Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Giorgia Meloni e Viktor Orbán em encontro em Roma

Quando Giorgia Meloni chegou ao poder como primeira-ministra da Itália em 2022, muitos questionavam sua capacidade de liderar. Mas quase dois anos depois, a política da direita radical comanda um dos governos mais estáveis na Europa atual, segundo especialistas.

Ela ainda é alvo de muitas críticas por impulsionar políticas domésticas controversas e fazer declarações apontadas como racistas e homofóbicas. Mas parece estar se estabelecendo como uma importante voz na União Europeia.

Quem é Giorgia Meloni?

Primeira mulher premiê da história do país, ela fundou o partido Irmãos da Itália (Fratelli d’Italia ou FdI, na sigla em italiano) em 2012.

A legenda tem suas raízes políticas no Movimento Social Italiano (MSI), que surgiu das cinzas do fascismo do ditador Benito Mussolini.

O partido mantém o logotipo das legendas de inspiração fascista do pós-guerra: a chama tricolor, muitas vezes interpretada como o fogo queimando no túmulo de Mussolini.

Meloni também certa vez enalteceu Mussolini como “um bom político”, acrescentando que “tudo o que ele fez, ele fez pela Itália”.

Mas o rótulo fascista é algo que ela rejeita com veemência em declarações públicas.

Em agosto de 2022, pouco antes de ganhar as eleições, ela gravou uma mensagem em inglês, francês e espanhol dizendo que não era uma ameaça à democracia. E argumentou que a ideologia fascista seria coisa do passado.

“A direita italiana entregou o fascismo à história há décadas, condenando inequivocamente a supressão da democracia e as ignominiosas leis antijudaicas”, disse.

Mas alguns temem que Meloni e o seu partido não tenham se afastado o suficiente das suas origens políticas.

Na adolescência, ela fez parte da ala juvenil do neofascista MSI, tornando-se depois presidente do ramo estudantil do sucessor do movimento, a Aliança Nacional.

Em seu livro de 2021, Io Sono Giorgia (Eu Sou Giorgia), ela ressalta que não é fascista, mas se identifica com os herdeiros de Mussolini: “Peguei o bastão de uma história de 70 anos”.

Durante a campanha eleitoral que levou à sua eleição em 2022, ela recuperou um dos lemas de Mussolini: “Deus, pátria e família”.

Mais recentemente, foi criticada por não condenar publicamente um ato envolvendo centenas de homens vistos fazendo saudações fascistas durante um comício em Roma em janeiro deste ano.

Antes de ser eleita, Meloni fez campanha contra os direitos da comunidade LGBTQ , estimulou um bloqueio naval da Líbia para impedir que barcos de imigrantes chegassem à Europa e alertou repetidamente contra os migrantes muçulmanos.

Crítica ferrenha da União Europeia, ela entrou na corrida prometendo promover mudanças estruturais de dentro da instituição.

No centro das atenções

Depois da vitória de 2022, o resultado das eleições para o Parlamento Europeu foi o segundo grande sucesso do seu partido nas urnas.

O Irmãos da Itália foi o grande vencedor entre os italianos, com quase 29% dos votos.

Isso fez de Meloni uma das poucas líderes europeias cujo partido terminou em primeiro lugar na eleição. Já líderes de centro e de esquerda, como o presidente francês, Emmanuel Macron, e o chanceler alemão, Olaf Scholz, viram seus partidos perderem espaço na eleição europeia para siglas de ultra direita.

No Parlamento Europeu os deputados das diferentes nações se organizam de forma supranacional, alinhados em bancadas conforme ideologias e objetivos políticos. E o grupo do qual Meloni faz parte, o Reformistas e Conservadores Europeus (ECR), é agora a terceira maior força.

Com isso, ela pode ganhar mais voz nas negociações internas do bloco e se fortalecer como líder da direita radical na Europa, afirma o pesquisador italiano Alessio Scopelliti, da Universidade de Bristol.

Para ele, essa posição dá destaque para a Itália em um contexto em que o processo de integração europeia é historicamente dominado por França e Alemanha. “Nesse sentido, Giorgia Meloni e o Irmãos de Itália estão desempenhando um papel fundamental na formação – não apenas do cenário político de extrema-direita -, mas também do cenário político de direita em geral”, diz.

