- Author, Matthew Kenyon
- Role, BBC Sport
“Não havia alternativa a não ser se manter em movimento – do contrário, você congelava. E muitas pessoas congelavam – olhos congelados, dedos dos pés congelados, o que fosse”
É 18 de janeiro de 1963 e Leffert Oldenkamp está patinando numa manhã escura, gelada e enevoada.
Ele quase não dormiu, a temperatura são -18°C de congelar os ossos, e o vento gelado atravessa suas roupas.
Ele está participando de uma das provas esportivas mais difíceis que existem: patinar quase 200 km sobre gelo natural irregular, através da desoladora paisagem de inverno da província holandesa da Frísia.
É o famoso Elfstedentocht – o Tour das Onze Cidades – um teste de resistência física e mental como nenhum outro.
A edição de 1963 foi tão brutal que apenas um pequeno número de pessoas conseguiu chegar ao final entre as milhares que começaram.
O vencedor, Reinier Paping, tornou-se um herói nacional. Oldenkamp foi um dos poucos a também completar a prova.
Sessenta anos depois, houve apenas três edições posteriores deste evento surpreendente – a mais recente em 1997.
No entanto, apesar da sua raridade, o evento continua a ser uma obsessão nacional na Holanda.
Quando chega uma onda de frio, as conversas rapidamente se voltam para o gelo: será que a maratona finalmente acontecerá este ano?
Essas conversas estão agora marcadas pelo medo de que a resposta possa ser “nunca mais”.
Uma tarefa inglória
Wiebe Wieling é um homem com uma tarefa bastante incomum. Todos os anos, ele lidera a organização de um evento que quase certamente não acontecerá.
Wieling é presidente da Koninklijke Vereniging de Friesche Elf Steden – a Sociedade Real das Onze Cidades Frísias. É a entidade responsável pela realização do Tour das Onze Cidades.
Os participantes devem completar o percurso de quase 200 km antes da meia-noite, carimbando um cartão em cada cidade para comprovar a passagem.
Wieling e seus colegas voluntários fazem tudo o que é necessário, todos os anos, independentemente do clima, para se prepararem para o que seria, sem dúvida, um dos maiores momentos para a Holanda neste século até agora.
“Tudo, detalhadamente”, diz ele, quando questionado sobre qual é o nível de planejamento.
“Organizamos uma edição todos os anos. Temos um plano de 500 páginas ou algo assim em que todos os detalhes estão listados já no dia 1º de dezembro”, relata.
“Porque não podemos organizar uma coisa destas em poucos dias: teremos 2 milhões de visitantes, 25 mil participantes, 3 mil jornalistas, o país inteiro enlouquece”, observa.
“Queremos estar prontos todos os anos em dezembro, por isso, se houver uma oportunidade, poderemos aproveitá-la.”
Segurança, proteção, alimentação, alojamento, gestão de tráfego, cuidados de saúde – são feitos preparativos detalhados, caso possam prosseguir.
Mas, para dizer o óbvio, é preciso que esteja frio – e a única coisa que os organizadores não podem planejar é o tempo.
“É claro que é frustrante”, diz Wieling. “Mas sabemos que a chance não é grande – se não aceitássemos isso, não poderíamos lidar com uma situação assim.”
A corrida precisa de duas semanas de temperaturas em torno de -10°C ou abaixo disso, dia e noite, de preferência sem neve.
Isso deve proporcionar um mínimo de 15 cm de gelo ao longo da maior parte do percurso, o suficiente para suportar o peso de 25 mil pessoas em um breve período de 24 horas.
A primeira corrida oficial, em 1909, foi uma das 15 vezes em que esses requisitos foram cumpridos em 124 anos.
Uma madrugada em 1963
Em 1963, o trajeto era um pouco menor, mas as condições eram as piores já vistas.
Oldenkamp e outros 500 patinadores competitivos partiram no escuro, de madrugada.
Os quase 10 mil patinadores do tour – membros da Sociedade Real que são amadores entusiasmados em busca de completar o percurso em vez de vencer – os seguiriam.
Para os competidores sérios, houve uma espécie de “largada de Le Mans” (referência à corrida automobilística francesa 24 Horas de Le Mans), com os competidores correndo cerca de 1 km até o primeiro curso de água, antes de calçarem os patins.
À medida que a multidão e a cidade desapareciam na escuridão congelante, o desafio realmente começou para Oldenkamp.
Ele conseguia ouvir seus concorrentes atravessando o primeiro dos lagos, relata, mas não conseguia vê-los.
E patinar – mesmo para um atleta extremamente experiente como Oldenkamp – era difícil.
Um inverno rigoroso, combinando temperaturas extremamente baixas, neve e fortes ventos leste ou norte, deixou os cursos de água da Frísia completamente congelados – mas o gelo estava longe de ser liso.
“Não era possível fazer o movimento adequado com os patins”, diz Oldenkamp.
