- Author, Guillermo D. Olmo
- Role, BBC News Mundo
No verão de 1944, quando um mundo em chamas com a Segunda Guerra Mundial começou a vislumbrar a derrota da Alemanha de Adolf Hitler e dos seus aliados, a pequena estância turística deBretton Woods, em New Hampshire, nos Estados Unidos, tornou-se palco de uma data crucial.
Delegados de 44 países se reuniram durante 22 dias com o objetivo de lançar as bases para a economia mundial, quando o tão esperado final da guerra chegasse.
Esse encontro ficou marcado para a história como a Acordo de Bretton Woods, quando foi decidida a criação do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do embrião do Banco Mundial, organizações multilaterais que ainda hoje desempenham um papel fundamental na economia global.
Mas uma das ideias mais revolucionárias levantadas na conferência foi descartada: o Bancor, uma moeda comum para todos os países do mundo que teria significado uma mudança profunda no comércio e nas relações entre as nações.
A morte antes do nascimento do Bancor marcou o fim da última barreira possível à hegemonia do dólar americano, e permitiu consolidá-lo como moeda de referência mundial.
Esta é a história da moeda mundial que nunca existiu.
Keynes em Bretton Woods
O Bancor foi ideia do famoso economista britânico John Maynard Keynes, que participou da conferência como principal negociador da delegação de seu país.
Nessa altura, Keynes já era considerado o grande guru da economia mundial pelos seus conhecidos trabalhos sobre os desequilíbrios econômicos que levaram à Grande Depressão de 1929 e às duas guerras mundiais. Seu prestígio ultrapassou fronteiras.
“Keynes queria pôr fim aos fatores que, na sua opinião, levaram às duas guerras e aos tremendos problemas econômicos da primeira metade do século 20, como o desequilíbrio comercial entre países, as guerras comerciais e as guerras cambiais”, explica James Boughton, especialista do Centro de Inovação em Governança Internacional (CIGI) do Canadá.
“Devemos ter em mente que todos aqueles homens que participaram na conferência pertenciam a uma geração que sempre viveu na guerra ou na depressão econômica. Então seu seu grande objetivo era pôr fim aos males que abalaram o mundo nos últimos quarenta anos”, diz Boughton à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC.
Keynes tinha plena consciência de que as sanções impostas à Alemanha após a sua derrota na Primeira Guerra Mundial e os castigos sofridos pela sua população tinham sido uma das principais razões do descontentamento que levou os nazistas ao poder, e um dos incentivos para Hitler. Eles embarcaram em um expansionismo militar agressivo na Europa juntamente com o seu aliado, o líder da Itália fascista, Benito Mussolini.
Keynes também sabia que os desequilíbrios na distribuição do comércio mundial, agravados pelas guerras comerciais, pelas tarifas e pela depreciação competitiva das moedas, tinham prejudicado a economia mundial e a confiança entre governos e povos, razão pela qual, nas palavras de Boughton, “ele tinha a firme convicção de que a melhor maneira de preservar a paz no mundo era ter economias fortes que pudesse negociar entre si.”
Esse desejo colidiu com a realidade de um mundo em guerra.
As hostilidades dificultaram as trocas em todos os lados, mas esse não era o problema principal, mas sim a falta de confiança.
Em um mundo abalado pelas batalhas militares, com as principais potências enfrentando-se em blocos irreconciliáveis numa guerra total, e sem organizações supranacionais aceitas pela comunidade internacional, a maioria das moedas não eram intercambiáveis com as de outros países, ao contrário do que acontece atualmente.
Em 2024 pode-se trocar pesos mexicanos por reais, reais por euros, libras esterlinas ou qualquer outra moeda confiável, mas esse não era o caso em 1944.
Keynes sonhava com um mundo em que todas as nações pudessem prosperar e comercializar. E para isso a primeira coisa que precisava era de uma moeda aceita e conversível para todos.
Foi assim que concebeu o seu Bancor, uma moeda comum a todos os países com a qual todos poderiam negociar.
E como toda moeda, o Bancor precisaria de um órgão regulador para respaldá-lo. Keynes chamava esse organismo de União Internacional de Compensação (UIC), cuja diretoria seria formada por representantes de todos os países – tamém havia um novo banco mundial.
O Bancor seria a moeda utilizada nas trocas entre os países aderentes ao sistema e o seu valor seria lastreado numa combinação de moedas mantidas pelos bancos centrais nacionais.
Cada país receberia uma cota anual do ‘Bancores’ proporcional à sua participação no comércio mundial. Se a balança de pagamentos de alguém caísse para um déficit, seriam dados créditos para equilibrá-la. Se alguém acumulasse um excedente, os Bancores seriam deduzidos da sua quota.
Na visão keynesiana, isto encorajaria os países a equilibrar o seu comércio de bens e serviços, acabando com as tarifas e as guerras comerciais que dificultaram o comércio internacional na década de 1930.
Keynes queria evitar que os países mais ricos acumulassem um excedente excessivo na sua balança comercial, enquanto os mais pobres ficassem presos num déficit e em uma dívida cada vez maiores que impediam a sua recuperação econômica e prejudicavam o crescimento global. Para ajudar estes países em dificuldades, Keynes concebeu o FMI e o Bancor.
Foi uma proposta radical que procurava reduzir as diferenças entre os países ricos e pobres e promover a prosperidade para todos. Mas o seu próprio criador estava ciente das dificuldades da nova moeda.
