- Alejandra Martins
- BBC News Mundo
Imagine precisar suportar temperaturas acima de 40 °C por 21 dias seguidos.
Foi o que viveram este ano os moradores de Sevilha, na Espanha. E, frente ao impacto das mudanças climáticas, a cidade não teve alternativa senão inovar.
O exemplo mais recente desse processo de transformação é o chamado projeto Cartuja Qanat. Esta iniciativa acaba de ser inaugurada em uma zona de Sevilha chamada ilha de Cartuja, onde os espaços públicos foram climatizados com técnicas que já eram usadas pelos persas 3 mil anos atrás.
As soluções de Cartuja Qanat já começam a ser reproduzidas em outros locais da cidade. E o projeto ainda mostra, segundo seus responsáveis, o caminho a seguir para outras cidades do mundo pressionadas pelos impactos contundentes das mudanças climáticas.
Calor sem precedentes
“O clima de Sevilha sempre foi difícil, mas está ficando cada vez mais complicado com as mudanças climáticas”, segundo Lucas Perea, principal responsável pelo projeto e chefe do Departamento de Cooperação e Fundos da Emasesa, a empresa pública de água de Sevilha.
O projeto Cartuja Qanat tem sete sócios, que incluem a Emasesa, a prefeitura da cidade, a Universidade de Sevilha e uma iniciativa da União Europeia chamada Ações Urbanas Inovadoras (UIA, na sigla em inglês). O custo total do projeto é de 5 milhões de euros (cerca de R$ 25,8 milhões), 80% dos quais cobertos pela UIA.
É cada vez mais urgente procurar adaptar-se às mudanças climáticas. Um relatório da Organização Meteorológica Mundial publicado em 2 de novembro destacou que, nos últimos 30 anos, as temperaturas na Europa aumentaram mais do que o dobro do aumento médio global.
“Em nenhum outro continente as temperaturas subiram de forma tão significativa”, afirma o relatório.
Perea destaca que Sevilha está enfrentando ondas de calor excepcionais.
“Este ano tivemos três ondas de calor no verão, em junho, julho e setembro, com dois problemas”, segundo ele. “Um é que as ondas de calor surgem cada vez mais cedo. E o outro é que a de julho durou 21 dias.”
“Em Sevilha, sempre fez mais de 40 graus no verão, podendo ter um ou dois dias de 45 graus. Mas ter 21 dias seguidos com temperaturas acima de 40 graus já é uma exceção”, explica Perea.
Recuperar a vida nas ruas
O calor extremo tornou as ruas de Sevilha “um território hostil”, segundo o professor José Sánchez Ramos, do Departamento de Engenharia Energética da Universidade de Sevilha.
Sánchez Ramos integra a Termotecnia, o grupo de pesquisadores da Universidade de Sevilha, dirigido pelo engenheiro Servando Álvarez, que elaborou as soluções tecnológicas do projeto.
Durante as ondas de calor, “é impossível suportar o ambiente externo, exceto pelo mínimo necessário para ir de um lugar para outro. Eu não sugeriria que você levasse crianças a uma quadra esportiva ou para uma praça”, segundo ele.
“As pessoas saem à noite. Nos meses quentes, é como se Sevilha durante o dia fosse uma zona desértica”, afirma Sánchez Ramos.
O engenheiro acrescenta que Cartuja Qanat tem como objetivo principal “recuperar a vida nas ruas”. E, para Lucas Perea, o projeto “procura criar espaços de conforto nos quais as pessoas possam desenvolver atividades com custo energético praticamente inexistente”.
Quais são as técnicas milenares?
O projeto adapta tecnologias usadas há milhares de anos, não só pelos persas, mas também por vários países árabes.
“Se nos aprofundarmos, todas as soluções apresentadas já foram trabalhadas no passado, em nível ancestral”, afirma Sánchez Ramos.
Uma dessas técnicas é a dos chamados “qanats”, que são grandes canais ou aquedutos subterrâneos que transportam água ao longo de centenas de quilômetros até as cidades. Em contato com o terreno frio, a água permanece fresca e traz ainda outra grande vantagem.
