- Author, Alastair Gill
- Role, BBC Travel
“Os lícios? Quem são eles?”
“Quando nós, os turcos, chegamos aqui, tudo o que vimos foram ruínas e – qual o nome deles? Onde ficavam seus mortos?”
Estas foram as perguntas de Iskender, o construtor de barcos, enquanto colocava sobre a mesa sua garrafa de cerveja turca Efes, movendo as mãos no sentido horizontal.
“Túmulos?”, sugeri. Ele arrumou seu velho boné de capitão e balançou a cabeça.
Estávamos no mês de maio e o verão do hemisfério norte ainda não havia chegado. Mas fazia forte calor naquela tarde em Simena, uma remota aldeia da península de Teke, no litoral mediterrâneo da Turquia. Historicamente, a região é conhecida como Lícia.
Caminhei por duas semanas pela Via Lícia – uma trilha de 540 km (ou 760 km, se incluirmos as rotas alternativas) que liga as cidades turcas de Fethiye e Antalya. E conheci Iskender depois de procurar um lanche no café ao lado da estrada, perto de um estaleiro.
Ele apontou para as muralhas e torres do Castelo de Simena, no alto de uma colina acidentada.
“Aqueles túmulos que você viu perto do castelo? Como eles moveram aquelas pedras enormes, milhares de anos atrás?”, perguntou ele. “Cinco homens juntos não conseguiriam carregar aquelas coberturas dos túmulos.”
Iskender balançou novamente a cabeça, como se tentasse aceitar uma ideia impossível.
Do forte, eu havia observado dezenas de sarcófagos lícios, ocupando a colina com suas coberturas em forma de abóbodas góticas. Mais cedo, no povoado próximo de Kaleüçağız, eu havia escalado um pequeno morro sobre a marina para encontrar uma vasta necrópole de túmulos cobertos por ervas daninhas.
A poucos metros dali, comerciantes faziam barulho, montando suas tendas. A presença turca em meio àquelas misteriosas relíquias parecia reduzida – um lembrete de que, no passado, outros povos fizeram destas terras o seu lar.
Imortalizada na Ilíada como a terra do “turbilhonante rio Xanto” (que recebeu o mesmo nome da sua capital), a Lícia antiga era um refúgio entre as montanhas, povoado por navegadores extremamente independentes. Suas origens são rodeadas de especulações até hoje.
O historiador grego antigo Heródoto afirmava que os antepassados dos lícios, os trm̃mili, “saíram originalmente de Creta”. Mas os estudiosos modernos acreditam que eles fossem um povo da Anatólia (hoje, a Turquia asiática) que foi helenizado depois que Alexandre, o Grande (356 a.C.-323 a.C.), tomou a região dos persas no ano 333 a.C.
Os lícios podem ter caído no esquecimento há muito tempo, depois de terem sido assimilados por bizantinos e turcos, mas o seu legado político permanece vivo, graças a uma curiosa conexão histórica.
O discurso do presidente
Anos antes de se tornar presidente dos Estados Unidos, James Madison (1751-1836) fez um discurso na Convenção Constitucional, na Filadélfia, no dia 30 de junho de 1787.
O evento foi organizado para buscar um sistema de governo mais eficaz para a nação recém-formada. A falta de representação proporcional estava impedindo a elaboração de políticas eficazes.
Em resposta à afirmação do delegado Oliver Ellsworth (1745-1807) de que a igualdade de vozes sempre havia sido um princípio básico das confederações, Madison citou o exemplo da Lícia. Ele defendeu que a Liga Lícia era diferente.
Formada no século 2° a.C., a Liga Lícia era composta por 23 cidades-Estado. Ela foi a primeira união democrática do mundo – um modelo de confederação forte, baseada na representação popular proporcional.
Seis cidades (incluindo sua capital, Patara) detinham três votos no Conselho da Lícia. As cidades de tamanho médio tinham dois votos e os pequenos assentamentos, apenas um.
As circunstâncias que levaram à criação da Liga são incertas, mas ela provavelmente ocorreu em resposta à tirania da ilha de Rodes, a quem Roma confiou brevemente o controle da Lícia em 190 a.C.
A Liga não podia estabelecer sua política externa, mas elegia um executivo governante – o Liciarca – e juízes locais, além de coletar impostos. O filósofo francês Montesquieu (1689-1755) chamou a Lícia de “a constituição mais perfeita da Antiguidade”.
O professor Anthony Keen, da Universidade de Notre Dame, nos Estados Unidos, é especialista na Lícia. Ele descreve o sistema como “uma junção das ideias gregas sobre democracia com as ideias lícias pré-existentes sobre como uma comunidade de assentamentos urbanos individuais trabalha em conjunto”.
Muitos dos caminhos que percorri foram estradas, um dia – artérias milenares que conectavam as cidades da Lícia. Mas sua história terminou quando o imperador romano Cláudio (10 a.C.-54 d.C.) anexou a região no ano 43 d.C.
‘O litoral mais assombrado do mundo’
O interesse por esses caminhos antigos incentivou a escritora Kate Clow a criar a Via Lícia nos anos 1990, depois de se mudar para a região.
“Minha inspiração não foi formar uma trilha; minha inspiração foi colecionar estradas antigas”, ela conta.
Clow continua a expandir o caminho e apoiar as comunidades locais. Neste ano, um grupo voluntário transformou uma construção na aldeia de Sidyma em um centro cultural.
Encontrei poucas pessoas caminhando pela Via Lícia. Mesmo assim, a trilha estava repleta de vida: cabras com pelo desgrenhado, pesadas tartarugas e – o mais alarmente – cobras escuras atravessavam o caminho de vez em quando.
