Israel está em guerra com o Hamas depois dos ataques de integrantes do grupo islâmico em território israelense em 7 de outubro, que deixaram mais de 1.300 mortos.
Forças israelenses têm bombardeado incessantemente a Faixa de Gaza, território controlado pelo Hamas, onde vivem mais de 2 milhões de pessoas, causando a morte de mais de 1.900 até sexta-feira (13/10).
O alcance da resposta militar de Israel desencadeou uma onda de manifestações em defesa dos palestinos, especialmente no Oriente Médio.
Mas as principais facções políticas que representam este povo estão em conflito há décadas, o que tem dificultado alcançar seus objetivos centrais, como a obtenção de um Estado próprio.
A rivalidade entre as principais facções políticas palestinas atingiu um ponto de ruptura em junho de 2007, quando o Hamas e a Fatah – principal rival político interno do grupo – lutaram nas ruas da Faixa de Gaza, deixando dezenas de mortos e centenas de feridos.
O conflito armado, também conhecido como “a batalha de Gaza”, cavou um fosso tão profundo entre os dois rivais que os vestígios desses confrontos persistem até hoje.
Até então, os palestinos eram governados pela Autoridade Nacional Palestina (ANP), criada nos anos 1990 para ser um órgão de governo temporário de todos os territórios palestinos.
A ANP é formada por um ramo executivo – presidente e primeiro-ministro – e um conselho legislativo.
O conflito entre Hamas e Fatah aconteceu após a última eleição para o Conselho Nacional Palestino, em 2006.
Eles eram os dois principais grupos que disputavam as cadeiras legislativas na época.
As eleições eram acompanhadas por diversos observadores internacionais e foram consideradas limpas e democráticas pelo The Carter Center (instituto do ex-presidente americano Jimmy Carter) e pela delegação da União Europeia (UE).
Em janeiro de 2006, o Hamas venceu a maioria das cadeiras para o Conselho Nacional Palestino, o que daria ao grupo o controle na formação do gabinete de governo e de ministérios.
A vitória do Hamas – que é considerado um grupo terrorista por países como os EUA e o Reino Unido – não foi aceita por Israel e pela UE, que financia em parte a ANP, e houve ameaça de suspensão do envio de fundos.
Houve sanções econômicas contra a Palestina e Israel anunciou que proibiria os membros eleitos do Hamas de viajar entre a Cisjordânia e a Faixa de Gaza, além de fazer uma série de incursões militares em Gaza.
Tudo isso acirrou a rivalidade entre o Hamas e o Fatah, que dissolveu o Conselho Nacional Palestino ficando com o controle da ANP na Cisjordânia – onde tinha sua maior base de apoio.
O Hamas, que acusou o Fatah de tentar dar um golpe, expulsou violentamente o grupo rival de Gaza e formou um governo próprio na região, independente da ANP e não reconhecido pela grande maioria dos países.
A situação gerou uma guerra civil que durou quase um ano e terminou com a ANP, dominada pelo Fatah, mantendo controle da Cisjordânia e o Hamas com o controle da Faixa de Gaza.
Israel então estabeleceu um bloqueio à Faixa de Gaza, restringindo a entrada e saída de pessoas e produtos.
Embora controle somente a Cisjordânia, a ANP é hoje a autoridade palestina reconhecida internacionalmente como legítima. O governo do Hamas não é reconhecido pela maioria dos países, com exceção de alguns países com governos islâmicos, como o Irã.
“A rivalidade entre os dois grupos tem sido especialmente amarga desde a breve guerra de 2007, que derramou muito sangue”, diz Nathan Brown, professor de Ciências Políticas e Relações Internacionais na Universidade George Washington, nos EUA.
Desde então, os governos dos territórios seguiram caminhos opostos.
No entanto, a rivalidade entre Fatah e Hamas existia desde muito antes.
A origem
O Hamas é o maior entre os vários grupos islâmicos palestinos e seu nome é um acrônimo árabe para Movimento de Resistência Islâmica.
Sua origem remonta à Primeira Intifada, o levante palestino de 1987 contra a ocupação israelense.
