- Evanildo da Silveira
- De Vera Cruz (RS) para BBC News Brasil
Pelo menos cinco vezes por ano, o arquivista Robert James Sunderland, do Arquivo Niels Bohr, em Copenhague, tem que abrir um tempinho na sua agenda para responder a perguntas sobre o “oleoduto” que levaria cerveja fresquinha até uma torneira na casa do físico dinamarquês ganhador do Prêmio Nobel de 1922.
Ninguém sabe a razão, mas, agora, 100 anos depois de receber o maior prêmio que um cientista pode almejar — o Nobel, não a cerveja — voltou a viralizar nas redes sociais a história de que Bohr recebia litros e litros de Carlsberg, o famoso rótulo da cervejaria dinamarquesa fundada em 1847, totalmente de graça.
Há várias suposições para explicar o fenômeno. Para começar, é público que o fundador da Carlsberg, Jacob Christian Jacobsen (1811-1887), era um incentivador e apoiador — inclusive com financiamentos — da ciência e dos cientistas, ainda mais se fossem dinamarqueses como Bohr.
Jacobsen incutiu na cultura da empresa essa paixão pela ciência. A empresa criou um laboratório para desenvolver melhores técnicas para a fabricação da bebida e seus pesquisadores descobriram e foram os primeiros a isolar, em 1875, a levedura Saccharomyces pastorianus, usada para fabricar cervejas claras. Eles também fizeram descobertas em química de proteínas, que, depois, foram aplicadas em outras áreas.
O fundador da cervejaria também criou, em 1876, a Fundação Carlsberg, com objetivo de promover e apoiar as ciências naturais, o que vem fazendo até hoje.
De acordo com o que está no seu site, ela foi uma organização pioneira, nacional e internacionalmente, no que diz respeito ao apoio às pesquisas científicas na Dinamarca.
Era desejo de Jacobsen que a fundação fosse confiada aos cuidados da Real Academia Dinamarquesa de Ciências e Letras, e que seu conselho de cinco pesquisadores fosse eleito entre os membros da academia.
De acordo com Sunderland, a empresa foi, a partir de meados do século 19, uma das mais importantes contribuintes da economia dinamarquesa.
“A família Jacobsen era grande filantropa e apoiava a ciência e as artes na Dinamarca”, conta. “A primeira bolsa de pesquisa de Niels Bohr foi dada em 1911 pela Fundação Carlsberg e possibilitou que ele fosse estudar na Inglaterra nas universidades de Cambridge e Manchester.”
Em 1913, já de volta à Dinamarca, Bohr procurou estender ao modelo atômico proposto por Ernest Rutherford, em 1911, os conceitos quânticos sugeridos por Max Plank, em 1900.
Estudando o átomo mais simples de todos, o de hidrogênio, ele concluiu que o elétron não emitia radiações enquanto permanecesse numa mesma órbita, mas somente ao se deslocar de um nível mais energético (órbita mais distante do núcleo) a outro de menor energia (órbita menos distante).
Com isso, ele formulou um novo modelo atômico, que leva seu nome, em que transição dos elétrons de uma órbita a outra não é gradativa, mas se dá por saltos. A descoberta lhe rendeu o Prêmio Nobel, aos 37 anos.
“Bohr foi um cientista central no desenvolvimento da mecânica quântica, que é um dos pilares da Física nos últimos 100 anos, diz o físico Peter Schulz, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
“Ela passou a ter enorme relevância em outras áreas do conhecimento, como química, ciência dos materiais, engenharia e biologia. Portanto, sua importância, indiretamente, é enorme para a ciência em geral.”
Niels Bohr foi, sem dúvida, o principal cientista da Dinamarca e, como tal, foi apoiado e financiado durante toda sua vida pela Fundação Carlsberg, que diz em seu site que a relação entre os dois gigantes foi de benefício e prazer mútuos, contribuindo significativamente para a física dinamarquesa e internacional enquanto o cientista viveu.
Depois que voltou da Inglaterra, Bohr trabalhou de 1912 a 1914 como assistente de pesquisa em Copenhague, com salário complementado por financiamento da Fundação Carlsberg.
Em 1914, ele retornou a Manchester, onde assumiu o cargo de conferencista sênior e ficou até 1916, quando a Universidade de Copenhague criou uma cátedra especialmente para ele. Nos anos seguintes, muitos jovens físicos internacionais chegaram à cidade, financiados pela Fundação Carlsberg, para trabalhar com Bohr.
Desde sua nomeação como professor, Bohr recebeu financiamento da Fundação Carlsberg todos os anos para projetos especiais e expansões, além de uma doação anual regular para apoio as suas pesquisas e compra de equipamentos.
Ele também obteve recursos para a criação, em 1921, do Instituto de Física Teórica da Universidade de Copenhague, bem como para sua expansão na década de 1950.
Aqui começa a história da casa e da cerveja de graça. Em 1931, Bohr recebeu da Fundação uma residência, mas não como doação, como se espalhou, e sim para seu usufruto vitalício.
Jacobsen havia determinado em seu testamento, que após a morte de sua viúva e de seu filho, Carl, sua casa deveria ser transformada em uma residência honorária vitalícia “para um homem ou mulher merecedor nos campos da ciência, literatura ou arte”.
O contemplado deveria ser escolhido pela Real Academia Dinamarquesa de Ciências e Letras por recomendação da Fundação Carlsberg, que também era responsável pelas despesas correntes relacionadas com a residência. Aí, incluída a cerveja.
O primeiro residente honorário, escolhido em 1914, foi o tutor de Bohr, Harald Høffding. Quando ele morreu, em 1931, a Fundação Carlsberg recomendou Bohr, que se mudou para a residência honorária com sua família no ano seguinte, onde morou até sua morte, em 1962.
