- Author, Richard Gray
- Role, BBC Future
A despedida não poderia ser mais gelada. Bolas de neve cruzaram o céu em direção ao RSS Ernest Shackleton, enquanto ele se afastava do cais.
O navio começava sua viagem pelo tempestuoso Oceano Glacial Antártico, deixando 26 almas corajosas em uma ilha bloqueada pela neve, na ponta congelada da Península Antártica.
As pessoas que acenavam para o navio no porto observavam sua única ligação concreta com o resto do mundo deslizar pela água congelante. Seis meses de inverno os esperavam, completamente ilhados no continente mais frio do planeta.
Ele faz parte do grupo de 26 pessoas, entre pesquisadores internacionais e pessoal de apoio, que foram deixadas em março de 2018 na Estação de Pesquisa Rothera, do Serviço Antártico Britânico, na ilha Adelaide — a oeste da Península Antártica.
A Antártida é o continente menos habitado do planeta. Ali, não há população humana permanente. Existem apenas algumas poucas bases e estações de pesquisa espalhadas pelos seus 14 milhões de quilômetros quadrados de terras congeladas.
“Ou seja, você está isolado”, explica Clark. “Existem muitos mistérios e tradições sobre o ‘inverno na Antártida’. O sentimento mais forte foi a expectativa, além da constatação: ‘OK, isto é real, vou ficar aqui por muito, muito tempo’.”
Nas 26 semanas de clima rigoroso e escuridão quase permanente que se seguiram, Clark e seus colegas trabalharam, comeram e se socializaram na Estação Rothera, com muito pouco contato com suas casas. As ligações telefônicas via satélite são caras e, por isso, escassas.
Eles contavam apenas uns com os outros para terem companhia e um pouco de entretenimento na base. Por isso, os “inverneiros”, como são conhecidos, conversavam — muito — entre si.
“Nós falávamos uns com os outros enquanto trabalhávamos, nos intervalos, jogando sinuca ou nos nossos quartos”, conta Clark. Ele ajudou a coordenar a coleção de gravações dos inverneiros.
“Nós passamos a conhecer as histórias uns dos outros muito rapidamente. Havia muitas conversas sobre o clima — esses ventos malucos que tínhamos, o mar congelado, os icebergs, as nuvens. Ficamos muito confortáveis uns com os outros.”
O idioma comum na base era o inglês, salpicado de gírias características das estações de pesquisa na Antártida, como veremos mais adiante.
E, em meio a todas essas conversas, aconteceu algo surpreendente: seus sotaques foram se modificando.
Clark e seus colegas não perceberam a mudança. Tudo o que eles sabiam é que estavam participando de um experimento incomum, acompanhando suas próprias vozes ao longo do tempo.
Isso era feito por meio de gravações de 10 minutos a cada poucas semanas. Eles se sentavam em frente a um microfone e repetiam as mesmas 29 palavras que apareciam na tela do computador.
Comida. Café. Esconder. Fluxo de ar. A maioria das palavras (em inglês) era de uso comum durante o dia e continha sons de vogais conhecidas por soarem diferente nos diversos sotaques da língua inglesa.
As gravações foram encaminhadas para uma equipe de pesquisadores de fonética da Universidade Ludwig-Maximilians, em Munique, na Alemanha. Durante a análise, eles descobriram que a pronúncia de algumas das palavras havia se alterado muito levemente.
O experimento na Antártida forneceu uma ideia sobre algo que aconteceu inúmeras vezes ao longo da história humana. Grupos de pessoas ficaram isolados de outros, o que levou seus sotaques, dialetos e até mesmo os idiomas a ficarem diferentes entre si.
Em escala maior, os pesquisadores afirmam que o experimento pode fornecer indicações dos motivos que levaram o inglês britânico e o americano a ficarem tão diferentes.
