- Author, Mônica Foltran
- Role, De Florianópolis para a BBC News Brasil
Era uma tarde de sábado nublada em Joinville. Em uma praça da cidade catarinense, Adelina Corrêa Lopes dos Santos esperava sentada em um banco, esfregando as mãos visivelmente apreensiva.
Lior Vilk havia viajado de Israel, onde cresceu, para o Brasil para o encontro com Adelina após descobrir que havia sido uma das milhares de crianças brasileiras traficadas do Brasil para o exterior nos anos 1980.
Depois 16 anos de busca, ele finalmente estava do lado da mãe biológica.
Era um desfecho que havia conseguido depois de muito esforço, reviravoltas e alguns golpes de sorte, incluindo uma conversa que ouviu sem querer e um banco de DNA.
Até aquele momento, parecia calmo.
“Eu tentei esconder”, conta Lior. “Mas, nesta hora, eu me sufoquei em lágrimas.”
O reencontro entre filho e mãe aconteceu em julho e foi testemunhado pela BBC News Brasil.
Na praça em Joinville, algumas crianças brincavam no parquinho, que fica próximo da casa de repouso onde Adelina mora há algum tempo, porque tem epilepsia.
“Andando até ela, eu não escutava as pessoas, os barulhos. Eu só me vi naquele caminho, passando as árvores até chegar ao banco”, disse Lior.
Lior quebrou o silêncio com um “olá” engasgado. Adelina olhou para trás surpresa.
“Quando ele sentou aqui perto de mim”, diz ela, “senti um choque. Fiquei feliz.”
Seus olhos se encheram de lágrimas. Eles se abraçaram.
“Todo o estresse foi embora”, diz Lior. “De repente, ficamos só ela e eu.”
Os dois tiveram uma longa conversa.
“Eu disse que sou a mãe dele”, conta Adelina, “e falei ‘desculpa porque não pude criar você’.”
Eles haviam se visto uma vez antes, pelo computador, alguns dias antes.
“Pela câmera, ela não parecia comigo”, diz Lior, que tem 38 anos, cabelos castanhos como os de Adelina, já grisalhos, e pele branca como a dela, mas bronzeada — e olhos azuis.
“Olhando o rosto dela agora… sim, somos parecidos.”
Mãe e filho esperaram quase quatro décadas por esse momento.
“É um sonho realizado, de muitas desistências, mas também de resistência”, diz Lior.
“Acabou um capítulo que durou metade da minha vida.”
A separação
Lior e Adelina foram separados quando ele nasceu, em 1985. Era o terceiro filho de Adelina, que tinha 24 anos. Ela havia até escolhido um nome: Leandro.
Adelina estava separada — ela não gosta de tocar no assunto do pai biológico de Lior. Resolveu, então, voltar a morar com seu pai e seus sete irmãos. A mãe dela havia morrido quando ainda era pequena.
“Quando ela [Adelina] chegou, já estava de barriga. A gente passava dificuldade”, lembra Adenir Corrêa Rufino, a Dêne, que é irmã de Adelina e tinha 14 anos quando ela voltou para casa.
Em uma conversa, o pai de Adelina disse que seria melhor ela entregar Leandro para uma família que tivesse melhores condições de educá-lo.
“Você não tem como criar essa criança, o que você vai fazer?”, conta Adelina, se recordando das palavras do pai.
“Eu não posso cuidar, tua mãe já foi. E se o menino morrer de fome?”
Os dois primeiros filhos de Adelina, uma menina e um menino, também haviam sido entregues para adoção. Ela não queria fazer isso de novo, mas concordou.
“Na maternidade, me disseram que eu não podia… Que eu não ia ficar com a criança”, conta ela.
Adelina se lembra de quando viu Leandro pela única e última vez: “Levaram ele do berço, bem magrinho e sem roupa. Não vi mais ele…”.
Ela conta que não chegou a amamentar. Leandro foi entregue a uma enfermeira que o levaria para sua nova família.