Nos 30 anos em que Bohr viveu lá, a residência honorária de Carlsberg serviu regularmente como local para recepções oficiais na Dinamarca, apenas superada nessa capacidade pelo palácio da rainha. Hoje, a casa é dividida em apartamentos separados, utilizados por pesquisadores que vêm do exterior por um tempo.
Mas e o oleoduto de cerveja, onde entra nessa história? “Não temos nenhuma documentação sobre o fornecimento da bebida para Bohr durante sua ocupação da residência honorária de Carlsberg”, diz Sunderland.
“O ‘encanamento de cerveja’ é um mito. A distância da fábrica até a casa era muito grande para um duto e se alguma entrega fosse feita seria em garrafas.” Por um oleoduto de dezenas de metros, a bebida estragaria.
O consultor de história e arquivista da Fundação, Thomas Storgaard, confirma as duas informações. “Entrei em contato com a arquivista das Cervejarias Carlsberg e ela confirmou que a história sobre o encanamento é um mito urbano”, diz.
“O que sabemos, e podemos confirmar, é que a Cervejaria Carlsberg entregava ‘husholdningsøl’ (‘cerveja caseira’) à residência honorária onde Bohr e sua esposa moravam. Ou seja: a empresa fornecia, gratuitamente, toda a cerveja necessária para a casa. Nos registros da Fundação Carlsberg, não há informações sobre o volume e o valor do fornecimento. Apenas que essa bebida foi fornecida à residência para ‘necessidade doméstica’.”
Sobre a origem da história sobre o oleoduto da cerveja, ninguém tem informações. É um mistério. “Não sei de onde vem esse mito, mas acho que tem a ver com o fato de a residência honorária Carlsberg (onde Bohr morava) estar localizada na área da fábrica”, supõe Storgaard.
“E assim foi fácil supor que então, é claro, havia um duto de cerveja da cervejaria vizinha até a residência.”
Para Sunderlan, a história deve ter surgido porque as pessoas que ouvem falar da Carlsberg pensam em cerveja e não tanto no trabalho da fundação para a ciência e a cultura. “A história é tão boa que ganhou vida própria”, diz. “Então não acho que ela vá desaparecer tão cedo.”
Schulz conta que tinha lido sobre isso há um bom tempo, sem dar muita importância.
“Pelo menos até recentemente, quando um amigo me mostrou um meme com essa história”, diz. “Ele perguntou se era verdade e eu fui atrás, e vi que era falsa. Um mito, mas que foi reproduzido por publicações em veículos respeitados. Checando pelo Google Imagens, vemos, de fato, vários memes com a foto do cientista e frases falando sobre a torneira vitalícia.”
Seu colega físico, Nathan Willig Lima, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que foi aluno do atual diretor do Arquivo Niels Bohr, Christian Joas, num curso sobre história da mecânica quântica, revela que também conhecia a história do encanamento de cerveja, mas que não saberia dizer de onde.
“Existem várias histórias e anedotas sobre os grandes nomes da física”, explica. “Esse tipo de relato circula em aulas, ou comentários informais em corredores de institutos de física.”
Para ele, provavelmente essa da torneira de cerveja foi inventada na própria época de Bohr, pois é fato que ele gostava de uma Carlsberg.
“Em diversas fotos, em almoços no Instituto de Física Teórica de Copenhague, pode-se ver uma garrafa da marca na mesa dele”, diz. “Nesse sentido, a história parece ser uma brincadeira de quem conhecia Bohr.”
Brincadeira que, para alguns cientistas, não só é inofensiva, como pode ajudar a humanizar a imagem deles.
“Circulam poucas histórias sobre nós sermos seres humanos como quaisquer outros”, lamenta Schulz. “É muito ruim a imagem de que cientistas são ‘santos perfeitos’. De certa forma é o que acaba sendo cobrado por uma parcela da sociedade em críticas às universidades públicas. Basta aparecer alguma notícia negativa na imprensa, relatando algo que acontece em qualquer espaço social, mas se é na universidade começam os discursos de que são todas um lugar de balbúrdia irresponsável, como vimos recentemente.”
Por isso, ele diz que é bom saber que cientistas bebem cerveja. “Tanto os grandes, como Bohr, quanto os outros bem menores, como eu”, diz. “Adoro essa bebida. Além disso, percebo o quanto se perdeu ao longo do tempo de uma certa espontaneidade e irreverência meio científico, que são necessárias para o bem da própria ciência e para a sua percepção no ambiente em volta.”
O astrofísico José Dias do Nascimento Jr., da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e pesquisador do Centro de Astrofísica (CfA), do Observatório Astrofísico Smithsonian, da Universidade de Harvard, também vê com naturalidade histórias como a cerveja grátis de Bohr, mas ressalva que é preciso olhar para questões culturais relativas a cada povo.
“Quando estive na Dinamarca, percebi que na Universidade de Copenhague, na lanchonete onde todos os professores e pesquisadores almoçavam, era possível pedir uma cerveja para o almoço, assim como um suco ou água”, conta. “Alguns pegavam, outros não.”
Ou seja, todos tratavam a cerveja como parte da alimentação. “E isso é bem dinamarquês na forma de agir”, explica. “Abrir o sanduíche e pegar uma lata de Carlsberg ou Tuborg é natural. Na França, algo parecido é visto com o vinho nas lanchonetes das universidades. Este costume é estabelecido desde sempre. O Brasil não tem esta tradição e isso pode ser visto de forma diferente se acontecer.”
Quer dizer, se Bohr fosse brasileiro não teria recebido cerveja de graça e a ciência teria perdido uma boa história.
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