- Author, David Cox
- Role, BBC Future
Desde que o Projeto Genoma Humano foi considerado completo, em 2003, os cientistas tentam indicar novas regiões, entre os três bilhões de letras do nosso código genético, que possam desempenhar papéis importantes em uma série de doenças.
Com o auxílio de tecnologias que conseguem analisar amostras de genoma completo com mais rapidez e menores custos, surgiram inúmeros estudos de associação genômica ampla (GWAS, na sigla em inglês). Eles identificam variantes genéticas relacionadas a diferentes doenças crônicas.
Mas o que frustrou muitos geneticistas é que esta acabou se revelando a parte fácil do processo. Entender o porquê dessa relevância é muito mais difícil.
Os GWASs identificaram, por exemplo, segmentos de DNA associados à doença inflamatória intestinal em 215 locais cromossômicos diferentes, mas os cientistas só conseguiram indicar os mecanismos exatos envolvidos em apenas quatro deles.
Uma das maiores dificuldades é que muitos desses trechos de DNA se encontram nos chamados desertos genéticos — trechos do genoma que, inicialmente, pareciam não conter nada de relevante, mas apenas “lixo” genético que poderia ser desconsiderado.
Afinal, menos de 2% do genoma humano é destinado à codificação de genes produtores de proteínas e grande parte dos 98% restantes não apresenta nenhum significado ou propósito óbvio.
“Você observa, ‘oh, aqui está uma associação muito importante que aumenta o risco de muitas doenças diferentes’ — mas, quando você realmente examina aquele trecho de DNA, simplesmente não existe nada ali”, explica o médico e cientista James Lee, responsável por um grupo de pesquisa no Instituto Francis Crick, em Londres.
Por muitos anos, os desertos genéticos foram uma das áreas mais desconcertantes da ciência médica. Mas os cientistas estão lentamente acumulando informações sobre o seu propósito aparente e por que eles existem.
Recentemente, Lee e seus colegas do Instituto Crick publicaram uma nova pesquisa sobre um deserto genético específico, conhecido como chr21q22.
Os geneticistas conhecem este deserto genético há mais de uma década, pois ele é associado a pelo menos cinco doenças inflamatórias diferentes. Elas variam desde a doença inflamatória intestinal até uma forma de artrite espinhal chamada espondilite anquilosante.
Mas decifrar a sua função sempre se mostrou um objetivo inatingível.
Os cientistas do Instituto Crick conseguiram demonstrar, pela primeira vez, que o chr21q22 contém um amplificador — um segmento de DNA que pode regular genes próximos ou distantes, capaz de acionar a quantidade de proteínas produzidas.
Lee se refere a este comportamento como um “dial de volume”.
Pesquisando mais a fundo, eles descobriram que esse amplificador só é ativo em certos glóbulos brancos do sangue, denominados macrófagos. Neles, o amplificador pode aumentar a atividade de um gene até então pouco conhecido, chamado ETS2.
Os macrófagos desempenham papel fundamental na limpeza das células mortas e no combate a micro-organismos nocivos. Mas, quando o corpo produz macrófagos em quantidades excessivas, eles podem causar estragos em doenças inflamatórias ou autoimunes, invadindo tecidos afetados e secretando substâncias nocivas que os atacam.
O novo estudo demonstrou que, ao ser estimulado nos macrófagos, o ETS2 amplia virtualmente todas as suas funções inflamatórias. Lee o descreve como “orquestrador central de inflamações”.
“Sabemos há algum tempo que deveria haver algo no topo da pirâmide instruindo os macrófagos a se comportarem desta forma”, explica ele. “Mas nunca soubemos o que seria. O mais interessante é que, se conseguirmos encontrar uma maneira de atingi-lo, poderemos ter uma nova forma de tratar essas doenças.”
Mas, se os desertos genéticos são capazes de causar tantos danos, por que eles estão no nosso DNA?
Voltando no tempo, os colegas de Lee do Laboratório de Genômica Antiga do Instituto Crick conseguiram demonstrar que a mutação causadora de doenças no chr21q22 entrou no genoma humano pela primeira vez em algum momento entre 500 mil e um milhão de anos atrás.
Esta mudança específica do nosso DNA é tão antiga que estava presente até mesmo no genoma dos neandertais, além de alguns ancestrais do Homo sapiens.
Ocorre que o seu propósito original era ajudar o corpo a combater patógenos externos. Afinal, antes da invenção dos antibióticos, poder acionar rapidamente uma reação inflamatória amplificada por meio do ETS2 era extremamente útil.
“Nas primeiras duas horas depois de observar a bactéria, ele aumenta a reação dos seus macrófagos”, segundo Lee.
Por isso, o bloqueio completo do ETS2 poderia deixar os pacientes com doença inflamatória intestinal vulneráveis a infecções futuras. Mas Lee afirma que, quando sua atividade é reduzida em 25% a 50%, ele parece ser capaz de oferecer um profundo efeito anti-inflamatório, sem o risco de deixar o paciente excessivamente imunossuprimido.