O que Adelina e sua família não sabiam era que quadrilhas atuavam em Santa Catarina aliciando mães jovens e vulneráveis, sem perspectivas de sustentar seus filhos, convencendo-as a entregarem as crianças.
As quadrilhas as vendiam por valores que chegavam a US$ 40 mil, em cifras da época, para adoções no exterior.
Juízes, advogados, médicos, enfermeiros participavam do esquema lucrativo. Os alvos eram sua maioria mulheres do Sul do Brasil, porque era alta a demanda por bebês de pele clara e olhos azuis.
“A gente achava que ele iria para uma família boa e que com certeza estaria aqui em Joinville, perto da gente, ou ainda no Brasil”, conta Dêne.
“Jamais pensamos que ele seria levado para outro país.”
Israel foi o principal destino das mais de 3 mil bebês que foram traficados do Brasil graças a brechas nas leis de adoção nos anos 1980, segundo estimativas da Polícia Federal (PF).
Depoimentos de casais israelenses abordados pela PF apontaram que corria a notícia em seu país de que era mais fácil adotar crianças no Brasil.
A quadrilha chegou ao aeroporto de Tel Aviv levando Leandro quando ele tinha 20 dias de vida. Ali mesmo, eles o entregaram aos pais adotivos, Abraham e Tova Vilk, que o chamaram de Lior.
Acompanhada por dois seguranças, a mulher que havia se apresentado a Abraham como uma ponte para “adoções à brasileira” recebeu US$ 5 mil, em valores da época.
Os pais adotivos contaram mais tarde ao filho que pensavam que o dinheiro seria usado para cobrir as despesas da viagem da criança até Israel e não sabiam de nenhum esquema fora da lei.
Segundo a família adotiva de Lior, quem o levou foi uma mulher que anos depois foi condenada por envolvimento com o esquema ilegal de adoção, ainda que não pelo caso específico do filho de Adelina.
A descoberta
Lior descobriu que foi adotado aos 6 anos, quando ouviu por acaso a mãe de um amigo dizer que ele não era filho biológico de Tova. Dias depois, ele a interpelou: “Você não é a minha mãe!”.
Ele se recorda que Tova o consolou passando os dedos entre seus cabelos: “Meu filho, você tem duas mães. Uma que te gerou e outra que te criou”.
Lior cresceu sabendo de sua história, mas foi só aos 14 anos que teve vontade de saber mais sobre sua família biológica.
Ele conta que os pais adotivos sempre o apoiaram nesta busca: contaram tudo o que sabiam sobre a adoção e entregaram a ele seus documentos brasileiros.
“Eu não falava português, mas, depois de ler que o nome da minha mãe biológica era Izabela Alves dos Santos, não tinha mais como voltar atrás”, diz Lior. “É uma sensação que não te larga mais.”
Decidido a descobrir sua origem, Lior passou a querer conhecer cada vez mais sobre o Brasil.
Na cafeteria onde trabalhava, ele fez um amigo. Foi quando soube pela primeira vez sobre crianças brasileiras que haviam sido traficadas para Israel.
Entre 1984 e 1988, as denúncias de tráfico de bebês brasileiros tomaram conta das capas de jornais no Brasil e no exterior.
O amigo de Lior da cafeteria sabia que era um destes casos.
“Ele tinha sido adotado de forma ilegal. Já tinha ido ao Brasil e sabia como pedir ajuda”, lembra.
“Quando ele viu meus documentos, ele disse: ‘Lior, não tem como localizar, acho que é tudo falso.”
A busca
A peregrinação de Lior começou em 2007. Pela internet, ele fez os primeiros contatos em grupos relacionados a Curitiba, onde pensava ter nascido, porque era a cidade que constava em seus documentos.
Pelo extinto Orkut, a rede social mais popular no Brasil naquele momento, ele conheceu pessoas que se sensibilizaram com sua história.
Por meio de uma delas, ele conheceu a Associação Desaparecidos do Brasil, que era na época um site criado por Amanda Boldeke* para encontrar seu próprio irmão.
