- Author, Beverley D’Silva
- Role, BBC Culture
O desenho mais antigo conhecido, feito por seres humanos, foi descoberto em 2021 na caverna Blombos, na África do Sul. Cerca de 73 mil anos atrás, uma mão humana pegou um lápis de cor ocre e fez um desenho hachurado sobre uma lasca de pedra silcrete — um mineral parecido com concreto composto por areia fina e cascalho.
O desenho está entranhado em todos nós. É o nosso primeiro meio de expressão e criatividade, segundo Julia Balchin, diretora da Escola Real de Desenho, em Londres.
“Durante a infância, antes mesmo de aprender a falar, andar ou ler, você pode desenhar”, explica ela. “Por isso, é muitas vezes nossa primeira forma de expressão.”
Atualmente, os poderosos filmes do artista sul-africano William Kentridge são criados com desenhos, enquanto a britânica Tracey Emin expressa em seus desenhos o seu luto e solidão pessoal.
Embora a popularidade do desenho tenha “enfrentado altos e baixos ao longo dos séculos”, Balchin identifica uma profunda queda nos anos 1970.
Na época, o mundo acadêmico das artes considerava que o desenho era algo “muito antiquado”, especialmente o desenho de modelos vivos. Instituições como a Escola de Belas Artes de Slade e a Real Academia de Artes, ambas em Londres, pararam de ensinar a desenhar.
A Escola Real de Desenho (RDS, na sigla em inglês) foi criada no ano 2000 para preencher essa lacuna e se transformar em “um local para onde os artistas e as pessoas que queriam desenhar pudessem vir para desenhar”.
Atualmente, o desenho voltou a ser popular. As pessoas apreciam essa atividade pelas suas qualidades terapêuticas e pelo senso de “fluxo” que ela gera, especialmente desde os lockdowns da pandemia de covid-19.
As matrículas de alunos (online) da RDS dobraram em 2020 — e continuam apresentando crescimento estável, passando de 1 mil para os atuais 3 mil alunos por semana. E o desenho de modelos vivos representa mais da metade dos seus quatro módulos.
“Acho que o que se demonstrou aqui foi um desejo real de toque e contato humano”, afirma Balchin. “Se as pessoas não podiam ficar perto de outros seres humanos, elas os desenhavam.”
Os alunos confirmaram que o desenho ajudou a melhorar sua saúde mental. “Muitos vieram exclusivamente para isso… para reduzir a velocidade da vida.”
Pegar um lápis ou carvão e fazer traços de forma consciente nos conecta às nossas habilidades tácteis, ao sentido do tato, e oferece um descanso do interminável esgotamento digital. E isso é importante para a saúde mental.
No Reino Unido, o próprio NHS (o sistema público de saúde) oferece arteterapia para alguns pacientes.
Quando a artista britânica Emily Haworth-Booth começou a sofrer de encefalomielite miálgica (síndrome da fadiga crônica), ela não conseguia trabalhar. Tentar ler ou escrever a “fazia girar”, conta ela no livro Ways of Drawing (“Formas de desenhar”, em tradução livre).
Ela percebeu que o desenho consciente “se tornou uma espécie de âncora que eu podia lançar para ficar firme, para me tranquilizar… eu estava ‘aqui’, a realidade era sólida”.
Desenhar “claramente diminuiu minha ansiedade e me fez respirar mais lentamente”, permitindo que “ocorresse a cura”, relembra ela.
Após uma sessão de desenho, ela sentia “o alívio e a dose de endorfina que eu experimentava depois, digamos, de uma aula de ioga ou de uma sessão de psicoterapia muito proveitosa”.
Claire Gilman é curadora-chefe do Centro de Desenho de Nova York, nos Estados Unidos. Ela também observou um aumento da paixão pelo desenho durante o lockdown — e esse crescimento continua até hoje.
“Naquele momento, os artistas voltaram a desenhar por muitas razões, até porque seus estúdios ficaram inacessíveis”, ela conta.
Mas Gilman reconhece que “o desejo de pegar um lápis ou caneta e imediatamente traduzir seus sentimentos para o papel”, especialmente em “momentos desafiadores”, tem apelo universal.
Gilman e Roger Malbert, curador e escritor sobre arte contemporânea, produziram em conjunto o livro Drawing in the Present Tense (“Desenhar no tempo presente”, em tradução livre), que é uma visão geral de “diversas abordagens de desenho”, ricamente ilustrada.
O trabalho dos 74 artistas contemporâneos selecionados reflete “o papel do desenho como forma de abordar a instabilidade e os traumas sociais pessoais”, entre outras coisas.
