- Author, André Biernath
- Role, Da BBC News Brasil em Londres
- Twitter, @andre_biernath
A cada hora, oito homens brasileiros recebem o diagnóstico de câncer de próstata. Desses, dois irão morrer por causa do problema.
Em números absolutos, essa doença provoca 71,7 mil casos e 16,3 mil mortes ao ano no país. Isso faz desse tumor o segundo tipo mais frequente no público masculino, atrás apenas do câncer de pele não melanoma.
Quando o assunto é a prevenção dessa enfermidade, existem duas estratégias principais. A primeira delas foca em controlar os fatores de risco que predispõem o surgimento do tumor — como não fumar e manter o peso adequado ao longo da vida por meio de uma dieta adequada e da prática regular de exercícios físicos.
A segunda envolve a detecção precoce do câncer nessa glândula do sistema reprodutivo, responsável pela produção do líquido que compõe o sêmen junto com os espermatozoides.
Durante muitos anos, as campanhas que incentivam o rastreamento do tumor na próstata — que se intensificam com a chegada do Novembro Azul, o mês de conscientização sobre o tema — traziam uma mensagem relativamente simples: todos os homens com mais de 45 ou 50 anos deveriam procurar o médico e realizar de tempos em tempos os exames PSA e o toque retal.
O PSA, sigla em inglês para antígeno específico da próstata, é uma enzima medida no sangue. Se ela passa de um certo limite estabelecido pelos especialistas, pode indicar algo de errado na glândula masculina.
Já o toque retal é um exame feito no próprio consultório, em que o profissional da saúde insere o dedo no ânus do paciente para tocar a próstata (ela fica próxima do reto) e checar se há alguma formação estranha ali.
A orientação de realizar esses testes, no entanto, passou a ser mais questionada, debatida e relativizada nos últimos anos no Brasil e no mundo.
De um lado, algumas instituições — como o Ministério da Saúde e o Instituto Nacional de Câncer (Inca) — contraindicam a realização do rastreamento do câncer de próstata.
De outro, entidades como a Sociedade Brasileira de Urologia (SBU) defendem a importância desses exames periódicos para alguns públicos.
Quais são os argumentos apresentados nessa discussão? E, mais importante, o que os homens devem fazer em prol da própria saúde para flagrar um eventual tumor na próstata logo nos primeiros estágios, quando as chances de cura são bem maiores?
O que diz o Inca
No final de outubro, o Inca e o Ministério da Saúde publicaram uma nota técnica em que justificam por que contra-indicam o rastreamento populacional do câncer de próstata.
O argumento principal apresentado no texto é o risco de sobretratamento — ou a aplicação de recursos terapêuticos sem necessidade e além do desejado, de modo que os prejuízos superam os benefícios.
E aqui cabe uma explicação: entre 30 e 40% dos tumores que brotam na glândula masculina têm um comportamento indolente (ou seja, são pouco agressivos e crescem devagar).
Na prática, isso significa que o indivíduo futuramente vai morrer com o câncer, mas não em decorrência dele.
E o problema está justamente aí. Nesses casos em que a doença é praticamente inofensiva, os médicos costumam indicar a realização da chamada vigilância ativa — em outras palavras, basta fazer o acompanhamento por meio de exames, sem a necessidade de submeter o paciente a tratamentos ou cirurgias.
Essas intervenções só são adotadas se os testes indicarem alguma alteração no quadro, como o início de algo mais agressivo e potencialmente fatal.
“Mas nem sempre é possível dizer, no momento do diagnóstico, quais tumores terão comportamentos agressivos e quais terão crescimento lento”, aponta a nota do Inca/Ministério da Saúde.
“O sobretratamento é o tratamento de cânceres que não evoluiriam a um ponto ameaçador e pode gerar importante impacto na qualidade de vida dos homens, como as disfunções sexual e urinária”, complementa o texto.
Outro perigo apontado pelos representantes dos órgãos vinculados ao Governo Federal está relacionado à biópsia. Em resumo, aqueles pacientes que apresentam alguma alteração importante no PSA e/ou no toque retal precisam ser submetidos a um procedimento que retira um pedacinho do nódulo suspeito.
Esse material é analisado em laboratórios de patologia para definir se se trata de um câncer mesmo ou de algo benigno.
Na avaliação do Inca e do Ministério da Saúde, a necessidade de fazer biópsia pode estar relacionada a “complicações como dor, sangramento e infecções, além de ansiedade e estresse no indivíduo e na família”.
Em entrevista à BBC News Brasil, Renata Maciel, chefe da Divisão de Detecção Precoce e Apoio à Organização de Rede – Coordenação de Prevenção e Vigilância do Inca, destaca que o posicionamento recém-divulgado é apenas um reforço de algo que a instituição defende desde 2015.
