs um ritmo intenso. Ele disparou até atingir a metade da distância em 22,2 segundos.
Lançando sua cabeça para trás, no seu estilo único, ele ampliou sua liderança e terminou a prova cinco metros à frente dos principais concorrentes. Seu tempo foi de 47,6 segundos.
Uma reportagem um tanto emocionada, publicada no dia seguinte pelo jornal The Times, de Londres, descreveu a prova como “provavelmente, a corrida mais dramática já vista em uma pista de atletismo”.
Tom Riddell contou à BBC que havia perguntado a Liddell sobre sua tática de corrida.
“Nas suas próprias palavras, ele disse: ‘Bem, quando o tiro soa, eu corro o máximo que posso e confio em Deus para ter forças para a segunda metade.’ E acho que realmente foi o que ele fez.”
Herói nacional
Liddell voltou à Escócia como herói. Imensas multidões foram recebê-lo e fãs adolescentes criaram clubes em sua homenagem.
Mas o chamado da vida religiosa foi mais forte que a sua carreira como celebridade esportiva. Por isso, ele decidiu rejeitar as glórias esportivas e se tornar missionário na China, como fizeram seus pais.
Além das suas tarefas religiosas, ele trabalhava como professor de Ciências e Educação Física no Colégio Anglo-Chinês de Tianjin, no norte da China. Em 1934, ele se casou com Florence Mackenzie (1911-1984), filha de missionários canadenses. Logo após o casamento, eles tiveram duas filhas.
Com o passar do tempo, a vida ficou cada vez mais difícil, em meio à guerra civil sendo travada no país (1927-1949). E tudo ficou ainda pior quando o Japão invadiu a China, em 1937.
As condições para os estrangeiros se deterioravam lentamente, mas Liddell insistiu em levar adiante seu trabalho missionário. Ele se mudou para uma aldeia ainda mais perigosa, devastada pela guerra.
No início da invasão, as tropas japonesas praticamente não abordaram os ocidentais residentes na China. Mas, em 1941, o governo do Reino Unido aconselhou que todos os cidadãos britânicos deixassem o país.
Liddell decidiu ficar, mas Florence, grávida da terceira filha do casal, viajou com as duas crianças em busca de uma vida mais segura no Canadá. Ele nunca mais as veria de novo.
Na época, sua filha Heather Liddell Ingram tinha três anos de idade. Em um documentário da BBC em 2012, ela reconheceu que costumava se perguntar por que seu pai não saiu do país com a família.
“Nossa vida certamente teria sido melhor e eu realmente não entendia, até que comecei a conhecer pessoas que estavam no campo quando eram crianças”, ela conta.
“Havia cerca de 500 crianças naquele campo sem seus pais, de forma que os professores e pessoas como meu pai eram muito importantes para elas – e eu consegui observar a situação como um todo.”
Em 1943, Liddell foi preso em Weihsien, um campo de concentração japonês para 1,5 mil prisioneiros, na província de Shandong, no leste da China.
Lá, ele ficou afetuosamente conhecido como tio Eric, graças à energia dedicada ao ensino das crianças, organização de atividades esportivas e auxílio aos demais.
Mas, no fim de 1944, seus colegas do campo observaram que ele parecia mais lento e cansado do que o normal. Os médicos o diagnosticaram com um tumor no cérebro.
Sua amiga e colega missionária Annie Buchan (1895-1988) ficou ao seu lado até o final. Ela contou aos produtores do documentário Eric Liddell: O Escocês Voador.
“De repente, ele disse: ‘Annie, é a entrega completa’ e aquele foi seu último suspiro. Ele entrou em coma e nunca mais se recuperou.”
Liddell nunca vacilou na sua fé cristã. “Ele foi um homem que se entregou a Deus por toda a vida e não acredito que tenha lhe custado muito dizer ‘entrega completa’, já que ele sabia para onde estava indo”, disse Buchan.
Eric Liddell morreu em 21 de fevereiro de 1945, poucos meses antes da libertação do campo, no fim da Segunda Guerra Mundial.
O triunfo olímpico de Liddell nos 400 metros, ocorrido em tempos mais felizes, fornece o clímax revigorante de Carruagens de Fogo.
A encorajadora história de Liddell e sua grande rivalidade com o atleta inglês Harold Abrahams (1899-1978), campeão olímpico dos 100 metros rasos nas Olimpíadas de 1924, levou quatro estatuetas na cerimônia de entrega do Oscar em 1982.
Além de melhor filme, melhor figurino e melhor roteiro original, a trilha sonora única composta por Vangelis (1943-2022) no sintetizador também ganhou o Oscar. E, mais de 40 anos depois, a música ainda remete instantaneamente ao atletismo, em todas as suas modalidades.
Ian Charleson – o ator escocês que interpretou Liddell em Carruagens de Fogo – também se formou na Universidade de Edimburgo. Com 40 anos de idade, Charleson morreu ainda mais novo do que Liddell, em 1990.
Foi a primeira morte no show business britânico abertamente atribuída à Aids. Acredita-se que sua decisão de tornar pública a doença colaborou para promover a consciência sobre o vírus.
O ator inglês Ian McKellen declarou ao jornal Daily Mail que “é um tributo para Ian que ele tenha pedido que a causa da sua morte viesse a público e é a mais maravilhosa oferta de apoio que ele poderia ter dado para outros homens e mulheres de todo o mundo que sofrem com o vírus causador da Aids”.
Eric Liddell é, até hoje, um herói escocês. Mas alguns defendem que ele pode ser considerado o primeiro campeão olímpico da China, o país onde nasceu.
De qualquer forma, seus feitos continuam a inspirar novas gerações, um século depois.
As pessoas que assistiram a Carruagens de Fogo pela primeira vez, sem conhecer a história, devem ter se sentido devastadas pelo texto que aparece na tela no final do filme:
“Eric Liddell, missionário. Morreu na China ocupada no fim da Segunda Guerra Mundial. A Escócia inteira lamentou.”
Fonte: BBC
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