- Author, Alessia Franco e David Robson
- Role, BBC Future
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A curiosidade matou o explorador. E Nicola Mari temia que ele talvez fosse o próximo.
Mari se orientava pelo telefone celular enquanto dirigia entre as montanhas mais remotas de Chipre.
Mas, conforme anoitecia, a bateria do celular se esgotou, até que ele se viu perdido no meio do nada, sem ter ideia de como voltar ao seu alojamento.
“Eu havia viajado mais de 50 km sem encontrar outro veículo”, ele conta.
Mari achou que conseguiria relembrar o caminho até um restaurante, onde ele poderia reabastecer seu estômago, seu motor e a bateria do celular. Mas, ao chegar lá, tudo estava deserto.
Com um pouco de sorte, Mari acabou chegando a outro estabelecimento, mas ele reconhece que receou perder a vida naquelas solitárias estradas montanhosas. “Calculei mal”, diz ele.
Mas, felizmente, sua missão não foi em vão.
Mari é geólogo planetário da Universidade de Pavia, na Itália. Ele estuda como os nossos vizinhos do Sistema Solar se formaram e evoluíram. E, para obter o grau de PhD, ele estudou os fluxos de lava de Marte.
Desta vez, seus olhos estavam em Chipre, mas voltados para Mercúrio. Seu objetivo era encontrar na ilha um certo tipo de rocha, chamada “boninita”.
Acredita-se que esta rocha tenha notável similaridade com as encontradas em Mercúrio. E, se esta suposição estiver correta, pode ser uma indicação das origens únicas daquele planeta.
Primeira rocha a partir do Sol
Mercúrio é um planeta de extremos. Com volume total um pouco maior que o da Lua, é o menor planeta do Sistema Solar – e o mais próximo do Sol.
Mercúrio não tem atmosfera para reter calor. Ou seja, a temperatura na sua superfície varia de 400°C durante o dia até -170°C, à noite.
O planeta também tem a menor órbita de qualquer planeta do Sistema Solar. O ano de Mercúrio dura apenas o equivalente a 88 dias na Terra.
Os cientistas têm muita dificuldade para estudar Mercúrio devido à sua localização.
Um dos motivos é o calor. Para se aproximar do planeta, as espaçonaves precisam suportar temperaturas escaldantes, devido à sua proximidade com o Sol.
O outro motivo é a gravidade. Quanto mais perto você chega do Sol, maior é a sua força de atração, o que aumenta a velocidade da espaçonave. Com isso, manobras delicadas passam a ser muito mais difíceis.
Para evitar viajar rápido demais, a espaçonave pode seguir uma rota mais complexa, fazendo uma série de desvios em torno de outros planetas, o que ajuda a reduzir a velocidade. Mas ela ainda precisa de muito combustível para desacelerar e manter o controle dos seus movimentos.
“Do ponto de vista da trajetória, provavelmente é mais difícil chegar lá do que em Júpiter”, afirma Ignacio Clerigo, gerente de operações de espaçonaves da BepiColombo, a atual missão da Agência Espacial Europeia para Mercúrio. O trabalho de Mari vem ao encontro deste projeto.
Todas estas dificuldades fizeram com que Mercúrio tenha sido menos estudado do que os outros planetas vizinhos.
Mas duas missões anteriores – a Mariner 10 e a Messenger – chegaram suficientemente perto do planeta para mapear sua superfície, pontilhada de crateras. Elas revelaram grandes surpresas sobre sua estrutura.
Uma dessas surpresas foi o núcleo do planeta. Todos os outros planetas rochosos – Vênus, Terra e Marte – possuem um núcleo relativamente pequeno, rodeado por um espesso manto composto de magma e uma crosta endurecida.
Mas a crosta de Mercúrio parece ser surpreendentemente fina, enquanto seu núcleo é inesperadamente grande em comparação com o manto. “É absurdo”, segundo Mari.
Outra descoberta ainda mais inesperada trazida pelas missões é que Mercúrio é rodeado por um campo magnético.
Combinado com sua densidade, ele sugere que o planeta tem um núcleo de ferro – que pode ser parcialmente líquido, como o núcleo da Terra.
Para aumentar ainda mais o mistério, a proporção de substâncias químicas na superfície de Mercúrio é altamente incomum.
