- Author, Luiz Antônio Araújo
- Role, De Torres (RS) para a BBC News Brasil
Quando o jornalista Rafael Guimaraens, de 67 anos, ficou cercado de água por todos os lados, em seu apartamento no bairro Menino Deus, em Porto Alegre, neste mês, não conseguiu disfarçar a perplexidade com a ironia da situação.
Autor de A enchente de 41, considerado a principal obra de recuperação de um dos mais dramáticos episódios da história da capital gaúcha, ele não poderia imaginar que, 15 anos após publicar a primeira edição do livro, estaria condenado a viver uma situação tão semelhante à dos personagens que povoam suas páginas.
“É um livro que continua vendendo muito bem, as pessoas procuram. Decidi escrevê-lo porque não havia nada publicado sobre o assunto”, diz o autor à BBC News Brasil, por telefone, do apartamento de uma amiga onde refugiou-se com a mulher, a editora Clô Barcellos, quando conseguiu deixar seu próprio imóvel.
Para os interessados na obra, há uma má notícia. O depósito da editora Libretos, da qual Clô é diretora editorial, na Rua Voluntários da Pátria, foi completamente inundado. Ela calcula que, no interior do prédio, estivessem os últimos 400 exemplares que compõem o estoque. A boa notícia é que uma nova edição, com uma nota sobre a enchente de 2024, deve vir a lume nos próximos meses.
“Esse livro tem uma trajetória interessante”, comenta Clô. “Em 2015, houve uma enchente lá na Voluntários, a água entrou e levou só A enchente e outra obra, Águas do Guaíba. A gente até brincou: ‘A água está pegando de volta os livros’.”
A seguir, leia os principais trechos da entrevista de Guimaraens à BBC News Brasil.
BBC News Brasil – Quais são as coincidências e as diferenças entre as enchentes de 2024 e de 1941?
Rafael Guimaraens – A primeira característica comum é que as duas enchentes confirmam o óbvio: Porto Alegre é uma cidade sujeita a enchentes.
O Guaíba tem um volume de água extraordinário e recebe as águas de cinco rios: o Jacuí, o Caí, o Taquari, o Gravataí e o dos Sinos. Quando há chuva muito grande nas cabeceiras, a água vem toda para o Guaíba. A saída, pelo Canal de Itapuã, que deságua na Lagoa dos Patos, já no município vizinho de Viamão, é muito estreita.
Se olhar no mapa, o canal tem apenas um quilômetro de extensão. Isso significa que o Guaíba é um funil. Quando há uma cheia grande, demora muito para desaguar na Lagoa. Outro elemento comum aos dois episódios foi o vento do quadrante sul, que agravou a situação porque retardou o escoamento da água para a lagoa.
BBC News Brasil – A chuva parou, mas não a enchente.
Guimaraens – Sim, como agora. Temos dias de sol muito agradáveis, com temperatura amena. Mas, como havia vento sul, a água era empurrada de volta para o Guaíba e continuava subindo. Esse é o comportamento normal das enchentes.
BBC News Brasil – Há também a coincidência de mês e até de dias.
Guimaraens – Sim. Historicamente, enchentes aconteciam sempre ou quase sempre no segundo semestre, de agosto em diante, especialmente nos anos em que o fenômeno El Niño se fazia sentir. As enchentes de 41 e a de agora são as únicas que aconteceram no primeiro semestre, exatamente no mesmo período de final de abril e início de maio.
A escalada das cheias é muito parecida. O aumento do volume d’água até determinado momento deu-se quase literalmente nos mesmos dias. A enchente de 41 foi antecedida por 15 anos de grandes cheias, em 1926, 1928 e 1936.
Como o quarto evento foi o maior, o pessoal se apavorou e surgiu a ideia de uma cortina de proteção que só foi construída na década de 1970 em razão de todo o processo econômico de entrada de dinheiro a juros baixíssimos no Brasil durante o Milagre Econômico. Naquele período foram feitas muitas obras importantes, e outras faraônicas nas quais o dinheiro foi perdido.
BBC News Brasil – A ideia desde o início foi construir um muro?
Guimaraens – Não apenas um muro para proteger o Centro, na Avenida Mauá. Foi construída também a Avenida Beira-Rio para proteger uma parte alagável que era o bairro Praia de Belas e a Zona Sul. Essa avenida, que vai da Volta do Gasômetro ao Estádio Beira-Rio, está sobre um talude de três metros.