“Temos estudos que avaliaram essa questão e mostraram que o rastreamento do câncer de próstata está relacionado a uma diminuição da mortalidade. Essa redução, porém, é acompanhada de danos à saúde do homem”, diz ela.
“Então, quando colocamos esses fatores na balança, entendemos que os riscos relacionados ao rastreamento na população assintomática superam os benefícios”, pontua a especialista.
Mas, seguindo essa linha de raciocínio, o que pode ser feito para se proteger ou fazer a detecção precoce do câncer de próstata?
“O homem tem que prevenir os fatores de risco e adotar hábitos saudáveis, como diminuir o consumo de bebidas alcoólicas, não fumar, praticar atividade física”, responde Maciel.
“Vale também ficar atento aos sinais e sintomas e acessar o serviço de saúde rapidamente. Se há algo de diferente, é importante ir até uma unidade de saúde e conversar com um profissional para fazer o diagnóstico mais precoce possível deste tumor”, complementa ela.
Entre os sintomas preocupantes citados pela especialista, estão alterações no hábito urinário, dificuldade ou dor para fazer xixi, e aparecimento de sangue ou um líquido rosado na urina.
“Nós fazemos o acompanhamento das evidências, até porque a ciência é dinâmica. Se sair algum estudo que prove o contrário e mostre o valor do rastreamento, vamos reavaliar nosso posicionamento”, pontua Maciel.
“Quando pensamos na saúde pública, não podemos cometer erros. Porque nossas recomendações influenciam a vida de milhões de pessoas e precisamos sempre ter muito cuidado”, finaliza ela.
O que diz a SBU
Num posicionamento também divulgado no final de outubro, a Sociedade Brasileira de Urologia defendeu individualizar a realização de exames periódicos para flagrar o câncer de próstata, “após ampla discussão de riscos e potenciais benefícios, em decisão compartilhada com o paciente”.
“Os homens, a partir de 50 anos e mesmo sem apresentar sintomas, devem procurar um profissional especializado, para avaliação individualizada tendo como objetivo o diagnóstico precoce do câncer de próstata”, aponta o texto.
“Os homens que integrarem o grupo de risco (raça negra ou com parentes de primeiro grau com câncer de próstata) devem começar seus exames mais precocemente, a partir dos 45 anos. Após os 75 anos, somente homens com perspectiva de vida maior do que 10 anos poderão fazer essa avaliação.”
O médico Alfredo Canalini, presidente da SBU, lembra que em 2012 o U.S. Preventive Task Force — um órgão que ajuda a definir as políticas públicas de saúde nos Estados Unidos — fez um posicionamento contrário ao rastreamento do câncer de próstata.
“Anos depois, isso levou a um aumento dos diagnósticos da doença em estágio avançado por lá”, observa ele.
“Portanto, você deixar para fazer os exames somente quando alguns sintomas aparecem é um equívoco enorme. Nesses casos, a possibilidade de você estar diante de um paciente com a doença já alastrada e sem possibilidade de cura supera os 90%”, calcula Canalini.
Ainda de acordo com o presidente da SBU, “o tempo vai mostrar quem está certo e quem está errado” nesse debate sobre a realização de exames periódicos para a detecção precoce do câncer de próstata no Brasil.
“Somos uma entidade científica e nossa obrigação é expor recomendações segundo aquilo que acreditamos correto e as evidências científicas que temos à disposição”, diz ele.
Para Canalini, o risco de sobretratamento do câncer de próstata — como Inca/Ministério da Saúde chamam a atenção — pode ser minimizado com o uso de ferramentas e critérios modernos.
“Ao longo do tempo, começamos a entender quais eram os grupos de pacientes suscetíveis a um câncer mais agressivo ou aqueles com maior probabilidade de uma doença indolente”, avalia ele.
Para fazer essa avaliação, os médicos levam em conta a idade do paciente e o histórico familiar.
Além disso, exames de imagem como a ressonância magnética permitem avaliar melhor um caso suspeito antes de partir para a biópsia.
Ainda segundo especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, o risco de complicações relacionadas à biópsia é baixo — em torno de 1 a 2% — se o procedimento for feito por profissionais treinados em centros especializados.
Por fim, eles argumentam que a análise da biópsia permite classificar as células cancerosas segundo o grau de agressividade delas.
Para isso, os patologistas usam uma ferramenta chamada Classificação de Gleason — quanto mais elevado o grau, maior o risco de que o tumor seja agressivo ou tenha se espalhado para outros tecidos (num processo conhecido como metástase).
“Nos últimos tempos, também aprendemos que nem todo indivíduo com PSA elevado é portador de câncer na próstata, e nem todo mundo com um PSA dentro dos limites está livre do risco de um tumor desses”, acrescenta Canalini.
“Por isso que aliamos o PSA com o toque retal. Isso nos ajuda a fazer um diagnóstico mais preciso”, complementa o urologista.
