- Alicia Hernández
- BBC Mundo
“Se alguém perguntar: que feridas são essas que você traz no peito? A resposta será: são aquelas que fizeram na casa de quem me ama.”
Desde criança, a casa foi o refúgio de Kathy Serrano, que nasceu em 1968 na Venezuela. Na residência havia coisas bonitas, mas também violência.
Com apenas 16 anos, ela decidiu morar sozinha em Caracas. Depois, seguiu até a antiga União Soviética e terminou em Lima, no Peru, onde vive desde 1994.
Em seu primeiro romance, El Dolor de la Sangre” (A Dor do Sangue, em tradução livre), a protagonista Martha é uma venezuelana que vive no Peru e foge de seu país e do encontro com o seu irmão violento. Até que ela precisa voltar à sua origem.
Martha se vê confrontada com uma Venezuela atual (embora atemporal) da qual ela tem lembranças, mas à qual não pertence mais. É uma jornada na qual ela também precisa enfrentar os monstros do passado.
A BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, conversou com a autora do livro durante a divulgação do Hay Festival Arequipa, evento realizado entre 3 e 6 de novembro na cidade peruana.
BBC News Mundo – A ideia desse romance já rondava a sua cabeça havia tempo, certo?
Kathy Serrano – Escrevi o primeiro capítulo em 2018, em um voo para o Equador, mas sem dúvidas há algo que vem de toda a vida.
Eu tenho um irmão violento. E quando cheguei a Caracas escrevi uma peça de teatro sobre a relação de uma mulher com um irmão com essas características.
Logo começou a obsessão com o tema do retorno. Escrevi sobre isso, mas minha casa foi assaltada e perdi tudo o que havia escrito. Tenho cinco contos que não acredito que publicarei.
Há cinco anos me dedico somente a escrever e, de novo, surgiu essa obsessão do retorno, com a ideia do caminho percorrido, da infância.
E esclareço: não é uma autobiografia, só por precaução. Eu não me apaixonei pelo meu irmão (risos).
BBC News Mundo – Ainda assim, há muitas semelhanças entre a protagonista, Martha, e você. Ambas saem de casa cedo, a questão do irmão violento, ambas acabam morando em Lima e não voltam para a Venezuela, inclusive evitam isso. O que há da Martha em você e vice-versa?
Serrano – Há muito. Às vezes eu sinto que definitivamente nos apegamos às coisas que vivemos. Como artistas, pegamos as coisas que nos marcaram, que nos quebraram.
Lar, infância e família permanecem em sua alma, em seu corpo. São eles que nos nutrem, nos quebram e nos deixam cicatrizes.
Há muitas coisas que absorvi de mim para criar Martha. Não é muito comum que aos 16 anos você vá morar sozinho em uma cidade como Caracas. Sou migrante desde os 16 anos e isso marcou meu jeito de ser, minha alma.
Conheço a violência desde criança e vi e vivenciei coisas fortes e não só minhas, mas de outras pessoas. Vi a violência refletida em outras famílias, em outras mulheres, em amigas.
Por sua vez, Martha tem coisas que eu gostaria de ter. Como conhecer a fotografia ou o tipo de força interior que você tem. Ela vem de meus próprios medos e minhas próprias experiências.
BBC News Mundo – Em 2012 você iria dirigir uma peça de um dramaturgo peruano. É curioso, porque também tinha a palavra “sangue” no título.
Serrano – Nessa época, havia 10 anos que eu não voltava à Venezuela.
Quando terminei de ler a obra, sem falar com ninguém, me levantei da cama, coloquei um moletom esportivo e fui a uma agência em um shopping e comprei uma passagem para a Venezuela.
Além do irmão que, infelizmente, é violento, tenho outro que me adora. E pedi que ele me acompanhasse no meu périplo à minha cidade natal.
Eu precisava ir, voltar e enfrentar. Não em um plano de raiva, mas com a minha vulnerabilidade, com as lembranças agradáveis e as desagradáveis. Confrontar essas recordações para poder chegar mais leve ao Peru.
Foi uma jornada de fazer as pazes internamente com uma série de memórias e coisas que nos tocam. Agora falam mais sobre a violência contra as mulheres, mas essa violência sempre existiu.
BBC News Mundo – O romance é envolto de violência, não somente física, mas uma ampla e sutil gama de violência.
Serrano – Me interessa como ser humano e como artista tocar no tema da violência, que me obceca. Falar sobre ela e torná-la visível. É transversal à nossa existência, como mulheres e também para as crianças.
Me interessava falar desse espaço fechado que é a casa, que é a família. Desde que me lembro, dizem que ela é a base da sociedade, o lugar em que deveria estar absolutamente seguro, onde não deveria acontecer nada que possa prejudicá-lo fisicamente ou psicologicamente.
Mas acredito que esse é o lugar onde nasce a grande maioria dos monstros de todo o mundo.
Pense, reflita, compartilhe. Vamos falar sobre essa violência.
BBC News Mundo – No livro também aparece a violência contra o migrante, não só pelo país de acolhimento, mas também pelos compatriotas que permanecem no país natal…
Serrano – A minha migração foi diferente dos meus compatriotas, mas vivi a falta de emprego ou de espaço por ser estrangeira. É algo dissimulado e você descobre depois, mas acontece.
Você decide ficar em um país, mas nunca vai pertencer a ele porque não nasceu ali.
Mas quando você volta, como eu fiz na Venezuela em 2012, te dizem coisas como “você não é mais daqui, você não esteve na família”. Isso foi o que uma irmã me disse. Você não é mais.
