– Qual é seu nome?
– Sou Collier Landry Boyle.
– Diga-nos quantos anos você tem agora.
– Tenho 12 anos.
– Você disse que foi dormir por volta das 21h do dia 30 de dezembro. Aconteceu alguma coisa durante aquela noite que te acordou?
– Ouvi um grito. A primeira coisa que pensei foi que algo estava errado com minha mãe. Um pouco depois, talvez cerca de três minutos, ouvi uma forte baque.
Esse diálogo, em um tribunal nos Estados Unidos em 1990, foi acompanhado com grande interesse pelo país inteiro.
Meses antes, quando Collier Boyle tinha apenas 11 anos, ele acordara um belo dia e viu que sua mãe tinha desaparecido. Mas, ao contrário da família e de boa parte da comunidade em que vivia, ele imediatamente suspeitou que sua mãe tinha sido assassinada.
Ele passou a monitorar seu principal suspeito pelo crime até conseguir levá-lo à Justiça: seu próprio pai.
Esse caso é contado em um episódio da terceira temporada do podcast Que História!, da BBC News Brasil. Ele pode pode ser ouvido nas principais plataformas de podcast, como Spotify e Apple Podcasts, e no canal da BBC News Brasil no YouTube.
O médico e o monstro
No final dos anos 1980, Collier morava com seus pais, John e Noreen Boyle, em Mansfield, no interior do Estado americano de Ohio. Era uma família cristã, vivendo em uma região pacata que tradicionalmente vota no Partido Republicano.
Ele passava a maior parte do tempo com a mãe, de quem era muito próximo.
“Minha mãe sempre me tratava como um pequeno adulto, falava comigo como se eu fosse adulto. Era generosa, atenciosa e afetuosa. Era gentil com todos que conhecia. Mas eu era a pessoa mais importante da vida dela”, disse ele em uma entrevista recente ao programa Outlook, da BBC.
Seu pai, um médico bastante conhecido e respeitado pela comunidade, estava quase sempre trabalhando. Ou pelo menos era isso que ele fazia a família acreditar.
“Quando ele estava por perto, você sempre tinha que estar em guarda. Ele tinha mudanças de humor muito violentas. Ele era um pouco como Dr. Jekyll e Mr. Hyde, o personagem de O Médico e o Monstro. Eu via que, quando ele lidava com pacientes, mostrava compaixão e era muito atencioso. Mas aí em casa ele não era assim. A gente achava que ele vivia pro trabalho. Às vezes eu acordava de manhã para ir à escola e encontrava ele dormindo no sofá porque chegava no meio da noite depois de fazer suas rondas. Mas, como descobri mais tarde, isso acontecia porque ele estava tendo vários casos com outras mulheres”, contou Collier.
Noreen sabia dos casos. Ela sofria com a constante infidelidade do marido. O casamento era infeliz, mas, na época, Collier não sabia disso, achava que brigas e discussões eram comuns em todas as famílias. Ele diz ter tido uma infância feliz, até começar a ter que lidar com os súbitas ataques de cólera do pai.
“Me lembro de uma vez ter deixado cair um ovo no chão quando estávamos fazendo um café da manhã de sábado. E meu pai começou a gritar comigo, enquanto eu pedia desculpas. ‘Eu vou matar você. Eu vou matá-lo. Noreen, implore pela vida do seu filho.’ E minha mãe se jogava na minha frente, com as lágrimas escorrendo, eu ficando apavorado e ela implorando por mim. E então ele saiu furioso de casa, batendo a porta, quebrando as vidraças da porta. Mais tarde ele voltava, todo gentil, pedindo desculpas.”
Mesmo assim, ou talvez até como uma forma de trazer harmonia para a família, os pais de Collier resolveram adotar um segundo filho. Noreen viajou para Taiwan para buscar a irmã mais nova Collier. Ele ia junto, mas, no último minuto, um forte ataque de asma o impediu de viajar com a mãe. E essa foi a primeira vez em que ele ficou sozinho com seu pai por um tempo.
“Fiquei em casa sem a proteção da minha mãe por quase duas semanas. Apanhei muito. Ele me batia com um cinto, me perseguia, gritava comigo: ‘Seu garotinho gordo e estúpido’.”
E assim, Collier e Noreen continuaram convivendo com os rompantes de gritos e violência do pai. Collier não sabia dos casos extraconjugais do pai, até que, em 1989, este começou a levar o garoto em visitas a Sherri Campbell, uma suposta “paciente do papai”, que vivia em outra cidade com sua filhas.
Nessas visitas, Collier via o pai abraçando e beijando a mulher. Collier acabou contando à mãe sobre essa “namorada” do papai.
Para Noreen, foi a gota d’água. Ela tinha feito um acordo: de que John poderia fazer o que bem entendesse, desde que não envolvesse o filho. Por isso, dessa vez, ela resolveu por um fim ao casamento.