Esta teoria ainda precisa ser verificada em estudos clínicos, mas os pesquisadores demonstraram que os inibidores de MEK — uma classe de substâncias de combate ao câncer que podem amortecer a sinalização de ETS2 — são capazes de reduzir inflamações não apenas em macrófagos, mas também em amostras do intestino retiradas de pessoas com doença inflamatória intestinal.
Aparentemente, esta descoberta representa um novo caminho rumo a uma classe totalmente inovadora de tratamentos para pacientes com doença inflamatória intestinal.
“Algumas dessas substâncias inibidoras de MEK realmente têm efeitos colaterais e o que estamos tentando fazer agora é torná-las mais dirigidas e seguras”, explica Lee, “para que, para doenças crônicas como a doença inflamatória intestinal, possamos realmente oferecer aos pacientes um medicamento que consiga interromper o processo inflamatório e, por fim, fazer com que eles se sintam muito melhor.”
Agora, os pesquisadores de Crick voltam sua atenção para as outras quatro doenças relacionadas ao deserto genético chr21q22. Seu objetivo é observar se a alteração da atividade de ETS2 também pode ajudar a reduzir o excesso de inflamação que parece conduzir esta condição.
“Uma das condições mais significativas é uma doença inflamatória do fígado chamada colangite esclerosante primária”, segundo Lee.
“Trata-se de uma doença particularmente desagradável porque pode causar parada hepática, fazendo com que as pessoas precisem de transplante. Ela também pode apresentar risco muito mais alto de causar câncer do fígado e pode aparecer em pessoas jovens.”
“Atualmente, não existe um único medicamento que tenha demonstrado eficácia, de forma que temos muito pouco a oferecer aos pacientes”, explica ele.
Do câncer ao lúpus
Os cientistas também preveem que o estudo dos desertos genéticos irá gerar informações vitais para melhorar a nossa compreensão dos diversos caminhos envolvidos no desenvolvimento de tumores.
Como exemplo, os pesquisadores do câncer destacaram um deserto genético chamado 8q24.21, conhecido por contribuir para o câncer do colo do útero, pois o papilomavírus humano (a principal causa da doença) se insere naquela parte do genoma. Com isso, o vírus amplifica um gene chamado Myc, que é um conhecido causador de câncer.
Estudos indicam que a conexão entre o 8q24.21 e o Myc também pode participar de uma série de cânceres do ovário, mama, próstata e colorretais.
Richard Houlston, do Instituto de Pesquisas sobre o Câncer de Londres, afirma que diversas variantes genéticas identificadas como colaboradoras para o risco genético de muitos tipos comuns de câncer foram encontradas em desertos genéticos. E o conhecimento desses genes alvo irá fornecer oportunidades de descoberta de medicamentos e prevenção do câncer.
Mas Houlston destaca que é mais difícil traduzir este conhecimento em novos produtos terapêuticos para o câncer do que para a doença inflamatória intestinal, pois os tumores não são alvos estáticos — eles evoluem continuamente ao longo do tempo.
“Este é o desafio”, segundo ele, “pois, no caso da doença de Crohn e outras condições intestinais, não há evolução.”
James Lee é otimista. Ele acredita que o trabalho do Instituto Crick sobre a doença inflamatória intestinal irá fornecer um modelo para que os pesquisadores possam encontrar novas formas de entender os caminhos envolvidos em todos os tipos de doenças autoimunes e inflamatórias.
Os cientistas do instituto agora investigam outros desertos genéticos associados a condições como lúpus, uma doença que faz com que o sistema imunológico lesione os tecidos do corpo, gerando sintomas como cansaço e erupções cutâneas.
Outros centros de pesquisa em todo o mundo, como a Universidade da Basileia, na Suíça, também examinam como mutações hereditárias isoladas nos desertos genéticos podem gerar doenças genéticas raras.
Três anos atrás, cientistas da Basileia descobriram como uma dessas mutações pode gerar o nascimento de bebês com malformações nos membros, devido aos seus efeitos reguladores sobre um gene próximo.
Lee prevê que a compreensão do papel dos desertos genéticos irá, por fim, ajudar a melhorar o processo de desenvolvimento de medicamentos, que é notoriamente ineficiente.
“Elaborar novos medicamentos para essas doenças é terrivelmente infrutífero”, ele conta. “Apenas cerca de 10% dos medicamentos que passam por estudos clínicos chegam a ser finalmente aprovados, de forma que 90% deles fracassam porque não melhoram as condições das pessoas.”
“Mas, se você souber que a sua medicação em desenvolvimento, na verdade, está seguindo um caminho sustentado pela genética, a possibilidade de que ela seja realmente aprovada é, pelo menos, de três a cinco vezes maior.”
Fonte: BBC
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