Usando uma técnica conhecida como espectrometria para analisar a composição química do planeta à distância, os cientistas descobriram que Mercúrio possui concentração de tório muito mais alta que os seus vizinhos mais próximos.
O tório deveria ter evaporado no calor extremo do início do Sistema Solar. Mas o teor de tório de Mercúrio é mais próximo do nível de Marte (a três planetas de distância), que teria se formado sob temperaturas mais baixas, devido à sua distância do Sol.
Essas anomalias levaram alguns cientistas planetários a imaginar que Mercúrio tenha se formado originalmente em um ponto mais distante do Sol, perto de Marte.
E que teria começado com uma massa muito maior, aproximadamente do tamanho da Terra, o que justificaria seu grande núcleo.
Mas a hipótese é que, em algum ponto da história, Mercúrio tenha colidido com outro corpo planetário que o deslocou, fazendo com que ele girasse em direção ao Sol. Esta colisão pode ter arrancado sua crosta e boa parte do seu manto, deixando o enorme núcleo líquido do planeta.
“O Mercúrio que vemos hoje pode ser apenas a semente do planeta que ele foi um dia”, segundo Mari.
Rochas alienígenas
A melhor forma de pesquisar esta teoria seria analisar amostras de rochas da crosta de Mercúrio ou perfurar seu manto. Mas nenhuma sonda conseguiu pousar na superfície do planeta até hoje, o que leva os cientistas na Terra a buscarem outras fontes de informação.
Algumas indicações podem vir de uma classe de meteoritos conhecidos como aubrites. Seu nome vem da comuna francesa de Aubres, onde eles foram encontrados pela primeira vez.
Estas rochas têm composição química similar à de Mercúrio e alguns cientistas chegaram a imaginar que elas podem ser fragmentos da colisão que levou o planeta à sua posição atual no Sistema Solar.
A ideia é tentadora, mas Mari é cético. Ele conta que as evidências já descobertas indicam que os aubrites vêm de asteroides que se formaram na mesma região da nebulosa solar que Mercúrio, mas que nunca fizeram parte do planeta.
Uma linha alternativa de evidências pode vir dos “análogos geoquímicos”, que são rochas formadas na Terra que apresentam boa semelhança com as estruturas encontradas em outros planetas.
Afinal, nosso conhecimento dos processos geológicos da Terra é muito melhor e podemos usar esse conhecimento para desenvolver teorias sobre a formação dos nossos parceiros do Sistema Solar.
Este foi o objetivo da missão de Mari para Chipre. Segundo os dados geológicos disponíveis, aquele local era o mais viável para encontrar a composição específica que ele estava buscando.
Quando saiu na sua jornada pelas montanhas desertas, Mari se sentiu um “Indiana Jones moderno”, conta.
Chipre é um pedaço de crosta formado sob o Mar de Tétis, mais de 90 milhões de anos atrás. Com a colisão das placas tectônicas, ele acabou sendo lançado à superfície, onde se transformou na ilha que conhecemos hoje em dia.
O cenário traz uma sensação de outro planeta até hoje, segundo Mari, com suas rochas esverdeadas e ricas em minerais.
“Em certas regiões das montanhas de Chipre, é como se você ainda estivesse andando sobre um leito de oceano antigo”, afirma ele.
Durante sua busca, Mari encontrou os pedaços de lava específicos que procurava, conhecidos como boninitas.
Ele voltou para casa e, trabalhando com seus colegas da Nasa e do Museu de Ciências Planetárias da Itália, ele analisou a composição das rochas, comparando com as medições de Mercúrio. Os resultados o deixaram perplexo.
“Eles não eram apenas similares; eram idênticos.”
A mistura de elementos como magnésio, alumínio e ferro era a mesma observada no misterioso planeta com seu enorme núcleo.
A única diferença era que as rochas de Chipre haviam se oxidado – o que é inevitável, considerando a atmosfera da Terra, rica em oxigênio.
As rochas de boninita são o primeiro análogo terrestre verdadeiro de Mercúrio, segundo Mari. Elas fornecem dados adicionais preciosos para nossa compreensão daquele planeta. E estudos adicionais podem revelar indicações sobre a atividade geológica do passado de Mercúrio.