“Às vezes era um percurso longo, às vezes um percurso curto, e às vezes você estava apenas andando. [Era] impossível fazer um movimento fluído em seus patins e usar sua técnica”, conta.
“Se você assistir às filmagens do Elfstedentocht em 1963, verá que quase não há patinação.”
O percurso faz uma grande volta pela Frísia, inicialmente em direção ao sul a partir de Leeuwarden, antes de seguir para a costa e depois para o norte até as cidades de Harlingen e Dokkum, e de volta à capital da província.
O trajeto de elite já estava bem deteriorado quando os competidores chegaram à costa e Oldenkamp se viu com dois companheiros, incentivando-se mutuamente em solidariedade, em vez de competindo entre si.
Já era dia, mas isso não ajudou Oldenkamp a detectar um ponto fraco no gelo, e ele mergulhou na água gelada.
“Eu não vi. Entrei direto”, diz ele.
Surpreendentemente, porém, isso quase não o atrasou.
“Quase não houve interrupção. Sou um homem experiente em atravessar o gelo. Assim que você está no gelo, na água, você sai e continua patinando”, diz ele.
“Você está com um traje de corrida molhado, mas não há problema. Você começa a se mover e está tudo bem. Parar e tentar trocar de roupa é a coisa errada a fazer.”
Oldenkamp continuou, mas atrás dele, enquanto os milhares de patinadores amadores passavam pelos estágios iniciais do percurso, o tempo piorava rapidamente.
Por pouco
Apenas uma vez Wiebe Wieling chegou perto de anunciar que a corrida aconteceria.
Isso foi em 2012, quando a Holanda foi brevemente assolada pela “febre de Elfstedentocht”.
Um longo período de frio deixou grandes áreas do país congeladas, mas o gelo nunca atingiu a espessura necessária no sul da província.
Em vez de realizar todos os frenéticos preparativos de última hora que seriam necessários caso a corrida de fato acontecesse, a tarefa de Wieling foi outra: desapontar milhões.
Mas ele ainda não perdeu a esperança de um dia poder finalmente colocar seus planos em ação.
“Estou ficando menos confiante, por causa das coisas que vemos ao redor do mundo em relação ao clima e às mudanças climáticas“, diz ele.
“Mas sempre dizemos aqui que só precisamos de duas semanas [de] alta pressão no norte da Europa e podemos ter uma edição, e há exceções no tempo e no clima em todo o mundo”, afirma.
“Então, como ainda há uma pequena chance, temos que estar preparados para aproveitar essa chance e não desperdiçar a possibilidade. Portanto, todos ainda estão trabalhando, todos os anos.”
Observando o frenesi que acompanha o início do frio, ele permanece calmo.
Os habitantes da Frísia, diz ele, têm menos probabilidade de sucumbir ao excesso de otimismo do que seus vizinhos no resto da Holanda.
“Sabemos o que é preciso para organizar o tour, por isso não ficamos entusiasmados quando há uma previsão de apenas uma semana de gelo”, diz Wieling.
“Mas o resto do país já fica histérico com um período de geada que pode levar as pessoas ao gelo.”
Inferno na neve
Enquanto Oldenkamp e seus companheiros lutavam, as duras condições de 1963 se tornavam cada vez mais difíceis. O vento aumentou, as temperaturas caíram ainda mais e ficou ainda mais difícil encontrar a rota.
As informações coletadas em cada cidade – onde os participantes recebem um carimbo em um cartão para provar que passaram por ali – eram incompletas.
Oldenkamp pensa que estava em 10º e foi informado de que Paping – o líder – estava “10 ou 20 minutos à frente”. Ninguém parecia saber ao certo.
No pequeno povoado de Bartlehiem, onde os patinadores precisam se afastar do seu destino final para chegar ao último posto de Dokkum, alguém tentou impedir Oldenkamp de continuar.
Disseram-lhe que o tempo estava muito ruim e tentaram desamarrar seus patins.
Com os dedos congelados, levou muitos minutos para amarrá-los novamente. A chance de vitória de Oldenkamp já havia desaparecido, mas ele nunca pensou em desistir.
“Foi horrível, mas você deve ter a mente focada. É preciso ter apenas um propósito. ‘Tenho que chegar a Leeuwarden'”, diz ele.
Atrás dele, à medida que o tempo piorava e a luz do dia começava a desaparecer, estavam milhares de participantes, cujas chances de chegar ao fim inteiros diminuíam rapidamente.
Atingidos por ventos cada vez mais fortes, com o percurso cada vez mais coberto de neve trazida pelo vento, muitos mal tinham chegado à metade do caminho.
O frio cada vez maior e a noite que se aproximava carregavam a ameaça de caos e tragédia.
Os organizadores decidiram que era necessário tomar medidas e foram emitidas instruções para impedir que as pessoas continuassem.