Ali, Lior começou uma longa busca, com muitos avanços e decepções.
Amanda foi um elo entre mães e filhos separados pelo tráfico internacional de pessoas.
Compartilhava em seu site as histórias de jovens adotados ilegalmente e uma pesquisa sobre a história do tráfico de crianças e adoções ilegais no Brasil.
Emails e pedidos de ajuda começaram a chegar para Amanda. O primeiro contato dela com Lior foi em 2009.
“Ele era um jovem que não sabia nada do Brasil, ainda não falava português e tudo precisava ser traduzido”, diz Amanda.
“Para compreender sua história, precisei buscar em bibliotecas, nos jornais de 30 anos atrás. Não havia nada na internet.”
Nas páginas amareladas pelo tempo, foi se desenhando diante dos olhos de Amanda uma teia gigantesca de uma rede de tráfico que dominou a exportação ilegal de bebês no Brasil.
Pelo menos quatro quadrilhas de tráfico de bebês foram presas em Santa Catarina na década de 1980.
“Todos os dados do Lior e de outros jovens como ele foram falsificados, tornando nulas todas as pesquisas e buscas pela suposta mãe que constavam nos documentos. Mas ele nunca desistiu”, conta Amanda.
Quatorze anos se passaram.
“Acompanhei cada momento da luta desse menino, as frustrações, o desânimo, as conquistas, a determinação. Lior é um exemplo para todos nós”, diz Amanda.
Uma reportagem em Israel sobre jovens adotados de várias nacionalidades e que estavam morando no país chamou a atenção dos responsáveis pelo MyHeritage, um banco de DNA e plataforma de genealogia online.
Os seus mais de 92 milhões de usuários em 42 idiomas já criaram mais de 35 milhões de árvores genealógicas e podem pesquisar mais de 9 bilhões de registros históricos globais.
O MyHeritage tem um projeto, o DNA Quest, que oferece kits gratuitos de testes genéticos a pessoas adotadas ou que buscam familiares colocados para adoção, o que já levou a muitos reencontros em todo o mundo.
Lior conta que só se sentiu preparado para fazer o teste depois de algum tempo. Ele já tinha feito outros exames do tipo antes, mas a maioria deles acabou sendo um tiro no escuro na busca por sua família biológica.
Duas coincidências mudaram isso. A primeira foi a decisão de Márcia**, uma brasileira que mora na Alemanha, de fazer o teste de DNA depois da provocação de seus familiares.
Até que, em 2018, um email chamou a atenção de Lior. Era do MyHeritage, parabenizando ele por ter encontrado uma prima de segundo grau — era Márcia.
Um novo exame de DNA revelou que o pai de Márcia poderia ser tio-avô de Lior. Com mais alguns testes e contatos, ela e Lior chegaram a uma outra prima, Rosa, que vive em Blumenau.
Uma hipótese que surgiu foi a de que o pai de Lior fosse um dos 13 irmãos de Rosa.
“Todos morreram, menos um. Ele aceitou fazer o exame, não porque me achou parecido com ele, mas porque me achou parecido com a ex-esposa dele, a Adelina”, lembra Lior.
Mas o resultado do exame deu negativo.
A segunda coincidência ocorreu quando Juliana Alves, uma brasileira que mora na Itália, perdeu uma aposta com o marido e, por isso, se cadastrou no banco de DNA.
Em 2022, Lior recebeu um novo e-mail do My Heritage: Juliana também seria uma prima sua de segundo grau.
Lior escreveu para ela. Parte da família de Juliana está na Itália, mas nasceu em Joinville. Ela então passou nomes e contatos dos seus parentes para Lior.
Com uma lista de possíveis parentes em mãos, ele pediu ajuda para amigos e para Amanda, da Associação Desaparecidos do Brasil, para encontrar endereços e nomes.
O reencontro
Os parentes de Juliana em Joinville começaram a ser contatados por pessoas que estavam ajudando Lior na busca.
Foi então que Dêne, a irmã de Adelina, recebeu um telefonema da cunhada e ficou sabendo da história de Lior.