O grupo surgiu como um braço palestino da Irmandade Muçulmana do Egito.
Suas milícias, chamadas brigadas Al Qassam, foram fundadas em 1991 e são lideradas pelo comandante Mohammed Deif.
O Hamas é considerado um grupo terrorista por Israel e por potências como os EUA, o Reino Unido, países da União Europeia, o Japão e a Austrália. Em alguns casos, somente o braço armado do grupo é considerado terrorista.
O Fatah, por sua vez, é um partido secular e o maior grupo dentro da OLP (Organização para a Libertação da Palestina), principal representante dos palestinos antes da criação da ANP.
A OLP é uma organização política e militar laica, formada em 1964 por diversos grupos políticos, incluindo o Fatah, para representar o povo palestino – que desde a criação de Israel, em 1948, não tinha conseguido participar ativamente das discussões sobre o seu destino, explica Magno Paganelli.
A OLP foi criada com o apoio da Liga Árabe, explica Paganelli, organização internacional que representa os países árabes.
O nome Fatah é um acrônimo inverso da tradução árabe de Movimento de Libertação Nacional Palestino.
O partido foi formado em 1959 — pouco mais de uma década depois da guerra árabe-israelense de 1948 — por ativistas da diáspora palestina, entre eles o ex-presidente Yasser Arafat.
Embora originalmente o Fatah tenha optado por combater o governo israelense usando a via armada, o partido começou a buscar vias diplomáticas na década de 1980, o que finalmente levou aos Acordos de Oslo – que propunham uma solução para o conflito com o estabelecimento de dois Estados.
Diferenças fundamentais
A posição em relação à solução de dois Estados é uma das principais diferenças entre os dois grupos.
O Fatah reconhece a existência do Estado de Israel e pede que Israel cumpra a resolução 242 do Conselho de Segurança das Nações Unidas, que estabeleceu a retirada das tropas israelenses dos territórios ocupados em 1967 durante a Guerra dos Seis Dias.
Nessa guerra, Israel ocupou a península do Sinai, a Cisjordânia e Jerusalém Oriental, a Faixa de Gaza e a maior parte das Colinas de Golã, triplicando o tamanho do território sob seu controle.
O Hamas, por sua vez, não reconhece o Estado de Israel.
O documento de fundação do grupo militante islâmico, de 1988, defende a tomada do controle dos territórios palestinos, incluindo o atual Estado de Israel.
No entanto, um segundo documento, de 2017, aceita as fronteiras que existiam antes da guerra de 1967 como base para um Estado Palestino, com Jerusalém capital.
O documento diz que a luta do Hamas não é contra os judeus, mas contra os “agressores sionistas ocupantes”.
Tanto o Hamas quanto o Fatah buscam construir um único Estado palestino, mas as visões sobre esse destino são muito distintas.
O Fatah tem o controle político da Autoridade Palestina (AP) cujo líder, Mahmoud Abbas, é reconhecido internacionalmente como o presidente palestino.
Enquanto o Fatah se define como um partido político secular aberto a negociar com os israelenses e participar nos fóruns internacionais, o Hamas continua usando a via armada para lutar contra a ocupação israelense dos territórios palestinos para criar um Estado islâmico.
Os grupos “têm visões de mundo diferentes, ideologias e eleitorados distintos”, diz Yousef Munayyer, chefe do curso Palestina/Israel do Centro Árabe de Washington D.C., nos EUA.
“Os dois se opuseram à ocupação israelense nos territórios palestinos, mas ambos creem em formas distintas de alcançar seus objetivos.”
Munayyer diz que as “diferenças fundamentais” entre os grupos são “irreconciliáveis”.
Os grupos são tão antagônicos que alguns apoiadores do Hamas dizem que o Fatah se transformou em uma espécie de “segurança terceirizado de Israel”.
Do outro lado, muitos veem o Hamas como um grupo terrorista que bloqueou todos os caminhos que poderiam levar a um acordo com Israel.
Para alguns analistas, a origem da rivalidade entre Hamas e Fatah remonta aos Acordos de Oslo de 1993.
