O julgamento sobre a descriminalização do aborto iniciado nesta sexta pelo STF (Supremo Tribunal Federal) pode gerar uma mudança na forma como o tema é tratado pela Justiça brasileira.
Em jogo está uma ação apresentada em 2017 pelo Instituto Anis e pelo PSOL que propõe que mulheres que fizerem aborto em gestações de até 12 semanas não devem enfrentar processos criminais.
A ministra Rosa Weber, primeira a votar, lembrou da história da luta de mulheres por igualdade de direitos e afirmou que as mulheres não tiveram qualquer voz na elaboração do código penal de 1940.
“À época (…) nós mulheres não tivemos como expressar nossa voz na arena democrática. Fomos silenciadas!”, escreveu a ministra. “Transcorridas mais de oito décadas, impõe-se a colocação desse quadro discriminatório na arena democrática para uma deliberação entre iguais, com consideração e respeito. Agora a mulher como sujeito e titular de direito.”
O Brasil está ao lado dos países com legislações mais rígidas sobre o aborto. Mas ao longo do último século, as mulheres conquistaram algumas mudanças: o direito ao aborto em caso de risco à vida, depois em caso de estupro e mais recentemente em caso de anencefalia.
O código penal em vigor no Brasil hoje foi criado em 1940. Após a promulgação da Constituição Federal de 1988, o Supremo foi chamado diversas vezes a analisar se pontos do Código Penal eram compatíveis com a nova Constituição – algo que faz novamente ao analisar a questão do aborto.
De acordo com Rosa Weber, a Constituição de 1988 garantiu às mulheres “a condição de cidadania plena, com igualdade de condições e respeito”, mas o direito das mulheres para tomar decisões sobre seu próprio corpo e sua vida ainda é algo que precisa ser efetivado.
Entenda o histórico da legislação penal sobre o procedimento no Brasil.
‘Defesa da honra’ – só que do homem
Até 1940, mesmo o aborto em caso de estupro era crime no Brasil. Até então, só não se punia o chamado aborto necessário, para salvar a vida da mulher.
“Mas o aborto para salvar a gestante nem precisava estar entre as exceções, porque, pelo próprio Código Penal, ninguém responde por um crime que comete para proteger um valor maior, agindo contra um valor menor”, diz Mariângela Magalhães Gomes, professora de Direito Penal da Universidade de São Paulo (USP). “O aborto em caso de estupro é na verdade a única exceção específica prevista em lei.”
O Código Penal estabelece penas que variam entre 1 a 3 anos, para a mulher que provoca um aborto em si mesma ou permite que outra pessoa realize o procedimento, e 6 a 20 anos, para quem realizar um aborto em uma gestante que vier a morrer.
A lei prevê duas exceções, se realizadas por um médico: o aborto necessário ou em caso de estupro, com o consentimento da gestante ou, se ela for considerada incapaz, de seu representante legal.
Maria Cristina Carmignani, professora de História do Direito da USP, diz que, embora esta legislação, assim como outras no Brasil, tenha se inpirado em leis de outros países, a inclusão da exceção do aborto em caso de estupro no Código Penal está relacionada ao contexto da época.
O aborto é visto hoje por quem o defende como um direito da mulher, que teria assim o controle sobre o próprio corpo e poderia escolher seguir ou não com uma gravidez.
Mas essa visão é recente, fruto de décadas de lutas feministas pelo reconhecimento da igualdade jurídica entre homens e mulheres, que só foi oficialmente estabelecida no Brasil a partir da Constituição Federal de 1988.
A descriminalização do aborto em caso de estupro em 1940, em uma sociedade que era ainda mais conservadora e patriarcal, teria menos a ver não com a concessão de um direito e mais com uma forma de proteção da honra, diz Carmignani.
“Mas não era exatamente a honra da mulher, que era vista como a filha, irmã ou mulher de um homem. Era para proteger a honra destes homens. Se uma mulher fosse deflorada, isso manchava a honra da família toda.”
A história da legislação sobre o aborto no Brasil aponta na mesma direção.