Nas aldeias montanhosas salpicadas de papoulas e flores silvestres, mulheres em largas calças şalvar trouxeram queijo de cabra, mel fresco e pães achatados conhecidos como gözleme, que consumi com copos de chá.
Nas horas mais quentes, fui até o mar para um mergulho, procurei abrigo nas florestas junto aos cânions ou me espreguicei nos cheirosos bosques de carvalhos, arbustos e oliveiras silvestres.
Depois do pôr do sol, um forte silêncio envolveu a terra. A fogueira do acampamento estremecia sob o sussurrar dos pinheiros, levando-me a relembrar as pessoas que construíram estes caminhos. De fato, na Via Lícia, as recordações são tão onipresentes que você anda, descansa e dorme na companhia de fantasmas.
O livro The Lycian Shore (“A costa da Lícia”, em tradução livre) é o relato da viagem marítima da exploradora Freya Stark (1893-1993) ao longo da península, nos anos 1950. Ela chamou a região de “o litoral mais assombrado do mundo”.
De fato, túmulos vazios podem ser encontrados em cada moita ou bosque, como representantes silenciosos destacados por uma embaixada que desapareceu.
Parte majestosa do tecido urbano da Lícia, os túmulos foram uma expressão do importante papel do culto aos ancestrais e da vida após a morte.
Os mais estranhos de todos são os túmulos verticais em forma de torre encontrados nas ruínas de Xanto, a capital da Lícia na época do domínio persa. A Via Lícia faz um desvio terra adentro até o local, que fica sobre um afloramento rochoso rodeado por estufas e plantações de laranjas.
Dois túmulos em forma de pilar dominam a acrópole: a Tumba das Harpias, enfeitada com relevos de mulheres com asas, e o Obelisco de Xanto – um enorme bloco monolítico coberto com inscrições em idioma lício que ainda não foram totalmente decifradas.
Mas o maior túmulo vertical de Xanto, a Tumba de Payava, com seus baixos-relevos e inscrições em lício, foi retirado do local em 1841 pelo arqueólogo britânico Charles Fellows (1799-1860). Ele carregou tudo o que pôde para Londres, a bordo do navio HMS Beacon.
Atualmente, o túmulo está no Museu Britânico, ao lado dos frisos originais da Tumba das Harpias e do Monumento às Nereidas, um túmulo espetacularmente esculpido na forma de templo grego.
A partir do século 4° a.C., os lícios passaram a construir túmulos em forma de casas escavados nas rochas – frequentemente, câmaras funerárias abertas em rochedos, com a face da rocha contornando o corte da porta, para imitar a fachada das casas lícias de madeira, com “vigas” e “lajes” protuberantes.
Mas os mais comuns são os sarcófagos – túmulos verticais de calcário da Lícia, tipicamente instalados em cima de um sepulcro.
A arqueóloga Catherine Draycott, da Universidade de Durham, no Reino Unido, explica que, nos túmulos lícios, os mortos eram sepultados no sarcófago superior. Já seus parentes ou escravos eram enterrados na câmara inferior.
“Existe na Lícia essa ideia de elevar literalmente as pessoas importantes após a morte”, ela conta. “Por isso, neste sentido, eles estão glorificando a pessoa que foi colocada ali.”
Os túmulos presentes em toda parte permitiram aos arqueólogos conhecer os elaborados rituais fúnebres dos lícios. Mas as impressões da vida cotidiana são escassas – é incrivelmente raro encontrar joias ou objetos pessoais.
“A dificuldade é que muitas das evidências concretas são romanas”, afirma Draycott. “Existe muito pouco dos períodos anteriores.”
Saqueados há muito tempo, os túmulos inevitavelmente estão vazios. Até os ossos se perderam.
A ideia que sobreviveu
Dois dias de viagem depois de Xanto, a trilha me trouxe de volta ao litoral, perto das ruínas de Patara, a capital da antiga Liga Lícia.
Patara era um próspero porto, que foi gradualmente abandonado depois do assoreamento do rio da região. Sua rua principal, cercada de colunas, agora desaparece em um lago e as paredes das lojas que, antes, ocupavam a avenida desabaram há muito tempo.
Aqui, a construção mais importante é a Câmara do Conselho – o bouleterion – e seu auditório em semicírculo com 20 fileiras de bancos de pedra. Esta casa de reuniões era o centro político da Liga Lícia e foi recentemente restaurada.
Sentado no alto do bouleterion, não é difícil para mim imaginar centenas de delegados em suas togas discutindo assuntos de interesse público, enquanto o Liciarca dirigia os processos.
Meus pensamentos inevitavelmente se afastam de Patara, voltando-se à distante Filadélfia e à menção à Liga Lícia por James Madison. Afinal, foi graças a ele que a Câmara dos Representantes dos Estados Unidos foi criada com base no princípio dos lícios. Hoje, seus 435 assentos são repartidos entre os 50 Estados americanos, proporcionalmente à população de cada um.
De todas as tentativas dos lícios de desafiar a passagem do tempo e preservar a si próprios para o mundo que viria a seguir, aquela que resultou em uma verdadeira vida após a morte foi a mais intangível de todas – uma ideia!
A Via Lícia
O que é: uma trilha de caminhada de longa distância.
Percurso: 540 km.
Duração: cerca de 30 dias.
Início e fim: Fethiye/Geyikbayari (20 km a oeste de Antalya), na Turquia.
Hospedagem: áreas de acampamento ou hospedarias/hotéis ao longo do caminho.
Melhor época para visitar: março-maio ou setembro-novembro.
Fonte: BBC
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