A partir de todas essas ponderações e cuidados, a SBU defende a realização de exames periódicos para flagrar o câncer de próstata em estágio precoce, como mencionado anteriormente.
“Apesar dos avanços terapêuticos, cerca de 25% dos pacientes com câncer de próstata ainda morrem devido à doença. Atualmente, cerca de 20% ainda são diagnosticados em estágios avançados, embora um declínio importante tenha ocorrido nas últimas décadas em decorrência, principalmente, de políticas para o diagnóstico precoce da doença e maior conscientização da população masculina”, afirma a entidade.
Em nota, a Sociedade Brasileira de Radioterapia (SBRT) adotou uma posição parecida.
“Sabemos que no Brasil, o acesso e compreensão da população masculina sobre as questões relativas ao rastreamento é limitado. Desta forma, contraindicar tal procedimento restringe o acesso e tem potencial de grande prejuízo sobre a população de risco mais elevado, pois pode levar a uma má compreensão sobre o tema”, diz o texto.
“A ida ao urologista constitui em muitos casos a única oportunidade de o paciente comparecer ao médico de forma preventiva no Brasil. Várias oportunidades de rastreio de outras condições podem ser perdidas com a contraindicação ao rastreio do câncer de próstata, além da perda das oportunidades de avaliações de outras questões urológicas infecciosas e orientações urológicas e saúde sexual aos pacientes”, conclui a SBRT.
Rastreamento ‘inteligente e direcionado’
Na avaliação do médico Gustavo Guimarães, diretor do Instituto de Urologia, Oncologia e Cirurgia Robótica (IUCR), em São Paulo, os estudos mais recentes não deixam dúvidas de que o diagnóstico precoce do câncer de próstata aumenta as chances de sobrevida e cura do paciente.
“Por um lado, um rastreamento populacional irrestrito gera um risco de sobretratamento. Por outro, não fazer nada aumenta o diagnóstico de casos avançados e a mortalidade por este câncer”, pondera ele.
“O ideal seria fazer um rastreamento inteligente e direcionado aos grupos de maior risco”, propõe o urologista, que também é diretor dos Departamentos Cirúrgicos Oncológicos da BP – A Beneficência Portuguesa de São Paulo.
Essa estratégia “inteligente e direcionada” serviria para balancear a necessidade de detectar o tumor na glândula masculina nos primeiros estágios e os recursos públicos disponíveis para manter um programa como esse nos sistemas de saúde.
“A grande questão é: dentro de um orçamento curto, como eu consigo selecionar os homens que mais precisam fazer os exames e baratear os custos desse processo?”, questiona o oncologista Fernando Maluf, fundador do Instituto Vencer o Câncer.
“Um rastreamento populacional num país como o nosso talvez devesse ser feito entre os 50 e os 70 anos”, opina ele.
Ainda segundo Maluf, o primeiro exame é essencial para definir a periodicidade desse check-up.
“Se o valor do primeiro PSA for muito baixo, você não precisa repetir o teste em um ano. Talvez só seja necessário refazê-lo daqui a três anos”, sugere o especialista, que também atua na BP e no Hospital Israelita Albert Einstein, na capital paulista.
“Isso diminui os custos e seleciona melhor aqueles pacientes que precisam ser acompanhados de perto”, conclui ele.
Guimarães lembra que o debate sobre gastos com saúde deve ser mais amplo.
“Um homem brasileiro de 50 ou 60 anos representa uma força de trabalho essencial para nossa economia”, destaca.
Seguindo essa linha de raciocínio, o médico pontua que a detecção de um câncer avançado nesses indivíduos representa um prejuízo duplo: primeiro, o valor elevado do próprio tratamento contra o tumor; segundo, o afastamento do trabalho para lidar com uma doença que, em muitos casos, poderia ser diagnosticada numa etapa inicial (quando os cuidados terapêuticos costumam ser mais simples e baratos).
Por fim, há um aspecto em que todas as partes envolvidas nesse debate parecem concordar: o homem está no centro dos cuidados e, junto do médico, deve ser parte ativa de qualquer estratégia sobre fazer (ou não) os exames periódicos.
“Isso é uma tendência na Medicina: individualizar as condutas e tomar decisões compartilhadas”, constata Canalini.
“Por questões culturais, os homens não estão acostumados a acessar os serviços de saúde. E precisamos passar o recado de que eles devem ficar atentos e fazer o acompanhamento não só para câncer, mas também para uma série de doenças crônicas, como hipertensão arterial e diabetes”, diz Maciel.
“O paciente precisa estar no centro das decisões e entender os prós e contras de qualquer medida. Mas não podemos ignorar que a palavra e a orientação do médico são muito importantes nesse processo”, pondera Maluf.
“Para que toda discussão tenha frutos, ela precisa necessariamente incluir os principais interessados em toda essa história: os próprios homens”, conclui Guimarães.
Fonte: BBC
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