A evolução da lei no Brasil
O Código Penal de 1940 foi o terceiro criado no Brasil após a independência, em 1822, e é o que está em vigor há mais tempo.
Uma compilação de legislações portuguesas de 1603, as Ordenações Filipinas, regeram as questões civis, morais, criminais, entre outras, até pouco depois da independência.
Elas não tinham nenhum artigo sobre o aborto. Mas a antropóloga Lia Zanotta Machado, professora da Universidade de Brasília (UnB), diz que a prática poderia ser considerada um homicídio. No entanto, para isso, o feto deveria já ter uma “alma”.
“Na época, a Igreja Católica entendia que isso só acontecia depois do terceiro mês de gravidez. Foi somente em 1869 que a Igreja disse que isso ocorre na concepção. Por isso, só os casos de gravidez avançada chegavam à Justiça, e eram muito poucos”, diz Machado.
Ao mesmo tempo, as Ordenações Filipinas determinavam que os quadrilheiros, uma espécie de polícia moral da época, deveriam alertar à Justiça se uma mulher deixasse de estar grávida sem um parto devidamente relatado. Isso poderia ser um sinal de um aborto.
Mas, segundo a historiadora Mary Del Priore, a preocupação não era exatamente com a interrupção da gravidez em si.
“Mais do que atacar o homicídio terrível que privava uma alma inocente do batismo e, portanto, da salvação eterna, caçavam-se os desdobramentos condenáveis nas ligações fora do matrimônio”, escreve Del Priore.
A criminalização da mulher
O aborto só foi expressamente criminalizado no Código Penal seguinte, de 1830, criado no período imperial.
Quem ajudasse uma grávida a abortar, com seu consentimento, poderia ser preso por 1 a 5 anos. Sem a permissão, a pena era duplicada.
A sentença era de 2 a 6 anos para quem fornecesse um meio de fazer um aborto. Um “médico, boticário, cirurgião, ou praticante de tais artes” poderia ficar até o dobro do tempo na prisão.
Mas a mulher que abortava não era considerada uma criminosa. “Isso foi fruto do espírito liberal da época. Não se punia a mulher que fizesse um aborto, porque ela não estava fazendo mal a outra pessoa”, diz Maria Cristina Carmignani.
Isso não significa que não houvesse um debate sobre criminalizar a mulher. “Mas decidiu-se que o Estado não deveria intervir em um caso assim. Cabia à mulher decidir se iria se expor aos perigos de um aborto”, acrescenta.
Isso mudou quando a lei penal brasileira foi mais uma vez reformada, após a proclamação da República, com o Código Penal de 1890.
A nova legislação foi a primeira a prever expressamente uma exceção, a do “aborto necessário, para salvar a gestante de morte inevitável”. Mas também foi a primeira a punir criminalmente a mulher que aborta.
As penas variavam de 6 a 12 meses de prisão (provocar um aborto sem expulsão do feto) e 6 a 24 anos (quando houvesse a morte da mulher). A punição ficava mais branda, de 1 a 5 anos de prisão, se o aborto tivesse ocorrido com a permissão da gestante.
A mulher poderia receber a mesma sentença se abortasse por conta própria. A pena seria reduzida em um terço se ela tivesse feito isso para “ocultar a desonra própria”.
No lugar da honra, o estupro
Mas, no Código Penal seguinte, de 1940, esse atenuante baseado na defesa da honra desapareceu. E foi criada a exceção para o aborto em caso de estupro.
Uma mudança está ligada à outra, afirma Carmignani. “O paradigma da honra vinha perdendo força no campo jurídico e foi retirado.”
Mas a questão do aborto nunca foi colocada de forma absoluta na lei brasileira. Sempre houve exceções e atenuantes.
“Com o desenvolvimento da Ciência e da Medicina, passou a predominar a questão em torno da proteção da vida. Mas ainda era preciso ter no código um atenuante que substituísse a honra, que ressurge sob a ótica da violência”, diz ela.