“A proposta é complicada e nova, e talvez utópica no sentido de que não é impossível de pôr em prática, mas que pressupõe uma maior compreensão, espírito de inovação corajosa e cooperação e confiança internacionais do que é razoável supor”, disse Keynes.
Muito do que ficou conhecido como sistema de Bretton Woods, como o FMI e o Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento, que mais tarde seria integrado no Banco Mundial, nasceu das ideias do economista britânico.
Mas o Bancor nunca virou realidade.
Alguém muito poderoso e também presente em Bretton Woods se opôs: os Estados Unidos.
Por que os Estados Unidos eram contra o Bancor
Na realidade, apesar do tom idealista dos seus comentários, a proposta de Keynes procurava também defender os interesses do seu país, cuja liderança no comércio mundial tinha sido superada pelos Estados Unidos, país que ficava cada vez mais forte e que, ao contrário da Inglaterra, não tinha sofrido o devastações da guerra em seu próprio território.
“Se houvesse uma forma de os britânicos continuarem a vender bens aos domínios que formaram o seu império usando a libra esterlina, Keynes nunca teria proposto o seu Bancor, mas, àquela altura, isso estava fora de questão porque o dólar já tinha se tornado a moeda de referência internacional”, disse Ben Steill, autor do livro “A Batalha de Bretton Woods”.
Assim, enquanto soldados dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha lutavam lado a lado contra o inimigo comum do Eixo nas diferentes frentes da guerra, ambos os países iniciaram em 1942 uma dura negociação sobre o desenho do sistema monetário e da economia mundial que seria implantado após a vitória nos campos de batalha.
Houve dois anos de conversas antes da reunião de Bretton Woods, nas quais Keynes se encontrou com outro personagem-chave nesta história, o funcionário do Tesouro dos EUA Harry Dexter White.
Keynes e White eram, como dizia do jornalista Tony Barber, “tão diferentes como o bourbon e o chá da tarde”.
Se Keynes se enquadrava no arquétipo do “cavalheiro” inglês da época, oriundo de família abastada, formado em Cambridge, com o título de barão pela Coroa Britânica.
Já White era filho de um ferreiro, nascido em Massachusetts em uma família de imigrantes judeus da Lituânia, e teve que interromper diversas vezes os estudos universitários para contribuir nos negócios da família devido à morte precoce de seus pais.
Exerceu um trabalho obscuro como funcionário público até se tornar o principal conselheiro do secretário do Tesouro, Henry Morgenthau, que o escolheu para chefiar a delegação americana em Bretton Woods.
O atrito entre dois personagens tão diferentes como White e Keynes não demorou a aparecer.
Após as reuniões iniciais, Keynes chegou ao ponto de dizer de White que “ele não tinha a menor ideia de como observar as regras do intercâmbio civilizado” e descreveu o primeiro rascunho que o americano apresentou como “o trabalho de um lunático”.
E, de acordo com Steill, White “literalmente ficava doente sempre que tinha que se encontrar com Keynes por medo de ser humilhado diante dos seus colegas”.
Mas, apesar das diferenças, Steill afirma que ambos “tinham uma admiração relutante um pelo outro”.
White também queria promover o comércio e o crescimento internacionais, promovendo um quadro econômico estável e partilhado, mas ele se opôs ao Bancor porque a situação e os interesses dos Estados Unidos eram radicalmente opostos aos dos britânicos.
“O Reino Unido era a potência em declínio. As duas guerras mundiais arruinaram tudo, enquanto os Estados Unidos estavam em ascensão”, diz Boughton.
No século 19 e início do 20, a Grã-Bretanha tinha cimentado a sua hegemonia mundial nas relações comerciais com o seu vasto império e no prestígio da sua moeda, a mais utilizada na época para as trocas internacionais.
Mas esse era um mundo ainda baseado no padrão-ouro, em que o valor de uma moeda dependia da capacidade do Estado emissor de trocá-la por ouro.
E o esforço de guerra nas duas guerras mundiais, bem como a dinâmica internacional, fizeram com que os britânicos esgotassem rapidamente as suas reservas de ouro.
Aconteceu exatamente o oposto com os Estados Unidos. “Em 1944, os EUA concentravam 60% do ouro mundial e o dólar era a única moeda confiável em todo o mundo, razão pela qual se tornou a mais utilizada”, explica Steill.
A proposta de Keynes de criar uma moeda mundial alternativa teria permitido a Londres reter pelo menos algum controle do sistema monetário internacional, que de outra forma permaneceria inteiramente nas mãos da Reserva Federal dos EUA.
Para os americanos, o fato de a maior parte das trocas serem realizadas em dólares naquela época não era um problema, mas sim uma vantagem, pois fazia da sua indústria o principal fornecedor para o mundo inteiro.
E o objetivo keynesiano de ajudar os países em dificuldades a reduzir a sua dívida também não era visto como uma prioridade em Washington, uma vez que o país era o maior credor do mundo àquela altura.
Por todas estas razões, “White respondeu a Keynes que a moeda mundial forte e confiável que ele queria criar já existia. Era o dólar, que desde então se consolidou como moeda de referência”, diz Boughton.
Os britânicos acabaram por ceder porque para reconstruir a sua economia depois da guerra precisavam de uma ajuda que só os Estados Unidos estavam em condições de fornecer.
Um dos representantes britânicos em Bretton Woods resumiu claramente a razão: “Precisávamos do dinheiro”.
A ideia do Bancor ficou para sempre arquivada nas gavetas da história. E desde então a economia mundial movimentou-se principalmente em dólares.
Fonte: BBC
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