- Author, Giulia Granchi
- Role, Da BBC News Brasil em Londres
- Twitter, @GranchiGiulia
A primeira tentativa de Weruska Goeking para “domar os cachos” aconteceu quando ela tinha 11 anos. O procedimento escolhido foi o relaxamento capilar, uma técnica também química, mas considerada menos potente que a famosa progressiva.
A ideia, apoiada por sua mãe, que também tinha cabelos encaracolados, era diminuir o volume para que fosse mais fácil pentear e cuidar dos fios — e para Weruska, se parecer mais com as moças que eram consideradas o “padrão de beleza” da época.
“Como a maioria das cacheadas que cresceram nas décadas de 80 e 90, eu não tive referências de modelos, atrizes… Figuras que usassem seus cabelos naturais com orgulho. Meu desejo de ter os fios lisos começou bem cedo”, lembra ela, que hoje tem 40 anos e trabalha como gerente de marketing e conteúdo em São Paulo.
Foram 25 anos de sua vida passando por alisamentos – a progressiva, que deixa os fios realmente lisos e dura entre quatro a seis meses, a depender dos fios, veio logo depois do relaxamento capilar. Escovas, sessões de chapinha e produtos diversos também fizeram parte da longa rotina pelo liso perfeito.
A opção de alisar os cabelos foi colocada à prova na medida em que Weruska era exposta a conteúdos de mais e mais mulheres assumindo seus cabelos naturais na internet. Em paralelo a isso, crescia a vontade de ser mãe.
“Eu já vinha flertando com a ideia de ver meu cabelo natural de novo, buscando referências, pesquisando sobre transição capilar… Quando engravidei, veio o reforço que eu precisava para abraçar minha identidade.”
Quando recebeu a confirmação de que seria mãe, Weruska conta que começou a refletir como ensinaria a criança a amar seu corpo, sua identidade e seu cabelo — especialmente se fosse uma menina, o que se confirmou algumas semanas mais tarde.
“Não fazia sentido eu não aceitar uma parte de mim mesma, como meu cabelo, e tentar ensiná-la a se amar. A Manuela desempenhou um papel fundamental nessa decisão.”
Assim como para muitas mulheres que passam pela transição capilar, a fase foi desafiadora para Weruska. “Eu não estava preparada para cuidar do cabelo natural, e estar com ele metade cacheado e metade liso era complicado. Cortei, tirando toda a química, após um ano e alguns meses de transição.”
A força da identidade
Na avaliação da psicóloga Danielle Braga, o ato de assumir os cachos tem relação direta com mostrar a essência, personalidade e ancestralidade.
“Acho que está tudo bem querer mudar, mas quando optamos por alisar o cabelo por uma pressão externa, estamos, de certa forma, representando um papel social para sermos aceitos e nos encaixarmos minimamente em um contexto social. Assumir nossos cabelos é uma quebra em relação a essa violência.”
O impacto da rejeição do cabelo natural — por si próprias ou por outras pessoas— pode ter um impacto negativo grande na vida de meninas, diz Braga.
“Como será que a mente dessa menina vai se comportar em outras relações no futuro se foi uma figura de cuidado dizendo que ela não pode ou não deve deixar o cabelo como ele é naturalmente? Provavelmente ela constantemente pensará que não é suficiente”
Quanto às mães e cuidadoras que permitiam ou incentivavam o alisamento dos cabelos das meninas, a psicóloga avalia que a decisão era tomada por um conjunto de motivos — e que não seria justo colocá-las como vilãs mal-intencionadas.
“Muitas dessas mães são negras, e pode ser que tenham enfrentado preconceito devido ao cabelo e estivessem tentando proteger suas filhas. Essas decisões também podem estar relacionadas ao contexto da época”, diz Braga.
“A transição é uma ruptura, permitindo deixar para trás um passado de dor, negligência e silenciamento, e assumir sua verdadeira identidade em um mundo que ainda não a enxerga com olhos gentis, que às vezes a exotizam, é um processo complexo e desafiador, mas é fundamental para a nossa evolução.”
Já o movimento que mães como Weruska fazem — de romper com um ciclo de anos na mudança da aparência — tem, na visão de Braga, um impacto na autoestima e no amor-próprio.
“Quando as mães podem transmitir essa mensagem, o processo de aceitação se torna mais positivo. As meninas também são preparadas para enfrentar a escola e os comentários de forma diferente.”
“Ao invés de dizer ‘vamos alisar o cabelo para não passar por isso’, as mães podem dizer ‘vou conversar com a diretoria, isso não vai ficar assim’. Essa sensação de proteção, de ter alguém que olha por você, te protege e te cuida, é valiosa. Essa geração não vai aceitar menos do que merece. “
‘Educar pelo exemplo’
Diferentemente de Weruska, a carioca Amanda Vilela, de 40 anos, ainda alisava o cabelo quando sua filha, Laura, nasceu.
“Quando ela tinha cinco anos, estava tentando deixar os fios naturais, mas eu não gostava do que via no espelho. Cedi à voltar para o alisamento sem pensar no impacto que isso teria nela”, conta.
Não demorou muito para que Laura começasse a pedir para ter os fios lisos como o da mãe — ela dizia querer “poder jogar os cabelos de lado”.
Amanda teve um flashback. “Era exatamente o que eu falava quando era mais nova — meu sonho era ter um cabelo bem lisinho para poder jogar. Foi aí que eu comecei a me preocupar com isso e tentei convencê-la de que seu cabelo era lindo do jeito que era, mas não funcionou como eu esperava.”
“Eu percebi que não podia dizer que seu cabelo era lindo enquanto alisava o meu. Precisava educar pelo exemplo, então, comecei a trabalhar nisso dentro de mim. Foi um processo longo.”
“Agora, ela balança seu cabelo e não se preocupa mais com o volume, porque ela sabe que é linda do jeito que é. Isso me deixa muito feliz.”
“Esse exemplo que eu pude dar não era tão comum no passado. Minha mãe também tinha cabelo cacheado, mas alisava com progressiva porque acreditava que era melhor e a fazia sentir-se mais bonita e arrumada. Havia um estigma de que cabelo cacheado não ficava arrumado, o que não é verdade.:
A tentação da busca pelo ‘perfeito’
Amanda acredito que essa mudança — da qual ela e outras mães fazem parte — pode ajudar as futuras gerações a aceitarem seus cabelos naturais desde cedo.
“Sem sentir a pressão de alisá-los para se encaixar em padrões de beleza tradicionais. Isso é maravilhoso, todos devem se sentir bem consigo mesmos do jeito que são.”
Ela diz não aceitar comentários externos sobre os fios de Laura. “Se sugerem que ela prenda ou passe um creme, por exemplo, eu digo que ela pode usar como quiser — e que não existe cabelo cacheado sem frizz.”
Weruska concorda — e acrescenta que é perigoso reforçar padrões de perfeição também para as cacheadas.
“É importante não trocar uma prisão estética por outra. Aceitar e amar nosso cabelo natural envolve também aceitar a diversidade dos outros. Cuido do cabelo da minha filha com atenção e carinho, mas evito reforçar padrões de perfeição.”
“Não a elogio apenas quando o cabelo está recém lavado ou preso. É importante que ela saiba que seu cabelo é lindo em qualquer estado, e que não existe um cacho ‘perfeito'”.
Fonte: BBC
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