Crédito, EPA-EFE/REX/SHUTTERSTOCK

Legenda da foto, Giorgia Meloni e Emmanuel Macron na reunião do G7

Pouco depois das eleições europeias, Meloni ganhou as manchetes novamente como anfitriã do encontro anual dos líderes do G7 (grupo composto por Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido).

A frase estava no comunicado da reunião do grupo no ano passado, mas o documento aprovado desta vez mencionava apenas “direitos sexuais e reprodutivos”.

A mudança desagradou outros líderes do G7, em especial o presidente francês Emmanuel Macron, que lamentou a decisão.

Política internacional

Especialistas veem a atenção recebida pela premiê italiana nas últimas semanas como um sinal do seu ganho de posição internacional.

Segundo analistas consultados pela BBC News Brasil, a vantagem alcançada está bastante ligada à capacidade que Meloni tem de dialogar com diferentes alas da política europeia e mundial.

Ela mantém relações próximas com outros líderes da direita radical mundial, como Marine Le Pen, da França, e Viktor Orbán, da Hungria.

Apesar disso, a primeira-ministra italiana não faz parte do mesmo bloco partidário de Le Pen no Parlamento Europeu. A política francesa chegou a apelar para que o Irmãos da Itália se juntasse à sua coalizão para concorrer à eleição, mas isso acabou não acontecendo.

As duas defendem muitos temas comuns, mas se distanciam principalmente em sua posição sobre a guerra na Ucrânia.

Enquanto Meloni e seus aliados condenam veementemente a invasão da Ucrânia, o grupo de Le Pen evita tocar no assunto e já foi descrito pela direita tradicional europeia como “fantoche” do presidente russo Vladimir Putin.

Mas Meloni foi uma das únicas líderes europeias a defender Orbán depois da aprovação de uma resolução pelo Parlamento Europeu que rejeitava a existência de democracia na Hungria.

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Giorgia Meloni e Ursula von der Leyen: “uma aliança improvável”

Ao mesmo tempo, a italiana também está conseguindo dialogar com lideranças mais moderadas da direita tradicional. Prova disso é sua relação com a atual presidente da Comissão Europeia, a alemã de centro-direita Ursula von der Leyen.

As duas formaram o que a imprensa mundial classificou como “uma aliança improvável” em torno de diversos temas internos da União Europeia.

A italiana apoiou, por exemplo, a reforma do pacto europeu de imigração, que estabelece um sistema de realocação, entre os países, de imigrantes em situação irregular que solicitam asilo.

Antes, esse pedido tinha de ser feito no país de entrada, o que sobrecarregava a Itália, principal ponto de desembarque no Mediterrâneo. Agora, pode ser dividido com outros membros.

É o chamado sistema de “solidariedade obrigatória”, que oferece aos Estados-membros a opção de recolocar um certo número de requerentes de asilo, pagar 20 mil euros referentes às despesas de cada requerente que se recusem a recolocar no seu país, ou financiar suporte operacional.

A novidade foi duramente criticada pelo grupo de Le Pen, mas apoiada por Meloni.

A premiê italiana também teria sido essencial para convencer o premiê húngaro Viktor Orbán a aprovar um acordo para envio de 50 bilhões de euros em ajuda financeira à Ucrânia.

Orbán havia vetado a proposta alegando que não queria que os fundos viessem do orçamento da União Europeia. Mas críticos dizem ser evidente que existe uma antipatia pessoal entre ele e o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky.

Ao contrário de seus aliados de direita, Meloni não apoia Putin e é pró-Otan e pró-Ucrânia.

O jornal The New York Times chegou a afirmar que ela “solidificou suas credenciais internacionais” depois de sua interferência na questão da assistência à Ucrânia.

Para Paul Loveless, professor da Universidade de Bolonha, a líder italiana é uma política habilidosa e tem se mostrado mais pragmática do que outros líderes da direita radical.

“Ela é bastante carismática, boa em se comunicar e é bem recebida na Europa. Ela tem uma mão firme, mas não é alguém que chega com o pé na porta”, diz.

“Ela é esperta e está desempenhando um papel muito inteligente.”

Crédito, Getty Images

Mas o analista lembra que boa parte da atenção recebida por ela durante o G7 está relacionada, na verdade, ao fato de ela ser a anfitriã do evento.

A situação vivida pelos outros líderes do grupo também fez com que Meloni se destacasse.