A lista no Garfield
Enquanto a mãe articulava os trâmites do divórcio, o pai de Collier ficava mais agressivo. Um dia, em novembro de 1989, Noreen pegou o filho na escola o levou a um restaurante.
“Minha mãe estava dirigindo e disse: ‘Collier, quero que você saiba uma coisa. Eu nunca te abandonaria. E se algum dia teu pai te disser que eu te deixei, não é porque eu fui embora. É porque teu pai me matou’. Ela estava com medo. E eu disse, ‘mãe, isso não pode acontecer. Isso não vai acontecer’.”
“Uma das coisas que comecei a fazer nessa época foi uma lista de amigos de minha mãe para onde pudéssemos eventualmente ir em busca de refúgio. Fiz uma lista com todos os telefones desses amigos e a escondi num Garfield de pelúcia que eu tinha. Garfield era aquele gato do desenho animado. E esse Garfield de pelúcia acabaria tendo um papel crucial no que aconteceu a seguir.”
E o que aconteceu a seguir foi que a mãe de Collier desapareceu repentinamente. Na noite anterior ao último dia de 1990, eles estavam em casa juntos com a irmã dele, esperando a chegada da avó paterna.
“Ela chegou bem tarde. Meu pai basicamente a deixou e foi embora. A gente ficou conversando na sala, eu dei um abraço na minha avó, disse ‘boa noite, vovó’. Dei um beijo e um abraço na minha mãe, disse ‘eu te amo, mamãe’. E fui para a cama. E essa foi a última vez que vi minha mãe.”
Na madrugada de 31 de dezembro de 1989, Collier Landry acordou no meio da noite com o que parecia ser um grito.
“Então ouvi dois baques muito altos com cerca de um minuto de intervalo. E entre essas pancadas, ouvi meu pai resmungando em voz muito baixa, mas pude reconhecer que era a voz do meu pai, que não estava em casa quando fui dormir.”
“Fiquei na cama, ouvindo isso e pensando: ‘será que eu vou ver o que está acontecendo?’ Olhei para o meu relógio do Batman na parede, eram 3h18 da manhã. De alguma forma, voltei a dormir.”
“Acordei algumas horas depois, o sol apareceu e corri direto para o quarto da minha mãe. E notei que os lençóis da cama estão todos desarrumados. Minha mãe, quando ela acordava, a primeira coisa que ela fazia era arrumar a cama. Fiquei procurando manchas de sangue nos lençóis.”
“Desci imediatamente e meu pai estava sentado no sofá com uma toalha enrolada na cintura. Ele tinha acabado de sair do banho. E eu disse a ele, eu disse, ‘onde está minha mãe?’ Ele não respondeu imediatamente. Ele estava assistindo à CNN na televisão, como sempre fazia. E eu repeti: onde está minha mãe?”
“Meu pai, muito calmo, olha para mim e diz, ‘Collier, mamãe tirou umas férias’.
E naquele momento eu soube que ele tinha feito algo com ela.
‘Tua mãe vai voltar’
Collier começou a confrontar o pai, que disse que ele e Noreen tinham brigado por causa de dinheiro, de Sherri e do divórcio.
“A essa altura, minha avó tinha entrado na sala , ela estava hospedada com a gente, e ele começou a explicar para ela o que tinha acontecido, que a minha mãe tinha ido embora, que eles tinham brigado. Aí ele disse que não era para chamar a polícia. Não havia razão para entrar em pânico. ‘Tua mãe vai voltar. Ela já fez isso antes’, ele dizia.
Collier então subiu para o seu quarto, pegou a lista que tinha guardado dentro do Garfield de pelúcia, se trancou no banheiro e ligou para os amigos da mãe dele, pedindo para eles acionarem a polícia.
“Então a polícia chegou em casa, minha avó atendeu a porta e começou a gritar comigo. ‘Seu pai lhe disse para não chamar a polícia. Não queremos envolver a polícia. Você está desobedecendo ao seu pai.’ E eu disse: ‘Não chamei a polícia’, porque isso era verdade.”
“Durante todo o tempo em que os policiais estiveram em casa, minha avó ficou em cima de mim, me controlando. Consegui afastar um dos policiais do lado de fora do quarto de minha mãe e disse a ele: algo aconteceu com minha mãe, não confio em meu pai.”
Graças à insistência de Collier, Noreen foi dada como desaparecida. As circunstâncias do caso chamaram a atenção de um investigador da polícia chamado David Messmore.
“David Messmore apareceu em casa. Meu pai tinha ido embora naquela manhã. Minha avó atendeu, ficou irritada e disse ‘Vou ligar pro meu filho. Ele é médico e vai processar vocês.’ E aí ela foi pra cozinha ligar para meu pai. Eu aproveitei, olhei bem nos olhos dele e disse: ‘Minha mãe nunca me abandonaria. Algo aconteceu com ela. Dê-me seu cartão. Vou para a escola amanhã e vou ligar para você porque não posso falar aqui’.”