Outras pessoas me dizem que já não falo mais, não me mexo, não me visto como uma venezuelana. E há outra sensação, uma que não tem palavras, na qual sentia que não havia lugar pra mim, que não te mostram esse lugar. Cheguei a sentir medo do país.
Amo a Venezuela e amo o Peru, mas sinto que não sou exatamente de nenhum dos lados.
É um não pertencer doloroso, não poder se sentir totalmente aceita em nenhum dos lados. É um não ser.
Então, a Venezuela veio em mim e me dei conta de que por anos havia reprimido a minha ‘venezuelanidade’ para me adaptar ao lugar onde estava vivendo. Agora estou deixando fluir.
BBC News Mundo – Martha passa por um processo curioso com as palavras. Ela esquece como algumas coisas são ditas na Venezuela e diz à maneira do Peru. Palavras, são esquecidas e colocadas em um canto para não se lembrar ou sobreviver no novo lugar?
Serrano – Acho que são as duas coisas. Há muitas coisas que esqueci como mecanismo de defesa. Esquecer é uma forma de sobrevivência.
Por exemplo, deixei escapar um “estoy arrecha” (estou com raiva) e no Peru isso significa outra coisa (estou excitada). As pessoas me olhavam surpresas. Quando cheguei a Lima em 1994, quase não havia venezuelanos. Lima era outra. Agora que as coisas mudaram.
São palavras, tons de voz, modo de falar. Nós, venezuelanos, falamos mais diretamente, frontalmente. No Peru é diferente e eu também modifiquei isso. Você tem que se adaptar.
Eu fui adormecendo a minha identidade venezuelana.
Não sei se era para me encaixar ou por preferir assim, para imitar (os peruanos) para sobreviver.
BBC News Mundo – Mas você diz que logo a “Venezuela caiu em cima”…
Serrano – Quando acontece na Venezuela (a crise dos últimos anos) começo a sentir no peito que algo racha, quebra.
Falava com a minha família e dizia para eles o que havia visto e vivido quando estudava na União Soviética e me diziam que não, que algo assim não aconteceria.
Então as pessoas logo começaram a migrar e caminhar por estradas, pessoas com seus filhos nos braços… Tudo foi extremamente doloroso pra mim. E me vi confrontada comigo mesma quando chegaram a Lima.
É como se rompesse um ovo e dentro dele saísse uma borboleta colorida.
A Venezuela caiu em cima de mim para que a minha ‘venezuelanidade’ voltasse à tona, fosse mais livre. Sou uma peruana que nasceu na Venezuela. É doloroso.
BBC News Mundo – Há uma cena, em uma cafeteria de Caracas, em que tudo é incrível. Até que uma simples pergunta desencadeia demônios de todo o mundo.
Serrano – Eu queria que uma palavra explodisse tudo. É o que está embaixo e há camadas e camadas.
Por trás da alegria, do belo e do incrível está a dor, a tragédia. E, o fato de sermos assim, de “ficaremos bem de todas as maneiras”, perpetuou essa situação por tantos anos.
Isso pinta um retrato exaustivo da Venezuela, bastante detalhado para quem a conhece, com luzes e sombras.
Mas nos coloca em um tempo indeterminado, não sabemos o ano, quem governa.
Eu não estava com vontade de contar isso, esse é outro romance no qual eu teria que me trancar, estudar e ser muito meticulosa.
O que mostro é uma Venezuela híbrida. Estou mais interessada na sutileza.
BBC News Mundo – A mãe e a avó de Martha são colombianas. Em um ponto do livro, reflete-se a rejeição da migração colombiana pelos venezuelanos…
Serrano – Isso tem a ver com a minha família. Minha avó, mãe e bisavó eram colombianas. Elas eram muito pobres e chegaram à Venezuela caminhando. Queria usar isso (no livro).
Quando eu era menina, em Táchira (Estado fronteiriço entre Venezuela e Colômbia), todos eram estrangeiros: portugueses, alemães, turcos, chineses… Mas havia algo doloroso que era a luta dos colombianos. No tratamento, os apelidos, o medo que eles tinham.
Para o romance, fiz uma extensa investigação e conversei com diferentes pessoas sobre isso. Essa coisa de ida e volta. Hoje eu te maltrato e amanhã você me maltrata. Não aprendemos nada.
O venezuelano viveu uma época de ouro com muita abundância, muitos migrantes chegaram e fizeram fortunas, mas outros infelizmente receberam rejeição.
Agora é o contrário, esse povo que teve tanto, que não estava acostumado a migrar, a não ser para férias ou estudos, teve uma lição muito dura. Eles vão para outros lugares e os recebem de portas abertas, mas também há rejeição.
BBC News Mundo – Este livro te ajudou a se curar e a se redimir de sua própria história?
Serrano – O ato de escrever pode servir muito para te libertar, para transformar aquela parte da história que te machuca, que te causa dores e você tem guardada em si.
Há algumas cenas (no livro) que são fortes. Eu não queria fazer autoficção, por isso transformo as coisas.
BBC News Mundo – Dentro dessa limpeza, dessa redenção e cura (com o livro), também há uma demonstração de amor ao país natal, Venezuela. Tudo está cheio de comida, música e cheiros do país.
Serrano – Foi algo que surgiu. E nasceu da viagem que fiz em 2012 com dois dos meus irmãos, onde voltei a sentir os sabores e cheiros do país. Eu sinto que isso é parte do amor.
Sinto muita beleza e muito amor. Eu queria fazer uma mistura de amor, beleza e violência.
Este artigo é parte da versão digital do Hay Festival Arequipa, um encontro de escritores e pensadores entre os dias 3 a 6 de novembro na cidade peruana.
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