Ao longo do qanat, são abertos poços para retirar água e, por eles, ingressa o ar. “O ar percorre os qanats e, por estar em um ambiente onde existe água fria e o terreno é frio, ele se resfria. Quando o ar volta a sair, ele está mais fresco”, explica Sánchez Ramos.
Além dos qanats, outra técnica milenar usada no projeto é a dos “captadores de vento”, que são usados até hoje.
A cidade de Yazd, no Irã, é famosa pelos seus captadores de ar, também conhecidos como torres de vento. Em 2017, ela foi declarada Patrimônio da Humanidade pela Unesco.
As torres têm aberturas que permitem a entrada de ar para ventilar as construções. O ar mais fresco desce até a parte inferior, por ser mais denso, e expulsa o ar mais quente por outra abertura.
Em muitos casos, o ar seco e quente que entra pelas torres passa por qanats subterrâneos ou por outras superfícies com água, voltando a sair, mais úmido e frio, por outra abertura.
Como essas técnicas foram trazidas para os dias atuais?
“Nós em Cartuja Qanat temos alguns qanats, canais subterrâneos cheios de água fria”, segundo Sánchez Ramos. “Você pode imaginá-los como se fossem canais retangulares, com 30 metros de comprimento e enterrados. Eles armazenam 140 metros cúbicos de água.”
Por outro lado, o ar circula por condutores que estão submersos na água dos qanats ou enterrados sob os canais.
Os condutores enterrados resfriam-se porque o terreno está frio devido à água do qanat. E os condutores submersos estão imersos no volume de água que esfria todas as noites até 17-18 °C.
“Nós recolhemos o ar de Sevilha a 40 °C, fazemos passar por esses condutores e o ar é resfriado”, afirma Sánchez Ramos.
Então a solução é resfriar a água dos qanats. Como se faz isso?
“Temos painéis fotovoltaicos para produzir eletricidade e, à noite, descartamos a água do qanat por cima da placa fotovoltaica, como uma cascata, para que a água seja resfriada”, explica Sánchez Ramos.
“Esta é a releitura que fazemos dos qanats – uma releitura mais técnica, mais industrial, baseada em armazenar água, resfriá-la à noite e usar essa água de dia para produzir muito ar frio e superfícies frescas”, prossegue ele.
Perea explicou à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC, que “o sistema de água de Cartuja Qanat é um sistema de circuito fechado”. A água deve ser tratada “para que não haja problemas com nenhum tipo de micróbio, pois esse ar é depois o que nós respiramos”.
Três espaços públicos
Essa tecnologia é usada para climatizar três espaços principais, reduzindo sua temperatura em 10 a 15 °C.
Um desses espaços é o Zoco, uma construção semienterrada com cerca de 800 metros quadrados. No seu teto, estão as placas fotovoltaicas utilizadas para resfriar a água dos qanats.
“A água do canal é colocada em cima do teto do Zoco e funciona como radiador frio”, explica Sánchez Ramos.
Outro espaço é um anfiteatro construído originalmente para a Expo 92 de Sevilha, que ocorreu na ilha de Cartuja. “Nós impulsionamos o ar frio pela parte de baixo. É um espaço destinado, por exemplo, a aulas ou conferências”, afirma ele.
O terceiro espaço é a “ilha temperada”. Lucas Perea explica que se trata de “um corredor com bancos, onde estão sendo testadas cerâmicas e outros materiais em desenvolvimento”.
Em um tanque ao lado do anfiteatro e em um aqueduto suspenso que conecta o anfiteatro ao Zoco, a água também permanece fresca por meio de “resfriamento evaporativo”.
Esta expressão pode não ser familiar, mas é um fenômeno muito comum que explica por que suamos quando nosso corpo fica excessivamente quente ou por que as tradicionais moringas de argila mantêm a água fresca.
A evaporação (passagem das moléculas do estado líquido para o gasoso) consome energia. Por isso, a energia (temperatura) da água que permanece líquida é reduzida.