Os Acordos de Oslo
Os Acordos de Oslo foram uma iniciativa para tentar alcançar a paz entre Israel e Palestina, explica Paganelli.
Mediados pelo então presidente dos EUA, Bill Clinton, os acordos foram assinados pelo então primeiro-ministro de Israel, Yitzhak Rabin, e por Yasser Arafat, presidente da OLP e líder do Fatah.
A ANP foi criada como consequência dos acordos de Oslo, diz Paganelli, para ser um governo provisório dos territórios ocupados.
O acordo permitiu o regresso do líder da OLP, Arafat, e de outros palestinos que viviam no exílio. Muitos consideraram estes acordos como um ponto de partida para alcançar um acordo de paz permanente e saudaram a iniciativa.
No entanto, houve quem se opusesse. Entre eles, estava o Hamas.
O grupo considerava que os “acordos venderam os interesses nacionais palestinos para favorecer interesses pessoais”, afirma Munayyer, aguçando a rivalidade entre o Hamas e a Fatah.
“Esse acordo marcou um dos pontos sem volta na relação”, afirma o especialista.
Rabin e Arafat foram premiados em 1994 com o Nobel da Paz pelos esforços.
Mas os prazos de retirada das forças de Israel não foram cumpridos, explica Paganelli, e as tentativas de pacificação foram perdendo tração.
Em 1994, um homem-bomba do Hamas lançou um ataque suicida em Jerusalém matando 13 civis israelenses. Em 1995, Rabin foi assassinado por um israelense de extrema-direita.
As eleições subsequentes de Israel foram dando vitórias à direita israelense, e o país reforçou ocupações e patrocina assentamentos judaicos na Cisjordânia.
A ANP diz que continua comprometida com o diálogo com Israel, mas condena políticas específicas do país, como as mortes de civis causadas pelos bombardeios nesta semana.
Yasser Arafat foi presidente da ANP até morrer, aos 75 anos, em 2004. Hoje, quem preside a autoridade palestina é Mahmoud Abbas.
Representatividade
Alguns observadores avaliam que Israel se beneficiou da divisão política que existe entre o Hamas e o Fatah, e que até a encoraja para “enfraquecer o inimigo”.
Ambas as facções enfrentam uma crise de legitimidade que as afeta profundamente, diz Brian Katulis, pesquisador sênior e vice-presidente de políticas do Middle East Institute (instituto do oriente médio, em inglês), nos EUA.
A rivalidade entre Hamas e Fatah afeta a causa palestiniana, diz Katulis, porque é “um conflito de liderança entre elites”.
“Ambos perderam muito do apoio popular que tinham porque nenhuma das facções conseguiu uma solução a longo prazo”, diz Katulis.
“A divisão é profundamente impopular entre os palestinos, embora eles discordem sobre quem é o culpado”, explica Nathan Brown. Às vezes, quando os grupos chegam perto de se entender, “eles encobrem as diferenças em vez de encontrar uma maneira de resolvê-las ou gerenciá-las”, acrescenta Brown.
O cenário é complexo porque persiste a questão sobre quem realmente representa os palestinos. Desde a fundação do Estado de Israel em 1948, já se passaram 75 anos.
Uma grande parte dos palestinos está frustrada ao ver que nenhum dos grupos foi capaz de alcançar os objetivos, nem por meios diplomáticos, nem pela guerra armada.
Somada ao bloqueio que os palestinos sofrem em Gaza e às políticas expansionistas de Israel, essa imobilidade contribui para um aumento do apoio à resistência armada, pelo menos em Gaza, dizem analistas.
Também permanece a dúvida sobre quem substituirá a liderança máxima da Autoridade Palestina na Cisjordânia quando Mahmoud Abbas, 87 anos, deixar o cargo que ocupa há quase 20 anos.
Também não se sabe o que acontecerá aos líderes do Hamas quando terminar o atual conflito com Israel, nem como os jovens palestinianos, tanto na Cisjordânia como na Faixa de Gaza, vão se posicionar à luz do novo cenário.
*com reportagens de Cecilia Barria, da BBC News Mundo e de Letícia Mori, da BBC News Brasil em São Paulo
Fonte: BBC
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