Ao norte, em direção aos bairros do Quarto Distrito, foi criada uma avenida similar, a Presidente Castello Branco, que já se tentou renomear como Avenida da Legalidade e da Democracia, sem sucesso. Essa via também está três metros acima do nível do Guaíba.
BBC News Brasil – Em todos esses projetos, a medição do nível do Guaíba foi determinante.
Guimaraens – Sim. O cais do porto de Porto Alegre foi construído a uma altura de três metros em relação ao leito do Guaíba. Por isso, a cota de inundação naquele ponto é de três metros, que é quando a água extravasa para o cais. Na enchente de 1941, a água subiu 4 metros e 76 centímetros, ou seja, 1 metro e 76 centímetros acima da altura do cais.
As pessoas que pensaram no projeto de contenção arbitraram para o muro de contenção uma medida de segurança de 3 metros, com a qual a cidade estaria protegida. Quando há uma enchente, os especialistas fazem uma espécie de cálculo de recorrência, tentando arbitrar quando a confluência de fatores geográficos, meteorológicos e climáticos que resultou na cheia podem se repetir espontaneamente. Esse período foi calculado em 360 anos.
A realidade é que não houve grandes enchentes desde 1941. Houve cheias em 1965, 1974, 1977, mas não tiveram a dramaticidade de 1941. Agora, é preciso falar da questão das mudanças climáticas, do aquecimento global, as geleiras derretendo. Há pessoas que negam isso, mas é uma coisa real: está chovendo. Então isso aí também precipitou os acontecimentos de 2024.
BBC News Brasil – Quais foram as mudanças ocorridas na cidade?
Guimaraens – Naquela época, a água do Guaíba era límpida. Quando jovens, tomávamos banho no Guaíba. Não havia poluição industrial nessas regiões. Agrotóxico nas lavouras praticamente não existia, pelo menos não de uma forma tão pesada como hoje.
Agora, o governador (Eduardo Leite) está tentando minimizar a questão das barragens. Ele quer fazer barragem de qualquer jeito, inclusive em áreas de proteção permanente. Isso afeta a água que chega até nós.
A própria água que inundou Porto Alegre reflete essas mudanças. É uma água barrenta, escura. A água de 1941 talvez não fosse limpa, mas era cristalina, como mostram as fotografias. Essa água suja é altamente poluída por todos esses fatores: agrotóxicos, desmoronamento de barreiras. No Centro, na Cidade Baixa e no Menino Deus, a água que inundou as ruas passou ainda pela tubulação de esgoto.
Quem entrou em contato com essa água está propenso a contrair doenças. Tudo isso indica que em 1941 tivemos uma enchente aprendiz. Hoje, temos questões de megapolítica ambiental, como a mudança climática, mas também de política localizada, de falta de planejamento, de desinvestimento em políticas de prevenção.
BBC News Brasil – O que foram exatamente esses fatores locais?
Guimaraens – Porto Alegre tinha uma autarquia chamada Departamento de Esgotos Pluviais (DEP). Era um órgão muito importante exatamente porque Porto Alegre é sujeita a alagamentos. O DEP foi sucateado e, depois extinto, com suas funções absorvidas por outra autarquia, o Departamento Municipal de Águas e Esgoto (Dmae).
O prefeito Nelson Marchezan Jr. (PSDB) teve uma política de precarizar para privatizar, para que depois a iniciativa privada seja chamada a salvar o que restou. Só que isso não funciona, como a gente está vendo no caso da água e também do abastecimento de luz (serviço concedido pelo Estado do Rio Grande do Sul a concessionárias privadas).
BBC News Brasil – Como as duas enchentes podem ser comparadas em relação ao número de vítimas?
Guimaraens – Não há um número consolidado em relação a 1941. O que consta do meu livro são algumas mortes que pude identificar a partir de documentos em arquivos, especialmente da Santa Casa de Misericórdia, que era a grande instituição de saúde da época, e notícias de jornais.
Morreu um padre do Pão dos Pobres e uma pessoa que o estava ajudando, esse último de congestão cerebral, que era o nome dado ao acidente vascular cerebral. Houve um funcionário municipal da rede de esgotos que estava operando o equipamento durante a enchente. Depois, houve um surto de leptospirose que teria provocado 25 ou 26 mortes.
Algumas dessas pessoas ficaram muito debilitadas, dando origem à expressão “abobado da enchente”, que em Porto Alegre usa-se de forma bem-humorada para se referir a alguém bobo, distraído ou em estado semiconsciente. É uma expressão que não existe fora da cidade, mas mesmo muitos de nós, porto-alegrenses, não conhecem sua origem.
Fonte: BBC
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