- Stephen Dowling e Richard Gray
- BBC Future
Nos anos 1960, um chefe de cozinha canadense criou uma cobertura de pizza que correu o mundo. Por que ela é tão adorada por uns e odiada por outros?
Não agradeça ao Havaí — ou não culpe o arquipélago, dependendo do seu ponto de vista. O homem a quem se atribui popularmente a invenção da pizza havaiana — de presunto com abacaxi — não nasceu no Havaí. E, na verdade, nem na Itália.
Sam Panopoulos era um imigrante grego que vivia no Canadá. Ele e seus irmãos tinham um restaurante na cidade de Chatham, em Ontário.
Panopoulos havia visitado recentemente a cidade italiana de Nápoles — onde nasceu a pizza — e trouxe com ele a inspiração para acrescentar o prato italiano ao cardápio de hambúrgueres e panquecas do seu restaurante. Mas o que iria colocar na cobertura?
Panopoulos foi além das coberturas tradicionais na época, como champignons e pepperoni, e buscou inspiração ao sul da fronteira — no caso, nos sabores agridoces característicos da cozinha chinesa servida nos Estados Unidos. Foi assim que, sobre uma base de pizza de queijo e molho de tomate, ele espalhou abacaxi em calda e fatias de presunto, talvez influenciado pela mistura de sabores doces e salgados dos pratos chineses contendo carne de porco e abacaxi.
Assim nasceu um prato clássico — ou um crime culinário, dependendo do lado em que você esteja na controvérsia entre quem adora e quem odeia essa combinação.
Poucos alimentos causam discussões tão dramáticas quanto a pizza havaiana. Em muitas partes do Reino Unido, dos EUA, da Ásia, da Austrália e também no Brasil, os cardápios das pizzarias costumam incluir essa variedade. Mas, na Itália, a combinação causa repulsa em muitas pessoas — e já gerou disputas entre líderes mundiais e intervenções diplomáticas!
Mas por que toda essa controvérsia?
‘Camadas de sabores’
“Acho que você pode chamar de cozinha de fusão [a combinação de cozinhas de diferentes origens], antes que essa expressão se tornasse popular. E, é claro, o sabor doce é o mais apreciado, de forma que é fácil ter sucesso neste sentido”, afirma Charles Spence, psicólogo experimental que estuda como nossos diferentes sentidos afetam nossa experiência alimentar na Universidade de Oxford, no Reino Unido.
A combinação de presunto processado e abacaxi criada por Panopoulos coincidiu com a publicação do Tropical Recipe Book (“Livro de receitas tropicais”, em tradução livre) pela empresa australiana de alimentos processados Golden Circle. Ela era — surpresa! — uma grande produtora de abacaxi em calda, e a capa do livro mostra anéis de abacaxi adornando um presunto cozido.
Uma década antes, um cozinheiro da Alemanha havia apresentado na TV do país uma iguaria chamada de Torrada Havaí, que consistia de um anel de abacaxi, presunto cozido e fatias de queijo, preparada na grelha.
Na verdade, a Torrada Havaí pode ter sido uma releitura alemã do spamwich — o sanduíche grelhado de fiambre e abacaxi levado pelos soldados americanos destacados para a antiga Alemanha Ocidental, depois da Segunda Guerra Mundial. Tudo combinando o sabor doce característico do abacaxi em calda com as fatias salgadas da carne de porco processada.
É claro que porco com abacaxi não é a única combinação de carne e fruta existente na cozinha mundial. Na França, patos são servidos com molho de laranja doce. O pilaf iraniano mistura carne de cordeiro e romãs. E os jantares de Ação de Graças nos EUA não seriam os mesmos sem o tradicional peru acompanhado de molho de cranberry.
Mas por que essas misturas funcionam? A recente explosão de doces com caramelo salgado nos mostra que a mistura de sabores salgados e doces costuma funcionar bem. Ela cria algo conhecido como “camadas de sabores”.
Essas camadas fazem com que o cérebro reaja com sinais positivos, ao detectar a combinação de açúcar (que é combustível, na forma de carboidratos) e sal, que é vital para as funções do corpo.
E o abacaxi certamente torna a refeição muito mais doce. O açúcar compõe cerca de 12% a 15% da fruta — principalmente sacarose, mas também glicose e frutose.
Mas o abacaxi também é ácido, com pH 3-4, dependendo da variedade. Em comparação, o suco de limão possui pH 2-3. E, da mesma forma que acontece com o refrigerante de cola — que também é ácido, com pH 2-3 —, o açúcar compensa a acidez do abacaxi e seu sabor torna-se palatável e até agradável.
Mas algumas pessoas são mais sensíveis a certos sabores do que outras. Acredita-se que fatores genéticos influenciem nosso gosto por sabores azedos. E os cientistas também descobriram que pessoas que possuem variantes de um gene específico chamado TAS2R38 podem ser mais ou menos sensíveis a compostos amargos.
Da mesma forma, nosso gosto por sabores doces também é influenciado pelos genes e pode afetar o quanto de alimentos doces nós ingerimos. Talvez os genes sejam responsáveis por determinar se alguém gosta ou não de abacaxi na pizza — e isso faz ainda mais sentido quando examinamos o que acontece quando o abacaxi é cozido.
