- Author, Daniel Pardo
- Role, Correspondente da BBC News Mundo na Colômbia
O símbolo internacional de Cartagena, uma das cidades mais famosas da Colômbia, é um cordão de muralhas que separa as pessoas desde a sua construção no século 16: primeiro entre espanhóis e piratas, depois entre brancos e negros, e agora entre turistas e moradores da cidade.
Há moradores que nunca estiveram na cidade amuralhada, e muitos outros podem ter passado anos, ou décadas, sem pisar no bairro que lhes dá reconhecimento mundial.
“É como os parisienses, que não vão à Torre Eiffel”, justificam alguns. Com a diferença que os muros cercam o centro da cidade: sede de várias universidades e de um Estado que muitos aqui veem como estrangeiro.
Em 1984, esses 11 quilômetros de muro à beira do Mar do Caribe foram declarados Patrimônio da Humanidade pela Unesco. Em 2005, San Basilio de Palenque, uma cidade a 50 quilômetros de distância conhecida como o primeiro assentamento sem escravidão nas Américas, recebeu o mesmo reconhecimento.
Mas Betty Sargado, uma palenquera que vive de posar para fotos com turistas fascinados pelas cores de suas roupas e pelas frutas que carrega na cabeça, não vê grande benefício nesse “chamado patrimônio”.
“Somos patrimônio histórico, meu amor, mas não temos seguro para pagar o dentista”, diz à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC). “Eu não tenho um cartão que diz que sou patrimônio histórico e que por isso devem me oferecer serviço de odontologia. Então, que tipo de patrimônio histórico é esse?”
Empregada doméstica por 14 anos e depois massagista nas praias, Betty e sua mãe, Angélica Cáceres, foram umas das primeiras palenqueras a chegar ao centro para aproveitar ao máximo o turismo.
Passam os dias a cativar o estrangeiro: agitam as saias, contam piada, enquanto pedem uma “picture, picture (foto em inglês)”.
“Fomos nós, negros, que fizemos essas paredes”, diz Betty, enquanto observa o amanhecer que tinge a rocha de coral. “Mas não temos muitos direitos sobre eles”, reclama. “Ninguém sabe nada das muralhas pra lá.”
Das muralhas para lá está “a outra Cartagena”, uma cidade de quase dois milhões de habitantes onde duas em cada três pessoas, segundo dados oficiais, não comem três vezes ao dia; onde 70% trabalham na informalidade, têm a pior qualidade educacional do país e vivem sob a ansiedade de uma criminalidade que registrou 360 homicídios em 2022, o maior número da história recente, e entro pela primeira vez na lista das 50 cidades mais perigosas do mundo – seis delas são colombianas.
A ideia das duas Cartagenas, uma feliz e outra triste, se consolidou. Ela está na mídia, em discursos políticos, em reportagens turísticas.
Em uma Cartagena você pode ouvir o galope dos cavalos em uma carruagem, os gritos de “feliz casamento”. No outro, o ronco dos mototáxis, as buzinas do trânsito caótico e os aviões que pousam ao lado de um bairro de casas assombradas com ruas sem calçamento.
Em uma delas há butiques de luxo, galerias de arte, eletricidade e água encanada. Na outra, vendedores ambulantes lotam semáforos e esquinas, e os serviços básicos são intermitentes.
A história de que existem duas cidades, uma boa e outra ruim, virou um clichê que os próprios moradpres repetem e que, como todo clichê, é discutível. Porque uma Cartagena precisa da outra, elas se alimentam. Porque das paredes para fora pode haver caos, mas também vida, folclore, idiossincrasia caribenha.
“Não saia de casa”
Ariel Valdez é um líder social na área de La Popa, ode ficam os bairros informais ao pé da única colina da cidade, fora das muralhas. Lá ele organiza eventos, faz mediação entre gangues armadas e apoia jovens artistas.