No caso do recipiente de argila com paredes porosas, a evaporação faz com que “a água que evapora retire calor do resto da água que fica dentro da vasilha”, explica Sánchez Ramos.
Decisão participativa
O projeto não procura apenas usar tecnologias de forma inovadora. Existe também um componente de inovação social.
Quatro dos sócios de Cartuja Qanat, incluindo a Emasesa e a Universidade de Sevilha, comprometeram-se a manter os espaços por cinco anos. Mas esse grupo pode ser ampliado “por qualquer pessoa física ou jurídica que queira incorporar-se ao projeto para opinar e participar da gestão conjunta do espaço”, explica Perea.
Uma associação de moradores, por exemplo, pode simplesmente solicitar o uso do espaço ou ainda unir-se ao projeto e participar das decisões futuras sobre o que fazer nele.
A ideia, segundo o representante da Emasesa, é que os espaços sejam administrados em gestão participativa.
Do ponto de ônibus ao pátio do colégio
O projeto piloto de Cartuja Qanat está começando a ser reproduzido em outros locais de Sevilha, em uma iniciativa chamada LIFE Watercool.
Uma parte do projeto pretende climatizar um ponto de ônibus fazendo circular água fria pelo teto. A ideia é que, “quando uma pessoa chegar a esse ponto de ônibus, ele sirva como um abraço refrescante, acolhendo-a com uma superfície fria que permita ficar ali por 20 ou 30 minutos de forma magnífica”, afirma Sánchez Ramos.
Está previsto também o resfriamento do pátio de um colégio público. “Em mais de uma ocasião, a ambulância precisou intervir nos colégios de Sevilha para levar crianças que sofreram choques de calor”, segundo o engenheiro.
O sistema está em fase de construção no colégio e utiliza “uma pérgula que impulsiona o ar resfriado com água procedente de uma cisterna que temos na praça e resfriamos à noite. Também colocamos essa água no teto”.
Lucas Perea destaca que, no futuro, pode-se usar até água subterrânea para climatizar edifícios.
“Nós, em Sevilha, estamos a cerca de 10 metros acima do nível do mar”, segundo ele. “Existe muita água no subsolo, de forma que, quando se perfura um túnel de metrô, a água do lençol freático costuma se infiltrar. Por isso, existe um sistema de bombas para evitar inundações.”
“Uma das ideias que estamos analisando é utilizar essa água subterrânea, que atualmente segue para o sistema de saneamento, mas está a 20°C e é água limpa, para climatizar edifícios inteiros”, explica Perea.
Soluções baseadas na natureza
José Sánchez Ramos prevê que a adaptação às mudanças climáticas tornará ainda mais fundamental o papel dos engenheiros.
“Nós levamos os alunos de mestrado ao espaço de Cartuja Qanat para incutir no seu DNA que existem muitas soluções além das convencionais”, afirma ele.
“Existem soluções baseadas na natureza que já foram inventadas e precisamos reinterpretar e adaptar ao ano em que vivemos, de forma rentável e eficiente. Acreditamos que o papel do engenheiro precisa ser 100% de protagonista.”
Sánchez Ramos e seus colegas dedicaram três anos de experimentos para testar os sistemas de resfriamento antes da sua construção. Eles publicaram diversos artigos científicos.
“A universidade organizou um catálogo de soluções, ferramentas e todo o necessário para que, se um interessado quiser realizar uma intervenção em um espaço da sua cidade, do seu país, o trabalho duro já esteja feito”, segundo ele.
Para Lucas Perea, Cartuja Qanat é um exemplo do que Sevilha pode oferecer para outras cidades. “Atenas [na Grécia] já se interessou por estes sistemas de resfriamento porque tem um clima muito similar”, afirma ele.
“Nós somos uma empresa de capital público e não fazemos isso para patentear um sistema e ganhar dinheiro”, destaca Perea. “Nós fazemos para melhorar os serviços que prestamos e acreditamos que Sevilha, neste sentido, pode ajudar as outras cidades que mais sofrem os impactos das mudanças climáticas.”
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