Depois, a filha de Dêne, Emanuelle, de 13 anos, encontrou Lior nas redes sociais e mandou uma mensagem.
“Pesquisei o nome dele na internet e encontrei seu Instagram”, conta Emanuelle.
Foi o primeiro contato de Lior com sua família materna. Logo depois, ele conheceu sua tia.
“Lior foi contando a história dele, e tudo foi se encaixando. Não tinha nenhuma dúvida de que ele era meu sobrinho”, lembra Dêne.
Nos meses seguintes, Lior, em Israel, foi se aproximando dos seus familiares no Brasil. Em uma conversa com Dêne, ele teve certeza que seus documentos eram falsos.
Ele disse sua data de nascimento para Dêne, que se lembrava que Adelina foi para o hospital dia 31 de agosto de 1985 e deu à luz em 1º de setembro de 1985.
“Foi aí que descobri que minha data de nascimento era o único detalhe verdadeiro na minha história”, diz Lior.
“A foto não é minha, não sou de Curitiba, o nome da minha mãe não é Izabela Alves dos Santos, mas eu nasci em 1º de setembro de 1985.”
Lior descobriu que seus documentos haviam sido fabricados no Rio de Janeiro.
“Meu passaporte tem carimbo de saída do Brasil a partir do Rio em 17 de setembro de 1985 às 23h45.”
Depois de entregar Lior para adoção, Adelina ficou ainda por algum tempo na casa do seu pai, até conhecer o último marido, com quem foi casada por 32 anos.
Nesse tempo, ela se afastou da família. Só voltou a ter contato com os irmãos depois de ficar viúva. Ela não conseguia mais viver sozinha por causa da epilepsia.
“Certa vez, ela caiu, se machucou, e a gente teve que levar para o hospital”, diz Dêne.
“Então, fizemos uma reunião entre os irmãos e decidimos colocar ela em uma casa de repouso, onde ela tomaria o remédio certinho, porque em casa ela não tomava e, às vezes, dava convulsão.”
Dêne conta que teve cuidado de não revelar nada sobre Lior para Adelina antes de ter certeza de que era mesmo o filho de sua irmã.
“Trouxemos ela aqui para casa para coletar saliva e fazer o teste de DNA. Não queria criar uma esperança, sem ter certezas”, lembra Dêne.
“Após o resultado positivo, toda família ficou empolgada com a história e quis conhecer o Lior.”
Em busca de uma nova vida no Brasil
No banco da praça em Joinville, Adelina sorria ao conversar com Lior naquele sábado de julho. Há muito tempo ela já não tinha mais esperanças de reencontrá-lo.
“Gostei muito de falar com ele. Ele fala alegre com a gente. Amém, Jesus, glória! Agora, está tudo bem.”
Para Lior, após a longa jornada para rever a mãe biológica, começava ali uma nova etapa. Pouco depois, ele descobriu por meio de exames de DNA, quem era seu pai biológico — já falecido — e mantém contato com a família paterna, na cidade de Blumenau.
Decidiu também que queria morar no Brasil e ter um negócio próprio, um plano que alimentara nos anos de espera, quando aprendeu português e juntou economias.
Para seguir com a ideia, teve de enfrentar um último obstáculo: regularizar seus documentos. Precisava que um cartório reconhecesse sua certidão de nascimento, que não constava nos registros brasileiros, já que todos os papéis eram falsos.
“Entrei então com um processo administrativo por meio de uma advogada que tem cuidado destas ações”, disse. “Só assim que conseguimos que o cartório aceitasse e desse continuidade ao processo.”
Lior Vilk conta que seu desejo na nova vida é morar perto dos parentes, especialmente de Adelina, já que ela não conviveu com os filhos.
“Quero poder acompanhar mais de perto a vida dela.”
*Amanda Boldeke é mãe da jornalista Mônica Foltran, autora desta reportagem.
**O nome foi trocado para preservar sua identidade.
Fonte: BBC
Você precisa fazer login para comentar.