Collier chegou à escola no dia seguinte, foi direto para a sala do diretor e pediu para ligassem para o número do cartão de David Messmore. O investigador foi até a escola se encontrar com Collier.
“Eu contei tudo o que podia para ele. Ele olhava pra mim, tipo ‘quem diabos é esse garoto?’ Ele me contou isso anos depois, que nunca tinha se deparado com uma criança tão articulada e determinada nesse tipo de situação. Que a maioria das crianças, quando perdem a mãe, perdem a cabeça. Não sabem o que fazer, ficam chorando. Mas o mais importante, é que ele acreditou em mim.”
As fotos no porta-luvas
Segundo Collier, havia grande resistência por parte do chefe da polícia local e da promotoria em fazer acusações contra John Boyle, por medo de serem processados pelo rico e influente médico. E o pai de Collier tinha assumido o papel de marido abandonado, de pessoa que sentia grande falta da mulher e que rezava pela volta dela.
E durante todo esse tempo, Collier monitorava as ações do pai e passava informações a David Messmore.
“Um dia, meu pai me chamou para ir com ele ao consultório, dizendo que precisava pegar uma papelada. E eu, tipo, disse que sim, não queria deixar ele fora da minha vista. Na volta, paramos em um posto de gasolina. E quando meu pai entrou no posto de gasolina, comecei a vasculhar o carro, abri o porta-luvas e encontrei duas fotografias.
Uma era de uma casa que nunca tinha visto antes. E a segunda é da namorada, a Sherri, e os dois filhos dela sentados em frente a uma lareira embrulhada em plástico. Imediatamente pensei ‘esta é uma casa nova e pode estar ligada a tudo isso’.”
Collier contou a David Messmore sobre as fotos. Elas ajudaram o investigador a descobrir que, além de abrir um novo consultório médico na cidade de Erie, na Pensilvânia, John Boyle também tinha comprado uma casa nova ali, a qual teve acesso pouco antes do desaparecimento de Noreen.
Messmore conversou com a corretora de imóveis que cuidara da venda dessa casa e perguntou se havia algo suspeito. Ela disse a ele que o pai de Collier estava com muita pressa para ter acesso à propriedade e que perguntou o que havia sob o novo piso do porão, caso quisesse baixá-lo. Além disso, descobriu-se que o médico tinha alugado uma britadeira dias antes do desaparecimento de Noreen.
Na manhã de 24 de janeiro de 1990, menos de quatro semanas após o desaparecimento de sua mãe, Collier e sua irmã foram retirados de casa por assistentes sociais, enquanto uma equipe de peritos criminais cumpria um mandato de busca e examinava o local, atrás o corpo de Noreen.
A casa em Erie, Pensilvânia, também foi revistada. No dia seguinte, os investigadores encontraram um corpo. A mãe de Collier fora enterrada no porão da nova casa. John Boyle foi preso e indiciado por assassinato premeditado.
Prisão e fama
O julgamento teve grande impacto na pequena comunidade de Mansfield. Afinal, quase todos os habitantes da cidade conheciam o réu. A polícia estimou que um em cada 13 residentes de Mansfield esteve sob seus cuidados. E um dos momentos mais aguardados do julgamento foi justamente o depoimento de Collier, então com 12 anos.
John Boyle, foi condenado por homicídio qualificado a uma pena mínima de 20 anos. O júri concluiu que o assassinato da mulher foi premeditado, planejado e executado intencionalmente.
Boyle está preso até hoje. Ele tem uma audiência para avaliar sua possível libertação marcada para 2025.
Mesmo não tendo dúvidas de que fizera a coisa certa, Collier se viu, após a prisão do pai, em um momento bastante difícil, porque ninguém do lado paterno, nem do materno, queria ficar com ele.
“O lado paterno da família me rejeitou porque me culpou pela condenação. E o lado materno da família me disse literalmente: não vamos acolhê-lo porque você se parece com seu pai. Fui deixado por conta própria e entrei no sistema de adoção, eu e minha irmã. Foi horrível isso. Sim, foi uma droga.”
Um juiz decidiu que os dois deveriam ser separados para tentarem recomeçar suas vidas com famílias diferentes.
Segundo Collier, seus novos pais “eram afetuosos e totalmente dedicados a ele”.
Mas não foi fácil para eles lidar com a fama de Collier.
“Não podíamos ir a lugar nenhum sem que as pessoas soubessem quem eu era, e meus novos pais eram pessoas reservadas. Eles certamente não estavam acostumados a ter pessoas olhando para eles em restaurantes. Todos me conheciam e tinham me visto na televisão, sabiam do julgamento. Isso colocou muita pressão em nosso relacionamento enquanto crescia, mas superamos isso. Eles são maravilhosos e as coisas acabaram do jeito que deveria ser.”
Collier concluiu os estudos e, mais tarde, se mudou para Los Angeles, onde vive até hoje.
Fonte: BBC
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