A química do aquecimento
“Muitas reações químicas acontecem quando o abacaxi é aquecido, pois ele contém muitos açúcares e ácidos orgânicos”, afirma Zhimin Xu, cientista alimentar que estuda as substâncias químicas voláteis que influenciam o sabor dos alimentos no Centro Agrícola da Universidade do Estado da Louisiana em Baton Rouge, nos EUA.
Xu e seus colegas estudaram exatamente o que acontece com o abacaxi quando a fruta é cozida sob diferentes temperaturas.
“Sob temperaturas de aquecimento suaves, o aroma de fruta é rapidamente liberado, mas sua intensidade fica cada vez menor conforme o aumento do tempo e da temperatura, enquanto o aroma de pão aumenta durante o aquecimento”, afirma ele. “O abacaxi aquecido também tem sabor doce e azedo menor, em comparação com o abacaxi recém-cortado.”
Mas é quando o abacaxi é aquecido a altas temperaturas que tudo começa a ficar interessante.
A maioria das pizzas congeladas, compradas no supermercado e assadas em forno doméstico, passa 10-20 minutos sob temperaturas de 200 a 220 °C. Mas, no forno a lenha das pizzarias, a temperatura pode ultrapassar 500 °C e a pizza precisa de menos de dois minutos para assar.
Xu e seus colegas concluíram que, sob temperaturas entre 200 e 225 °C, o equilíbrio de compostos voláteis — aqueles que se transformam em vapor rapidamente à temperatura ambiente e costumam fornecer os odores e sabores dos alimentos — começa a mudar dramaticamente.
Em primeiro lugar, a quantidade de um composto chamado acetato de etila — que dá ao abacaxi o aroma de fruta — cai consideravelmente sob temperaturas mais altas. Enquanto isso, os níveis de um composto de nome furfural — que fornece sabor de pão e amêndoas — aumenta dramaticamente. E, embora algumas pessoas possam achar isso tentador, o sabor amargo de amêndoas contribui para a polarização das opiniões.
Por outro lado, à temperatura mais alta testada, o composto doce de caramelo 5-metil furfural torna-se o segundo mais dominante, depois do furfural, o que ajuda a aumentar o aroma doce com relação ao de fruta do abacaxi fresco. Xu imagina que esse sabor mais doce da fruta à medida que ela cozinha pode ser o motivo dos fortes sentimentos de tantas pessoas quanto à sua inclusão na pizza.
“Talvez algumas pessoas não gostem do sabor doce do abacaxi quando ele se mistura com os ingredientes salgados da pizza, como presunto, linguiça e os queijos”, afirma ele. “Mas algumas pessoas podem gostar do sabor agridoce para equilibrar o salgado da pizza. Alguns ingredientes da pizza, especialmente das pizzas congeladas, são muito mais salgados do que antes, de forma que ingredientes doces na pizza podem neutralizar o sabor salgado. Talvez eles tenham aberto as portas para a popularidade do abacaxi na cobertura das pizzas.”
Mas suas pesquisas também lançam outra descoberta interessante. Entre os compostos que aumentam de quantidade no abacaxi aquecido, encontram-se o 2-metilbutanal e o 3-metilbutanal. Eles fornecem um sabor distinto de nozes ao alimento.
E esses dois compostos também são encontrados em um ingrediente muito importante usado nas pizzas: o queijo. Eles são mais comuns em queijos como o cheddar, mas podem também ser encontrados na muçarela.
Isso nos leva a outra teoria fascinante, proposta por um grupo de cientistas de dados em 2011.
Depois de analisar as combinações de ingredientes em receitas comuns de várias partes do mundo, eles elaboraram uma rede de sabores reunindo os alimentos com compostos de aroma similares. E concluíram que, na cozinha ocidental, existe a tendência de combinar ingredientes que contêm os mesmos compostos de aroma, enquanto a cozinha do leste asiático tende a usar ingredientes com menos compostos em comum.
Sabores ácidos e adstringentes são comumente usados na cozinha para limpar o paladar entre os pratos, em grande parte porque eles eliminam o óleo e a gordura.
Uma equipe de pesquisadores franceses e americanos revelou que alternar repetidamente amostras de bebidas adstringentes e alimentos gordurosos ajuda a reduzir a sensação geral de gordura e amargor que seria verificada ao beber água ou sem alternar as porções.
Por isso, é possível que a acidez do abacaxi ofereça limpeza regular do paladar entre um bocado e outro, ajudando a fazer com que a próxima garfada de massa, tomate e queijo pareça ainda mais saborosa.
Mas a maior parte do abacaxi usado nas pizzas vem de latas em calda e não de frutas recém-cortadas. Qual seria então o seu impacto sobre o sabor?
‘Se pudesse, proibiria’
A disputa entre quem adora e quem odeia presunto com abacaxi chegou a causar uma controvérsia diplomática, claro que não totalmente séria.
Em 2017, o presidente da Islândia, Guðni Thorlacius Jóhannesson, afirmou a uma plateia de crianças na escola que ele se opunha ao abacaxi na pizza com tanta convicção que, se pudesse, proibiria o prato no país. Ele chegou a publicar uma declaração no Facebook esclarecendo sua posição sobre abacaxis em geral e, especificamente, sua inclusão na pizza.
E ninguém menos que o primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, reagiu no Twitter: “defendo publicamente esta deliciosa criação do sudoeste de Ontário”. Jóhannesson chegou a suavizar sua posição posteriormente, ao admitir em 2018 que ele “havia ido longe demais”.
Sam Panopoulos não tinha a menor ideia da controvérsia que ele havia criado.
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