Malbert descreve o propósito do desenho como “ensinar você a olhar e observar o mundo de forma diferente”.
“Se você registrar o que está vendo… você coloca o mundo na sua consciência de forma muito direta”, explica ele. “Isso está disponível para as pessoas que desenham em todo o mundo.”
Gilman acredita que desenhar oferece particularmente “um descanso para as telas de que somos tão dependentes. Uma aula de desenho de modelos vivos, especialmente, força você a olhar para o mundo, sem que ele seja mediado por uma tela, e traduzi-lo.”
Propriedades curadoras
A artista chinesa Zhang Yanzi é apresentada no livro.
Seu amor pelo “medicina e bem-estar espiritual” inspira seus delicados desenhos de máscaras chinesas e partes de flores. Eles retratam “a misteriosa interação entre fenômenos mentais e físicos e as aflições da mente e do corpo”.
Zhang acredita que a arte tem “o poder de aplacar o sofrimento psicológico”.
Malbert faz referência à noção das propriedades curativas do desenho.
“Sempre desenhei de forma suavemente terapêutica”, ele conta. “Quando desenho a natureza, passo o tempo concentrado, sentado em um ambiente natural, desenhando… definitivamente, melhora o estado de espírito.”
Ele compara sua atividade com ioga, “quando você não pensa em mais nada”. Como Balchin, ele acha que o desenho pode ser uma forma de “meditação”.
O artista britânico John Hewitt afirma que sua eventual ansiedade por fazer um desenho “ruim” é compensada pelo prazer causado por “uma linha que flui com perfeição… padrões e ritmos inesperados, além de outros pequenos sucessos”.
Hewitt tem uma carreira longa e notável na Escola Real de Artes. Ele é o autor de desenhos detalhados e imaginativos.
Ele fez capas de CD para a banda irlandesa The Pogues; desenhou pessoas dormindo na rua em Manchester, no Reino Unido, “para promover a consciência do problema dos sem-teto”; e foi a única pessoa, exceto pela equipe da BBC, convidada a registrar o funeral do ator Laurence Olivier (1907-1989) na Abadia de Westminster, em Londres.
Seu sucesso mais abrangente se estabeleceu a partir de 2013, quando ele começou a postar um desenho (quase) todos os dias no Instagram. Suas vivas imagens de animais e da vida diária na região dos Peninos do Sul, no norte da Inglaterra, muitas vezes são desenhadas às pressas, sempre em cadernos de bolso da marca Moleskine — “a base da minha prática” — com uma caneta gel Pilot 0,5.
A postagem de Hewitt que recebeu mais curtidas até agora foi o retrato de um gato. Ele conta que os gatos pretos sempre são mais curtidos. “O peso da tinta observado nos celulares causa mais impacto, eu acho.”
Mas nem todos os desenhos são de gatos simpáticos. Hewitt presenciou os atentados terroristas a bomba de 2005 em Londres, mas não estava com seu caderno de desenho. Por isso, ele fez 59 desenhos de memória, que foram expostos no Museu de Londres.
Hewitt também desenhou os últimos dias de sua mãe no hospital. “Percebi que não havia nada mais que eu pudesse fazer de forma positiva, então desenhei seu braço, seus travesseiros, a cama”, relembra ele.
E sobre a arte como terapia de saúde mental? O ponto mais próximo a que Hewitt chegou são seus desenhos feitos em noites de lua cheia.
“Eles me dão prazer enorme e imediato, pois não há padrões de ‘bons’ desenhos. Não tenho ideia de como eles irão sair até que entro em casa: a surpresa é a recompensa.”
O artista britânico Charlie Mackesy começou a desenhar avidamente com 19 anos de idade, depois que seu melhor amigo morreu em um acidente de carro.
“Comecei a desenhar como uma espécie de Forrest Gump reagindo ao trauma”, contou ele à revista GQ. “Comecei a desenhar… e, simplesmente não conseguia [parar]. Foi uma forma de processar tudo.”
Seu livro de ilustrações de 2019, The Boy, the Mole, the Fox and the Horse (“O menino, a toupeira, a raposa e o cavalo”, em tradução livre), atraiu um exército de admiradores dos seus comoventes desenhos e suas lições sobre a vida e a amizade.
Malbert afirma que o desenho pode “colocar você em contato com o mundo e consigo próprio — e pode mudar como você vê as coisas, ser aquele… conflito social, humanidade, emoções. Pode expandir seu alcance emocional — e isso é muito profundo.”
O livro “Drawing in the Present Tense”, de Clair Gilman e Roger Malbert, foi publicado pela editora britânica Thames & Hudson.
Fonte: BBC
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