Mesmo assim, o Elfstedentocht foi um evento raro, e serem privados da oportunidade de terminar – efetivamente forçados a sair do gelo – foi um duro golpe para muitos.
Mas Oldenkamp diz que foi feita a escolha certa.
“Já estava escuro, eram 18h e o vento estava cada vez mais forte. Acho que a maioria deles nunca teria terminado a tempo e teria se perdido, por questões de segurança foi a melhor coisa que puderam fazer – retirá-los do gelo.”
Foi feito um filme sobre a corrida há alguns anos – chamava-se O Inferno de 63.
Dos cerca de 500 pilotos e 10 mil patinadores amadores, apenas cerca de 120 completaram o percurso naquele dia.
Seu caminho rumo à linha de chegada foi liderado por Paping.
Assistindo a filmagens do atleta sendo recebido quando chegou a Leeuwarden, é possível ver o preço que isso cobrou dele.
Cego pela neve e mal conseguindo patinar, tendo corrido a segunda metade do tour completamente sozinho, ele está claramente perto da exaustão.
Ele é engolfado pela enorme multidão que se reuniu para recebê-lo na chegada – incluindo a então rainha da Holanda, Juliana, e a princesa Beatriz.
Algum tempo depois, Oldenkamp concluiu o percurso, 1 hora e 20 minutos depois de Paping, na 44ª colocação. A realeza tinha ido embora, mas as boas-vindas – e o sentimento – eram os mesmos.
“Havia muita gente e eles ajudavam e estavam entusiasmados. Senti como se tivesse vencido a corrida”, diz ele.
“Eles vieram com flores – imediatamente, quando ainda estava na linha de chegada, ganhei flores. E recebi apoio, bebidas e ‘como você se sente?’ e ‘deixe-me olhar para você, vamos lá’.”
“Eu estava quebrado e feliz por alguém me apoiar. Acabei de cruzar a linha de chegada e precisei de apoio para fazer o que vinha a seguir… Não era patinar, era algo como andar usando patins.”
“Não dava mais para patinar. Era impossível!”
Fama e esperança
A façanha de Paping em 1963 trouxe-lhe fama nacional duradoura, nem sempre bem-vinda.
“A esposa dele sempre disse que isso foi a coisa mais terrível de suas vidas, porque ele nunca disse não a um jornalista, nem a um convite ou a um evento”, diz Wieling.
O vencedor consecutivo de 1985 e 1986, Evert van Benthem, mudou-se para o Canadá – em parte para escapar da atenção constante.
Embora patinadoras mulheres tenham participado quase desde o início, 1985 foi o primeiro ano em que elas foram oficialmente autorizadas a competir.
Lenie van der Hoorn foi a primeira competidora feminina a completar a prova naquele ano. Se e quando o Tour das Onze Cidades se repetir, haverá pela primeira vez um título separado para as mulheres.
Vinte e sete anos e contando desde a última edição, é impossível prever exatamente qual o impacto que a próxima corrida terá – se é que ela acontecerá.
Mas Wieling está certo de que os vencedores continuarão a ocupar um lugar especial no panteão desportivo da Holanda.
“Você será o herói do país por muitos anos, até morrer”, diz ele.
“Ninguém jamais esquecerá – e você será confrontado com isso todos os dias.”
Mesmo na contínua ausência de gelo, a atração da rota entre as “Onze Cidades” da Frísia permanece.
Em 2019, o campeão olímpico de águas abertas Maarten van der Weijden – que teve leucemia na juventude – arrecadou milhões de euros para pesquisas sobre o câncer quando nadou nesta rota.
Em 2023, ele coroou esse feito notável com um Triatlo das Onze Cidades, completando três voltas do percurso – uma a nado, uma de bicicleta e uma a pé, acompanhado por uma multidão crescente de apoiadores e novamente arrecadando milhões.
Há um passeio ciclístico das Onze Cidades que acontece todos os anos, quando os turistas podem traçar o percurso em um ritmo mais tranquilo.
Durante o inverno, milhares de patinadores holandeses viajam para climas mais frios para participar de um “Elfstedentocht alternativo”, percorrendo toda a distância à volta de um lago na Áustria.
Há até um musical, lançado em outubro num teatro especialmente construído na capital da Frísia, que tem como tema central o Elfstedentocht.
Um palco giratório coberto de gelo permite que os atores patinem enquanto permanecem parados na frente do público.
Mas é o esporte real, e o percurso original, que dominam a imaginação holandesa.
Todos os anos, quando há uma onda de frio, eles se dirigem para o gelo.
Patinadores desportivos deslizando em alta velocidade por paisagens congeladas, famílias ensinando a magia aos pequenos, jovens e velhos se reunindo onde quer que haja gelo suficiente para patinar.
Clima gelado, bebidas quentes, petiscos doces – e todos os anos as mesmas conversas animadas.
Vai acontecer? Haverá finalmente um Elfstedentocht este ano?
Fonte: BBC
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