- Author, Hugh Schofield
- Role, Correspondente da BBC em Paris, na França
Aviso: Esta história contém detalhes que podem ser angustiantes desde o início.
Uma mulher francesa, estuprada por homens desconhecidos por mais de 10 anos após ser drogada pelo marido para dormir, contou a um tribunal sobre seu horror ao saber como era abusada.
Gisèle Pélicot, de 72 anos, prestou depoimento no terceiro dia do julgamento em Avignon, sudeste da França, contra 51 homens — incluindo seu marido, com quem é casada há 50 anos, Dominique. Todos são acusados de estupro.
Documentos apresentados ao tribunal indicam que Dominique Pélicot, de 71 anos, admitiu à polícia que sentia satisfação ao assistir outros homens fazendo sexo enquanto a esposa dele estava inconsciente.
Muitos réus no caso contestam a acusação de estupro contra eles, alegando que pensavam estar participando de uma brincadeira sexual consensual em grupo.
Mas Gisèle Pélicot disse ao tribunal que “nunca foi cúmplice” dos atos sexuais e nunca fingiu estar dormindo.
Este é um caso que chocou a França, ainda mais porque o julgamento está sendo realizado em público.
Gisèle renunciou ao seu direito ao anonimato para transferir a “vergonha” de volta para o acusado, disse sua equipe jurídica anteriormente.
Ao depor nesta quinta-feira (5/9), ela disse que estava falando por “todas as mulheres que foram drogadas sem saber… para que nenhuma mulher tenha que sofrer”.
Ela relembrou o momento em novembro de 2020 quando foi convidada pela polícia para comparecer a um interrogatório ao lado do marido.
Dominique havia sido pego recentemente tirando fotos debaixo da saia de mulheres em um supermercado. Gisèle disse ao tribunal que acreditava que o encontro com a polícia era uma formalidade relacionada ao incidente.
“O policial me perguntou sobre minha vida sexual”, disse ela ao tribunal. “Eu disse a ele que nunca havia praticado troca de parceiros ou sexo a três. Eu disse que era uma mulher de um homem só. Eu não suportava as mãos de nenhum homem em mim além das do meu marido.
“Mas depois de uma hora, o policial disse: ‘Vou lhe mostrar algumas coisas que você não achará agradáveis’. Ele abriu uma pasta e me mostrou uma fotografia.
“Não reconheci nem o homem nem a mulher dormindo na cama. O policial perguntou: Senhora, esta é sua cama e mesa de cabeceira?’”
“Foi difícil me reconhecer vestida de uma forma que não era familiar. Então ele me mostrou uma segunda foto e uma terceira”.
“Pedi para ele parar. Era insuportável. Eu estava inerte, na minha cama, e um homem estava me estuprando. Meu mundo desmoronou.”
Gisèle disse que até então o casamento deles tinha sido geralmente feliz. E que ela e o marido superaram uma série de dificuldades financeiras e de saúde. Ela disse que havia perdoado o upskirting (foto por baixo da saia) depois que ele prometeu a ela que tinha sido um incidente único.
“Tudo o que construímos juntos se foi. Nossos três filhos, sete netos. Costumávamos ser um casal ideal.”
“Eu só queria desaparecer. Mas tive que dizer aos meus filhos que o pai deles estava preso. Pedi ao meu genro para ficar ao lado da minha filha quando contei a ela que o pai dela tinha me estuprado e feito com que eu fosse estuprada por outros.”
“Ela soltou um uivo, cujo som ainda está gravado na minha mente.”
Nos próximos dias, o tribunal ouvirá mais evidências da investigação, sobre como Dominique supostamente entrou em contato com homens por meio de sites de bate-papo sexual e os convidou para a casa dele em Mazan, uma cidade a nordeste de Avignon.
A polícia alega que os homens receberam instruções rígidas. Eles tiveram que estacionar a uma certa distância da casa para não chamar atenção e esperar até uma hora para que os medicamentos para dormir que ele havia dado a Gisèle fizessem efeito.
Eles alegam ainda que, uma vez em casa, os homens foram instruídos a se despir na cozinha e, em seguida, aquecer as mãos com água quente ou em um aquecedor. Tabaco e perfume não eram permitidos, pois poderiam acordar Gisèle. Preservativos não eram necessários.
Não houve transações financeiras.
De acordo com a investigação, Dominique assistiu e filmou os procedimentos, criando um arquivo no disco rígido com cerca de 4.000 fotos e vídeos. Foi como resultado do episódio de upskirting que a polícia encontrou os arquivos no computador dele.
A polícia diz ter evidências de cerca de 200 estupros realizados entre 2011 e 2020, inicialmente em sua casa fora de Paris, mas principalmente em Mazan, para onde se mudaram em 2013.
Os investigadores alegam que pouco mais da metade dos estupros foram realizados pelo marido. A maioria dos outros homens morava a apenas alguns km de distância.
Questionada nesta quinta-feira pelo juiz se conhecia algum dos acusados, Gisèle disse que reconheceu apenas um.
“Ele era nosso vizinho. Ele veio para verificar nossas bicicletas. Eu costumava vê-lo na padaria. Ele sempre foi educado. Eu não tinha ideia de que ele vinha me estuprar.”
Gisèle foi então lembrada pelo juiz que, para respeitar a presunção de inocência, havia sido acordado no tribunal não usar a palavra estupro, mas “cena de sexo”.
Ela respondeu: “Eu só acho que eles deveriam reconhecer os fatos. Quando penso no que eles fizeram, sou tomada pelo desgosto. Eles deveriam ter pelo menos a responsabilidade de reconhecer o que fizeram.”
Depois que a verdade veio à tona, Gisèle descobriu que era portadora de quatro doenças sexualmente transmissíveis.
“Um que era HIV positivo veio seis vezes. Nem meu marido expressou alguma preocupação sobre minha saúde”, ela disse.
Ela agora está em processo de divórcio.
Depois de falar por duas horas na frente de Dominique e dos outros acusados, ela disse: “Dentro de mim, é uma cena de devastação. A fachada pode parecer sólida… mas por trás dela…”
Fonte: BBC