Além de Emmanual Macron e Olaf Scholz, que tiveram desempenhos fracos na eleição para o Parlamento Europeu, os demais chefes de Estado parecem estar se afogando em crises internas.

Joe Biden, dos Estados Unidos, está totalmente focado em sua campanha de reeleição contra Donald Trump e o premiê britânico Rishi Sunak também enfrenta uma eleição difícil no Reino Unido.

Já Justin Trudeau, do Canadá, e Fumio Kishida, do Japão, passam por momentos de muito baixa popularidade.

Política doméstica

Mas se no cenário internacional Meloni consolidou uma imagem mais moderada, com alianças com a centro-direita, no contexto doméstico tem mantido muitas de suas promessas de campanha mais controversas.

O discurso anti-imigração se intensificou desde os primeiros meses do governo, mesmo com o envelhecimento da população italiana e a baixa taxa de natalidade no país indicando necessidade crescente de mão-de-obra estrangeira.

Em maio de 2023, para reprimir a imigração irregular, o Parlamento italiano aprovou o controverso decreto Cutro, referindo-se à cidade da Calábria, no sul, onde mais de 90 pessoas morreram em fevereiro num naufrágio.

A nova lei limita o estatuto de proteção especial que autoridades italianas podem conceder a imigrantes que não têm direito a asilo, além de eliminar o acesso a cursos de línguas e aconselhamento jurídico em centros de acolhimento.

Sob sua gestão, o Parlamento também aprovou um acordo para abertura na Albânia de centros de acolhida de imigrantes que chegam na Itália por barcos.

O plano foi classificado como “desumano” por organizações do terceiro setor e pela oposição.

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Protesto contra o aborto em Roma

Meloni ainda fez da retórica anti-LGBT um dos pilares de sua campanha eleitoral, prometendo proteger os valores tradicionais. E tem impulsionado a aprovação de uma lei que críticos afirmam que poderia dificultar a adoção por casais do mesmo sexo.

A proposta tem como foco o uso de barrigas de aluguel. A prática é proibida na Itália e na maior parte da Europa, mas muitos casais viajam para países onde ela é permitida – como Estados Unidos e Canadá.

Mas se o projeto de lei for aprovado, o uso de barrigas de aluguel poderia se tornar um “crime universal”, um delito tão grave que pode levar a condenação mesmo quando cometido no exterior.

O governo de Meloni já instruiu a prefeitura de Milão a parar de registrar casais gays como pais. A decisão foi uma reação à postura considerada progressista do prefeito Giuseppe Sala de facilitar o reconhecimento de crianças por casais homoafetivos, nos casos em que o bebê tiver sido gestado por um deles.

Também na pauta de costumes, o Parlamento aprovou uma medida apoiada por Meloni que permite o acesso de grupos contrários ao aborto a clínicas que realizam o procedimento.

Na Itália, o aborto foi legalizado em1978. O procedimento pode ser realizado até os 90 dias de gravidez.

A primeira-ministra disse que não pretendia limitar o acesso a esse direito no país, mas queria garantir que as mulheres que consideram fazer o procedimento pensassem em outras opções.

A professora Leila Talani, da Kings College de Londres, ainda vê tendências autoritárias em ataques de seu governo contra a imprensa livre e na tentativa de alterar a constituição italiana para permitir a eleição direta do primeiro-ministro.

Atualmente o país tem um sistema parlamentarista em que o chefe de governo é eleito de forma indireta.

“Ela é moderada quando se trata de política externa, pois sabe que tem que manter boas relações com os EUA e com a Europa”, diz.

“Mas internamente ela não tem se mostrado moderada. Ela é de direita e está cumprindo as promessas políticas que fez na campanha.”

Especialistas dizem que o governo de Meloni tem agido de forma sutil e até meio silenciosa, mas cumprido ao pouco suas promessas.

E para Alessio Scopelliti, da Universidade de Bristol, assim como outros líderes da direita radical pelo mundo, ela está passando por um processo de normalização. Isso significa que estão sendo percebidos com mais naturalidade pelo público – mas sem deixar de adotar, na prática, posições radicais.

“Ela tenta parecer mais moderada aos olhos do eleitorado em uma perspectiva econômica, mas em questões sociais ou culturais é muito muito radical”, diz. “Na verdade ela pode ser vista como uma forte representante da direita radical atual na Europa e no mundo, especialmente graças à sua liderança na implementação das políticas de ultradireita.”