Mariângela Magalhães Gomes esclarece que, naquela época, o estupro não era visto como uma violência contra a mulher, mas contra sua família.
“Tanto que a lei previa que, se o estuprador depois se casasse com a vítima, ele não era punido, porque havia reparado o dano à honra. Isso vigorou no Brasil até 2005.”
Lia Zanotta afirma que, embora a ideia de honra tenha deixado de constar na lei, os valores morais que a norteavam continuaram nas mentes dos legisladores e da sociedade como um todo.
“O conceito de honra se torna anacrônico em uma época em que passam a prevalecer os direitos individuais, porque a honra nunca foi individualizada, mas familiar. Mas ela reaparece no novo código com outro significado”, diz a antropóloga.
Seria assim que a lei penal no Brasil teria passado a isentar de pena o aborto de uma gravidez gerada pelo ato que abalava a honra familiar, o estupro.
Resistência à mudança
Desde então, nenhuma outra exceção ao crime de aborto foi incluída na lei. Existe, porém, uma terceira situação que hoje é isenta de pena: quando a mulher está grávida de um feto com anencefalia.
Na absoluta maioria dos casos, essa malformação cerebral leva o bebê à morte ainda na gestação ou pouco tempo após nascer. Também é considerada uma gravidez de risco para a mãe.
Mas a descriminalização ocorreu por uma decisão do Supremo Tribunal Federal, em 2012. Salvo isso, as regras do Código Penal sobre o aborto continuam rigorosamente iguais, e nenhum projeto de lei para alterá-lo prosperou.
“Todas as reformas penais apresentadas — e não foram poucas — que propunham novas regras para o aborto ficaram paradas. Por pragmatismo, passou-se a não tratar do aborto nestas propostas e a discutir temas menos conflituosos para conseguir avançar de alguma forma”, diz Sérgio Salomão Schecaira, professor de Direito Penal da USP.
Lia Zanotta diz que a resistência no Congresso ficou mais organizada (e eficiente) a partir de 2005, com a formação de frentes parlamentares contrárias à legalização do aborto.
Essa mobilização, de forte caráter religioso e cristão, consegue arrecadar dinheiro para fazer campanhas e protestos e ter programas de TV, diz a antropóloga, e faz assim uma “doutrinação contra o aborto”.
“Essa resistência organizada se manifestou fortemente agora no caso desta menina de 10 anos, que corria o risco de morrer se continuasse com a gravidez. Esse movimento fala que age em defesa da vida, mas da vida de quem?”
A atual configuração do Congresso aponta que qualquer flexibilização na criminalização das mulheres que praticaram aborto não virá por via legislativa no próximos anos. Mas pode vir por via judicial — é o que acontecerá agora se o Supremo decidir que a criminalização do aborto é incompatível com os direitos garantidos às mulheres pela Constituição de 1988.
Em seu voto sobre o tema, a ministra Rosa Weber afirma que não existem “consensos sobre o início da vida humana no campo da filosofia, da religião e da ética” e nem da ciência e que essa definição não é algo que compete ao judiciário fazer. No entanto, ela reconhece que são necessários “consensos mínimos” para a tomada de decisões e que a Constituição garante direitos aos nascidos no Brasil. Ou seja, segundo ela, a garantia de direito à vida ocorre após o nascimento.
“Não há referência em qualquer passagem do texto constitucional aos não nascidos, seja na condição de embrião ou de feto”, diz Weber.
Há também uma corrente que defende que o direito à vida começa no momento em que um bebê possa ter autonomia em relação à mãe, ou seja, possa sobreviver fora do útero.
Quem é contra a descriminalização do aborto em geral argumenta que o direito à vida do embrião começa no momento da concepção e que ele sobrepõe o direito à autonomia corporal da mulher.
O julgamento sobre o tema começou de forma virtual, mas seguirá para o plenário a pedido do ministro Luís Roberto Barroso. Somente a ministra Rosa Weber votou até agora, ainda faltam os votos de dez ministros.
*com reportagem de Rafael Barifouse
Fonte: BBC
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