“Nós queríamos reproduzir, ao máximo possível, o que aconteceu quando o navio Mayflower foi para a América do Norte e as pessoas a bordo ficaram isoladas por um período de tempo”, explica o professor de fonética e processamento da fala Jonathan Harrington, da Universidade Ludwig-Maximilians.
“Seis meses não é muito tempo, de forma que observamos mudanças muito, muito pequenas. Mas descobrimos que algumas das vogais haviam se alterado”, prossegue o professor.
Uma dessas mudanças foi o som de “ou” em palavras inglesas como “flow” (fluxo) e em “sew” (costurar), para a frente do trato vocal.
Os pesquisadores também observaram que alguns dos inverneiros começaram a pronunciar três outras vogais da mesma forma.
O motivo da mudança revela um possível mecanismo básico de aquisição de sotaques ao longo da vida.
“Quando falamos uns com os outros, nós memorizamos aquela fala“, explica Harrington. “Aquilo, então, tem influência sobre a nossa própria produção de fala.”
De fato, nós transmitimos e infectamos uns aos outros com pronúncias sempre que interagimos com os demais. E, ao longo do tempo, se tivermos contato regular e prolongado com alguém, podemos começar a absorver os seus sons.
Não existem assentamentos humanos permanentes na Antártida — apenas estações de pesquisa que abrigam pesquisadores e funcionários visitantes.
Entre as pessoas que vivem em comunidades isoladas — como uma aldeia em um vale remoto ou um assentamento no outro lado do oceano — isso pode gerar mudança de sotaque, à medida que as peculiaridades ou falsas percepções da fala ficam exageradas.
Durante o inverno de 2018 na Antártida, houve outro fator em jogo: a diversidade de origens dos inverneiros.
Entre as pessoas que ficaram na Estação Rothera naquele inverno, havia dois americanos, um mecânico islandês, alguns alemães, escoceses e um falante de galês.
“As bases britânicas na Antártida são bastante singulares quando o assunto é a receptividade”, explica Clark. “Por isso, você acaba tendo um verdadeiro caldeirão cultural, com pessoas de diferentes origens.” Clark ajudou a coordenar a coleção de gravações dos inverneiros.
Harrington e seus colegas usaram modelos de computador para prever como os inverneiros poderiam influenciar uns aos outros nesse caldeirão cultural.
Os modelos usaram gravações feitas antes da viagem dos inverneiros para simular o que poderia acontecer com seus sotaques à medida que eles passavam mais tempo juntos. Suas previsões foram inquestionavelmente precisas, mesmo quando os efeitos eram exagerados em comparação com o que acontecia na vida real.
Os próprios inverneiros não teriam notado o que aconteceu ao longo do tempo. Mas a análise dos sons mostrou as mudanças das ondas acústicas.
“Foi muito sutil — você não consegue ouvir as mudanças”, segundo Harrington. Mas Clark conta que a forma de falar de algumas das pessoas que passaram aquele inverno na base sofreu mudanças muito mais significativas.
“Um dos meus amigos falava galês como primeiro idioma e tinha um sotaque muito forte quando falava inglês”, ele conta. “No final do nosso período ali, o seu sotaque tinha ficado mais parecido com o de Liverpool [na Inglaterra].”
O amigo galês não foi incluído no estudo de idiomas. Mas o sotaque de uma mulher alemã ficou mais parecido com um falante nativo de inglês, à medida que ela praticava com as pessoas à sua volta, segundo Harrington e seus colegas no estudo.
Novos sotaques em Londres e Berlim
Esta mistura de pessoas de diferentes origens culturais, idiomas e sotaques não é apenas uma característica das estações de pesquisa distantes. Ela também pode ser encontrada, em escala muito maior, nas cidades modernas.
Um exemplo é o desenvolvimento, no sudeste da Inglaterra, do Inglês Londrino Multicultural (MLE, na sigla em inglês) — um dialeto que começou a surgir nos anos 1980 nas áreas da capital britânica com altos níveis de imigração.
