- Author, Leandro Prazeres
- Role, Da BBC News Brasil em Brasília
Há menos de uma semana, indígenas de todo o Brasil se aglomeravam em frente ao Supremo Tribunal Federal (STF) entre abraços e lágrimas para comemorar a maioria formada na Corte para rejeitar a tese do marco temporal para demarcação de terras indígenas.
Naquele dia, o julgamento era considerado, por eles, uma vitória histórica.
Seis dias depois, nesta quarta-feira (27/09), um movimento capitaneado por parlamentares da bancada ruralista no Senado liderou a aprovação por 43 votos a favor e 21 contra de um projeto de lei que estabelece o marco temporal e uma série de outras medidas.
Para os ruralistas, foi uma vitória do Congresso Nacional sobre o que classificam como “ativismo judicial”. Para parlamentares governistas, ambientalistas e lideranças indígenas, a aprovação do projeto foi um “retrocesso a 1500” (ano de chegada dos portugueses ao Brasil).
Para entrar em vigor, o projeto de lei ainda precisa passar pela sanção presidencial. Nos bastidores, a expectativa é de que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) vete total ou parcialmente a matéria aprovada, o que deve gerar ainda mais atritos com parte do chamado Centrão, bloco do qual o petista depende para manter a governabilidade no Congresso.
Como o marco temporal já foi alvo de um julgamento no STF, lideranças indígenas prometem recorrer ao Judiciário para que declare inconstitucional a lei aprovada nesta quarta-feira.
Rápida mobilização no Senado
Na última quinta-feira (21/09), o STF havia formado maioria contra a tese do marco temporal. O julgamento foi concluído nesta quarta-feira (27) e o placar terminou com nove votos contra e dois a favor do marco.
A reação à votação no STF não demorou a acontecer. Ainda na semana passada, os parlamentares aceleraram os trâmites de um projeto de lei que estabelecia o marco temporal.
A ação contou com o apoio maciço de congressistas da poderosa Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) — formada, em grande parte, por deputados e senadores do Centrão, bloco informal de partidos de centro-direita do qual sucessivos governos vêm dependendo nos últimos anos para garantir a aprovação de medidas de seu interesse.
A posição oficial da FPA sempre foi a favor do marco temporal, com o argumento de que a ausência dele colocaria em risco produtores rurais de todo o Brasil, especialmente aqueles localizados em áreas da nova fronteira agrícola, na Amazônia e no Centro-Oeste.
Nesta quarta-feira, a operação para a aprovação do marco temporal no Senado levou pouco mais de 10 horas para se concretizar. No início da manhã, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) abriu uma sessão para votar o relatório do senador Marcos Rogério (PL-RO), relator da matéria e integrante da chamada bancada ruralista.
No início da tarde, o relatório foi aprovado por 16 votos a favor e 10 contra.
À tarde, o Plenário do Senado aprovou um pedido de urgência para que o projeto fosse votado. Parlamentares governistas como o líder do governo no Senado, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), criticaram o projeto.
“Isso é um retrocesso a 1500. Isso é um retrocesso à chegada dos europeus e aos primeiros contatos [com povos indígenas]”, disse o senador.
Apesar dos apelos da ala governista, às 18h56, o presidente da Casa, senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), declarou a aprovação da matéria.
O que é o marco temporal?
O chamado “marco temporal” é uma tese que vinha sendo debatida no Congresso e no STF segundo a qual a demarcação de terras indígenas só poderia ocorrer em comunidades já ocupadas por indígenas quando a Constituição foi promulgada, em 5 de outubro de 1988.
O julgamento do STF foi sobre um caso envolvendo uma parte da Terra Indígena Ibirama La-Klãnõ, em Santa Catarina, habitada pelos povos xokleng, kaingang e guarani.
A disputa envolvia, de um lado, a Fundação Nacional do Índio (Funai); e de outro, órgãos do governo estadual de Santa Catarina, que reivindicavam áreas que a Funai havia declarado como tradicional ocupação indígena.
Ambientalistas e lideranças indígenas rejeitavam o marco temporal sob o argumento de que muitas comunidades foram expulsas de seus territórios originais antes de 1988. Era esse o argumento usado pelos xokleng no julgamento no STF.
Eles dizem terem sido forçados a deixar as áreas tradicionalmente ocupadas para fugir de perseguições e matanças ao longo de décadas.
Ruralistas, por outro lado, alegam que o não estabelecimento de um marco temporal poderia causar insegurança jurídica, pois abriria o precedente para que áreas ocupadas por não-indígenas possam ser reivindicadas como terras indígenas mesmo que elas não estivessem sendo habitadas por povos tradicionais antes da promulgação da Constituição Federal.
Legislativo versus Judiciário
A votação do projeto sobre o marco temporal mesmo após o julgamento do caso foi vista como uma “reação” do Legislativo ao Supremo pelo cientista político Marco Antônio Teixeira, professor de Ciência Política da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
“Essa votação foi uma resposta do Legislativo […] Se houver mais situações em que decisões do Supremo sejam imediatamente contestadas pelo Parlamento, a relação entre esses dois poderes tende a ficar tensa”, afirmou o professor.