Sabemos que as boninitas cipriotas se formaram com a lava de erupções em um ponto raso da crosta da Terra. Por isso, sua semelhança quase perfeita com as rochas de Mercúrio sustenta a ideia de que o manto daquele planeta fica anormalmente perto da superfície, segundo Mari.
E esta conclusão é consistente com uma origem violenta que tenha soprado para longe boa parte da crosta original de Mercúrio.
Viagens futuras
As descobertas de Mari são uma peça de um quebra-cabeça muito grande.
Muitos outros conhecimentos podem vir da missão BepiColombo, realizada em colaboração entre o Japão e a Agência Espacial Europeia, que foi lançada em outubro de 2018.
Seu nome é uma homenagem ao matemático e engenheiro italiano Giuseppe (Bepi) Colombo (1920-1984). Entre outras coisas, ele ajudou a planejar o complicado trajeto da espaçonave Marine 10.
Cumprindo sua rota sinuosa até Mercúrio, a BepiColombo já se aproximou três vezes do planeta. Estas aproximações fazem parte da estratégia de reduzir sua velocidade.
A espaçonave fará sua última aproximação em 2025, quando irá se dividir em dois veículos orbitais. Um deles irá medir o campo magnético e o outro irá estudar a superfície e a composição interna de Mercúrio.
Mari afirma que sua pesquisa sobre análogos geoquímicos pode ser relevante para estes estudos, pois ela poderá servir de referência para algumas dessas medições.
“As medições de laboratório de análogos a Mercúrio nos ajudam a interpretar melhor os resultados das medições que obtivemos com nossos espectrômetros infravermelhos e infravermelhos térmicos, além de algum tipo de espectrômetro de raio X”, explica Johannes Benkhoff, cientista de projetos da BepiColombo.
Por um ano após a chegada, os veículos orbitais tomarão medições mais precisas da composição mineral de Mercúrio, sua topografia e sua estrutura interna.
Comparando esses dados com as missões passadas, os cientistas poderão até determinar se o planeta ainda está geologicamente “vivo”.
Existem depressões na superfície que parecem ter sido formadas pela evaporação de material do interior de Mercúrio, mas não sabemos ao certo se este processo ainda está ativo.
Tomadas em conjunto, essas medições podem finalmente nos permitir chegar ao fundo das misteriosas origens de Mercúrio – e, por extensão, elas podem nos ensinar muito mais sobre o nosso próprio lugar no cosmos.
“As questões sobre a alta densidade de Mercúrio e por que o seu núcleo é tão grande são muito importantes para entendermos a formação e a história do nosso Sistema Solar”, explica Benkhoff.
“A espaçonave tem um conjunto completo de carga e instrumentos e esperamos que eles realmente façam avançar o nosso conhecimento científico.”
Antes mesmo da chegada da missão, muitas das nossas impressões sobre o primeiro planeta a partir do Sol já foram alteradas.
“Quinze anos atrás, Mercúrio era considerado um planeta monótono”, afirma Benkhoff. “Mas espero encontrar muitas outras surpresas.”
Para Nicola Mari, Mercúrio é apenas o princípio.
“Em Lanzarote [ilhas Canárias], encontramos lava similar ao manto de Marte. E, para encontrar traços de Vênus, estamos pesquisando a Sicília [Itália], o Havaí, a Indonésia e Kamchatka, na Rússia.”
Quando a BepiColombo iniciar plenamente suas operações científicas, o que está previsto para ocorrer em 2026, poderemos entender melhor o quanto essas rochas da Terra podem nos contar sobre os nossos vizinhos do Sistema Solar.
Alessia Franco é escritora e jornalista especializada em história, cultura, sociedade, narração de histórias e seus efeitos sobre as pessoas.
David Robson é um escritor de ciências premiado. Seu próximo livro (em inglês) chama-se As Leis da Conexão: A Ciência Transformadora de Ser Social, a ser publicado em junho de 2024 pela editora Canongate (no Reino Unido) e pela Pegasus Books (nos Estados Unidos e no Canadá). Sua conta no X (antigo Twitter) é @d_a_robson. Ele também pode ser encontrado com o nome @davidarobson no Instagram e no Threads.
Fonte: BBC
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