- Author, Leandro Machado
- Role, Da BBC News Brasil em São Paulo
- Twitter, @machadoleandro
No Largo da Batata, em Pinheiros, as sombras das poucas árvores eram disputadas por garis carregando carrinhos e vassouras e entregadores de aplicativo com suas bicicletas, mochilas e marmitas.
Era mais um dia de calor extremo na capital paulista.
Às 13h da terça-feira (14/11), calor de 38°C no termômetro da rua, os trabalhadores desfrutavam de minutinhos de descanso entre uma entrega e outra, entre uma varrida e outra, nas ruas da zona oeste de São Paulo.
“A gente não está acostumado com esse sol forte na testa, não”, diz Artur Rodrigo, de 20 anos, enquanto comia arroz, feijão e frango com a mão.
Todos os dias ele pedala de Paraisópolis, comunidade onde vive, até a região da avenida Faria Lima, área ocupada principalmente por escritórios do mercado financeiro e empresas de tecnologia.
Depois do almoço, abriu a mochila e pegou uma garrafa de água que havia enchido no último restaurante que passou, pois bebedouros públicos são raros na cidade – na praça, por exemplo, não há nenhum.
“Não dá para beber essa água, não. Olha aqui como está quente”, diz, despejando um pouco na mão do repórter, e saindo para encher a garrafa em um bar do outro lado da rua.
A água estava quente como o concreto do Largo da Batata, que parece piorar a sensação térmica durante a onda de calor.
O fenômeno tem levado a recordes históricos de temperatura em diversas cidades do Brasil — há locais em que os termômetros chegaram a marcar até 13ºC a mais do que esperado para esta época do ano. Já a sensação térmica chegou a ultrapassar os 50ºC.
Cercados por prédios envidraçados da Faria Lima, os entregadores da região eram os poucos corajosos que se arriscavam sob o sol da terça-feira.
“Muita gente não está nem saindo do trabalho para almoçar fora. Pede a comida pelo aplicativo e come no escritório”, diz Pedro Ivo Ribeiro, 33, que virou entregador há seis meses depois de perder o emprego na área de logística.
Para ele, o calorão desta semana traz uma vantagem: os aplicativos estão pagando mais pelas corridas, diz.
A lógica é simples: com a onda de calor, muitos entregadores preferem não sair de casa, então, os apps dão bônus para quem decide se arriscar.
“Acontece o mesmo quando chove forte. Fazem isso para atrair mais entregadores. Eu ganhava R$ 6,50 por chamada, agora está em R$ 13,50”, conta Ribeiro, que mora em Carapicuíba, na Grande São Paulo, e todos os dias aluga uma bicicleta do banco Itaú para rodar pelos restaurantes e prédios de Pinheiros.
“Sou cascudo, trabalho no sol e na chuva. A vantagem é que posso parar a hora que quiser. Se estiver cansado, venho aqui na praça até recuperar o fôlego. Não tem patrão no meu pé”, diz Ribeiro, que normalmente trabalha das 10h às 23h.
A reportagem procurou os principais aplicativos do mercado de entregas e transporte. O iFood foi o único que havia respondido até a publicação deste texto.
“A empresa investe constantemente em iniciativas e na comunicação junto aos profissionais, reforçando a recomendação de uso de roupas leves, protetor solar e aumento de pausas de descanso entre uma entrega e outra”, disse.
“Para essas pausas, o iFood disponibiliza mais de 750 pontos de apoio no Brasil. Os espaços oferecem pontos para descanso, acesso a banheiros e água gelada, além de tomadas com energia para carregamento de celulares. O iFood promoveu a distribuição de mais de 5 mil camisas de proteção UV e protetores solares”, afirmou a empresa.
A poucos metros, na sombra de outra árvore do largo, dois garis se sentaram para descansar um pouco.
“O senhor me desculpe, mas não posso dar entrevista, não. Está bem, falo rapidinho”, respondeu um deles, José Luis, 47, que preferiu não dar o sobrenome.
“Se o encarregado vê a gente aqui sentado, conversando com o senhor, vem bronca na certa. Não pode ficar parado”, diz ele, já levantando para pegar a vassoura.
Os dois garis disseram que usam protetor solar durante os dias, material fornecido pela empresa terceirizada responsável pela limpeza das ruas de Pinheiros. “Mas água mesmo, a gente pede é nos bares”, diz.
Em nota à reportagem, a Prefeitura de São Paulo afirmou que “todos os servidores municipais, funcionários de empresas contratadas e de concessionárias são orientados a seguir as recomendações dos técnicos de segurança para a utilização e reaplicação ao longo do dia do protetor solar e de que hidratação com maior frequência”.