Para Teixeira, o movimento protagonizado pelo Senado nesta quarta-feira é resultado não de algum tipo de interferência do Judiciário no Legislativo, o chamado “ativismo judicial”, mas pela suposta demora do Legislativo em decidir temas relevantes.
“O poder de legislar é do Legislativo, mas quando ele demora muito a tomar decisões sobre questões urgentes como era o marco temporal, o Supremo acaba tendo que decidir quando é consultado sobre o assunto”, disse o professor.
O senador Marcos Rogério (PL-RO), negou, no entanto, que a votação tenha sido uma reação ao STF.
“São os precedentes do próprio STF que asseguram que o Legislativo tenha a atribuição de legislar inclusive sobre matérias que foram alvo de julgamento do STF. Pensar diferente seria aniquilar o papel do Legislativo. Não é uma afronta ao Supremo”, disse o senador à BBC News Brasil.
Preocupações
Desde a semana passada, lideranças indígenas já vinham demonstrando preocupação com a possibilidade de uma “reação” por parte dos ruralistas após a formação de maioria contra o marco temporal no STF.
“A rejeição do marco temporal pelo Supremo é uma grande vitória […] Mas a bancada ruralista está com uma cobiça nas terras indígenas e quer a todo custo aprovar [no Congresso] uma tese de marco temporal”, disse à BBC News Brasil na semana passada o coordenador-executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Kleber Karipuna.
Indígenas e ambientalistas afirmam que a lei aprovada nesta quarta-feira contém dispositivos ainda mais perigosos para os povos indígenas que o simples marco temporal.
A lei prevê, por exemplo, que terras indígenas já demarcadas podem ser retomadas caso seja verificada a mudança de traços culturais das comunidades que vivem nelas, possibilidade que não existia até então.
“Isso é um risco muito grande para os povos indígenas porque basta que alguém diga que nós mudamos nosso modo de viver para que questionem a legitimidade das nossas terras”, disse outro coordenador-executivo da Apib, Dinaman Tuxá.
Outro ponto controverso é a autorização para que não-indígenas possam exercer atividades agrícolas em terras já demarcadas.
Essa é uma reivindicação de produtores rurais de estados como Mato Grosso e de uma parcela considerada pequena de indígenas em regiões dominadas pelo agronegócio como os da etnia Haliti-Paresi que vinham arrendando suas terras de forma irregular para produtores de soja.
Outro dispositivo previsto no projeto aprovado é o que, segundo críticos, flexibilizaria a política de não-contato com indígenas isolados que vigora no país há décadas.
O projeto estabelece que o contato com esses indivíduos poderia ser feito para “intermediar ação do estado de utilidade pública”, um conceito considerado muito vago por ambientalistas e que poderia abrir brechas para o contato forçado com os isolados.
“Esse projeto de lei é um risco para os povos indígenas porque ele está repleto de inconstitucionalidades. Ele traz insegurança jurídica pois coloca em risco até mesmo aquelas terras que já foram demarcadas e homologadas. Há violações claras de preceitos constitucionais”, afirmou à BBC News Brasil o analista sênior de políticas públicas da organização não-governamental WWF Brasil, Bruno Taitson.
O senador Marcos Rogério rebate as críticas.
“Muito se fala em cuidar do índio, em dar terra para o índio. Mas pouco se fala em assistência ao índio. Índios aldeados e não aldeados vivem, muitos deles, em condição de miserabilidade”, disse o parlamentar.
Estratégias contra projeto aprovado
Agora, ambientalistas e movimentos indígenas se reorganizam para tentar impedir que o projeto aprovado passe a ter validade.
A primeira estratégia reside em criar pressão sobre o presidente Lula para que ele vete o projeto.
No governo, a aprovação do projeto foi criticada.
“Embora a ministra dos Povos Indígenas (Sônia Guajajara) e representantes do MPI tenham sido recebidos por líderes, relatores e até pelo presidente (do Senado) Rodrigo Pacheco para apresentar pontos críticos e sensíveis aos direitos indígenas, nada foi acatado pelo Senado”, diz o trecho de uma nota do Ministério dos Povos Indígenas.
O MPI afirmou ainda que “lamenta” a aprovação e classificou o projeto de lei como “inconstitucional”.
O problema, para aqueles que são contrários ao projeto, é que o Congresso poderia derrubar os vetos e a lei passaria a vigorar. Além disso, eles temem que Lula tenha que negociar com o Congresso quais pontos seriam vetados.
“Isso seria particularmente preocupante porque a maior parte do projeto contém retrocessos muito grandes aos indígenas. O pouco que não for vetado por meio de uma possível negociação ainda será prejudicial”, avalia Bruno Taitson, do WWF Brasil.
A segunda estratégia dos contrários ao projeto é levar o assunto, novamente, para o STF.
Um dos argumentos mencionados é o de que apenas uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) teria o peso suficiente para reverter o entendimento de um julgamento do Supremo. Como o que foi aprovado foi um projeto de lei, ele não teria poder suficiente para se sobrepor a uma decisão do STF, responsável por interpretar o texto constitucional.
“É uma situação delicada, mas não vamos desistir. Já estamos estudando a possibilidade de questionar a constitucionalidade dessa lei. Vai ser mais uma batalha, mas não vamos desistir”, afirma Dinaman Tuxá.
Fonte: BBC
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