Acredita-se que ele tenha surgido na região de Londres conhecida como East End (o chamado Cockney do East End) e tenha se misturado, inicialmente com o patoá jamaicano e, depois, com outros dos cerca de 300 idiomas falados na capital.
Uma das influências foi o grande número de pessoas aprendendo inglês como segundo idioma em Londres, segundo o professor de inglês Eivind Nessa Torgersen, da Universidade Norueguesa de Ciência e Tecnologia. Torgersen estudou MLE com suas colegas Jenny Cheshire e Susan Fox, na Universidade Queen Mary de Londres.
“Diversos falantes de MLE têm outras línguas como primeiro idioma e crescem falando inglês e um idioma natal”, explica ele. “Um exemplo é o uso de ‘wasn’t’ [‘não era’] em ‘eu não era, nós não era, eles não era’.”
Os falantes mais idosos de Londres e os mais jovens em outras partes do sudeste da Inglaterra costumam usar “weren’t” (“não eram/éramos”), segundo Torgersen.
“Esse contato entre variedades multiculturais tem diversas características parecidas: contato entre línguas e dialetos, aprendizado de segundo idioma, empréstimo de palavras de outros idiomas. O que faz o MLE diferente de outras variedades multiculturais, pelo menos até recentemente, é que não encontramos muitas palavras emprestadas de outras línguas.”
Para Torgersen, isso pode ter ocorrido, em parte, porque grande parte da migração para Londres vem de países da Comunidade Britânica de Nações, onde as pessoas falam uma variação da língua inglesa.
Como dizer ‘dia bonito’ na Antártida
No caso da Antártida, os moradores das bases britânicas não estão apenas alterando sutilmente seus sotaques. Eles também estão desenvolvendo uma espécie de gíria de pesquisa antártica — um conjunto extravagante de palavras que têm pouco significado no mundo exterior.
O que talvez soe surpreendente é que algumas dessas palavras não têm nada a ver com a ciência, nem com a Antártida.
“Existe um vernáculo estranho e diferenciado que as pessoas desenvolvem quando vêm para cá”, conta Clark.
“Se for um dia bonito, você tem um ‘dingle day’ ou, se você for pegar o lixo, você está fazendo um ‘fod plod’. Você se acostuma rapidamente e passa a ser muito normal.”
Mesmo assim, a Antártida ainda está longe do tipo de divergência de sotaques que ocorreu após a colonização da América do Norte, da Austrália e da Nova Zelândia, por exemplo.
“Para que os sotaques se desenvolvam ao ponto de poderem ser observáveis, realmente leva uma geração”, explica Harrington.
“As crianças são ótimas imitadoras, de forma que o processo de memorização da fala de outra pessoa é amplificado nas crianças. Se os inverneiros tivessem filhos, como os colonizadores do Mayflower quando foram para a América, o sotaque se tornaria mais estável.”
Mas esta possibilidade certamente ofereceria outros assuntos para os inverneiros conversarem, além do clima.
Aprenda a falar como um inverneiro
Os moradores das estações de pesquisa britânicas na Antártida desenvolveram suas próprias expressões para designar certas atividades diárias. Algumas dessas expressões têm origem em termos militares, enquanto outras surgiram de brincadeira ou por acaso.
Aqui estão algumas expressões em inglês que você pode tentar adotar:
Fod plod: pegar o lixo. “Fod” é uma abreviação de “fragmentos de objetos externos” (“foreign object debris“, em inglês).
Dingle day: dia de céu limpo e azul.
Gash: tarefas de lavagem, limpeza e cuidar do lixo.
Smoko: parada para o chá ou café.
Fid: funcionário do Serviço Antártico Britânico que está “lá no sul”.
Doo: esqui ou bicicleta de neve.
Firkle: vasculhar alguma coisa ou causar problemas.
Gonk: sono.
Fox hat (“chapéu de raposa”): o cinema noturno da base.
Fonte: BBC
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