“Trabalhadores cujas funções exigem maior exposição ao sol, como de serviços de limpeza, obras, agentes da CET, funcionários de parques e de ações de zeladoria, também utilizam uniformes confeccionados com tecido apropriado para o verão, bonés com abas e demais Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) necessários”, afirmou a administração municipal.
‘Não pode abusar’
O ar-condicionado do metrô era um alento momentâneo para quem deixava o Largo da Batata para ir ao centro de São Paulo usando a linha 4-amarela.
Mas quando as portas do trem se abriram novamente na estação República, uma lufada quente no rosto nos lembra que a tarde seria difícil para quem depende da rua para sobreviver.
É o caso Katia dos Santos, 41, que passa o dia embaixo do sol na rua Barão de Itapetininga abordando pessoas aleatórias.
“Meu trabalho é simples: só tenho que levar clientes para os advogados trabalhistas. Dá um bom dinheiro, uns R$ 40 por dia. Sou boa nisso, porque sou desenrolada”, diz ela, com um colete que informa sua função.
Katia usa protetor solar e, sempre que possível, procura uma sombra para descansar quando o movimento da rua diminui.
“Não pode abusar, porque esse sol forte pode causar câncer de pele. Mas a gente tem que trabalhar, não pode ficar muito tempo parado, tem conta pra pagar”, diz.
A exposição ao calor extremo pode levar a uma série de problemas de saúde, como desidratação, aumento da frequência cardíaca e queda de pressão, entre outros.
A rua Barão de Itapetininga, calçada de pedras portuguesas, é a meca dos desempregados de São Paulo. Nos prédios antigos, há inúmeros escritórios de advogados trabalhistas, agências de emprego e lan houses que cobram R$ 2 para fazer e imprimir um currículo.
Expostos ao sol no calçadão, há trabalhadores de toda ordem: plaqueiros oferecendo vagas de emprego em serviço gerais, vendedores de chips de celular, homens com placas de “compra-se ouro”, um pintor de quadros de paisagens e imigrantes vendendo tecidos tradicionais de países da África.
Encostada em um dos prédios estava Luciana das Graças da Silva, 40, vendedora e aplicadora de películas de tela de celular.
Sob uma pequena sombra, ela não reclamou da onda de calor.
“Para mim está bem de boa. Calor forte faz na minha cidade, Mantena, em Minas Gerais. Minha filha me ligou ontem e disse que lá estava 47°C.”
Seu ponto fica ao lado de um MC Donald’s. Quem estava na fila do sorvete da lanchonete – “hoje está uns 20 minutos de espera”, disse uma funcionária – ouvia a propaganda vinda de uma caixa de som acoplada ao quiosque de Luciana: “O que seria do seu celular sem a película de vidro, não é mesmo? Custa só R$ 5.”
A poucos metros dali fica o Viaduto do Chá, tradicional passagem do centro de São Paulo e local ocupado por muitos trabalhadores da rua. Há cartomantes, mães de santos, pastores lendo a Bíblia em voz alta, vendedores de celulares e até um conselheiro de investimentos no mercado financeiro.
Esse último era Enio Amorim, 41, formado em economia pela Universidade Cruzeiro do Sul, que duas vezes por semana faz bico no viaduto com um cartaz anunciando seus conselhos para uma vida financeira mais saudável.
“Para mim, é muito pior quando chove, porque não tenho como trabalhar. Nessa semana, estou sofrendo mesmo é por causa da vestimenta. Roupa social nesse calor não é fácil para ninguém, mas, na minha área, o terno passa confiança”, diz ele, que só está pegando ônibus com ar condicionado para chegar ao centro.
Para Amorim, o clima atual é como a economia brasileira: “Está ruim agora, vai melhorar um pouco no final do ano, mas, a longo prazo, vai piorar muito. Por isso é melhor se planejar.”
Ao lado dele estava Graice Pinto, 50, vendedora de água e refrigerantes.
“Esses dias estão ótimos. Hoje cheguei aqui meio-dia, olhei o relógio ali na rua: estava 41°C. Saí de casa com 50 garrafas e já vendi quase tudo”, diz ela, negando tirar uma foto para a reportagem.
“Sou procurada”, avisa, séria. “Brincadeira, menino.”
“O problema é o rapa. Quando eles chegam, ou você sai correndo ou eles levam tudo de você. Vida de ambulante é assim: um olho no cliente e outro no rapa.”
O Viaduto do Chá estava quase vazio, e a temperatura caiu no centro de São Paulo. Nuvens negras e um vento forte anunciavam um temporal por volta das 16h de terça-feira. Alguns passavam correndo com medo da chuva que se anunciava. Mas ela não veio e o calorão voltou no dia seguinte.
Colaborou Felipe Souza
Fonte: BBC
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