Valdez, 34 anos, dirige um estúdio de gravação onde, em 8 anos, mais de 300 artistas desses bairros gravaram suas composições de rap, reggaeton e champeta, gênero característico da cidade, que mistura ritmos afro-caribenhos com arranjos eletrônicos.
Em uma noite de outubro de 2021, Valdez estava com seu grupo em uma das praças adjacentes ao centro murado. Eles cantaram, dançaram, riram. E, como todas as noites, turistas, vendedores ambulantes e profissionais do sexo convergiam para a área: agitação e pequenos focos de tensão ao mesmo tempo que festa, oportunidade de negócios e clima quente e úmido, atenuado pela brisa.
“Uma unidade de policiais veio nos revistar”, lembra Valdez, sentado em um pequeno estúdio com paredes vermelhas em que um cartaz diz “arriba los debajo”.
“Não encontraram nada para nós, mas a atitude de desafio continuou, como se procurassem um pretexto para nos prender. Por que estávamos ali, por que estávamos fazendo barulho, do que estávamos fugindo? Claro, finalmente começaram a nos assombrar. Incomodam, porque esta é a nossa cidade, e acabaram prendendo um de nós.”
O grupo de jovens se dirigiu à estação, dentro da cerca murada. Lá eles conheceram outros músicos negros presos. Eles descobriram que não eram exceção. “Isso é o que acontece todos os dias”, diz Valdez. Pisar no centro da cidade é, para o negro, um risco.
“Se você não gosta de ser revistado, não saia de casa”, comenta Valdez sobre o que os policiais teriam dito a eles.
Sua reclamação é semelhante à de Betty, a palenquera: “Em Cartagena, os turistas têm mais direitos do que nós, o povo de Cartagena”.
Assim, as pessoas que vêm da “outra Cartagena” promovem o desenvolvimento da Cartagena dos cartões postais: vão lá durante o dia para trabalhar nos hotéis, nas lojas, nos restaurantes, nos eventos, mas se quiserem usá-la como um espaço público, nas horas de lazer, fica complicado.
Muitos cartageneneiros sentem que suas terras são segregadas, divididas em duas. Como é então que uma idílica cidade murada acabou isolada, em pleno século 21, da cidade real que a rodeia?
A construção de um destino turístico
Em 1943 o centro murado era uma ruína, vestígio da principal sede comercial do império espanhol nesta zona da América. Alguns anos antes, inclusive, algumas partes das paredes haviam sido demolidas por serem supostamente focos de propagação de doenças.
Naquela época, as principais fontes de renda da cidade eram — como hoje — as indústrias petroquímicas e o porto, um dos maiores da América Latina. Mas seus lucros não foram suficientes – ou não permaneciam o suficiente em Cartagena – para tirar a cidade da estagnação. A Colômbia também estava saindo de uma crise econômica.
Foi então que surgiu o turismo como solução: o governo nacional destinou recursos para renovar o patrimônio, vários filmes foram rodados — incluindo Queimada, estrelado por Marlon Brando— e os assentamentos que cercam o centro amuralhado, como o emblemático Chambacú, começaram a ser despejados, em uma ação que muitos chamam de “limpeza social”.
Assim, um destino turístico foi criado.
“A convicção de que os monumentos eram o bem mais precioso da cidade, mesmo acima da dignidade dos seus habitantes, ganhava cada vez mais força”, defende o historiador Francisco Flórez no artigo “Culto da pedra, desprezo pelas pessoas”, onde detalha as diferentes campanhas publicitárias para “embranquecer” o centro em busca de um destino.
Embora o verdadeiro impulso turístico de Cartagena tenha ocorrido apenas na década de 1980, segundo especialistas, as iniciativas para condicionar o patrimônio ao olhar estrangeiro surgiram antes e continuam até hoje.
Um dos casos mais emblemáticos, mas não o único, foi o mercado Getsemaní, uma praça pública de raízes culturais e urbanas que foi deslocada na década de 1970 para construir, em 1982, um centro de convenções que hoje abriga conferências, casamentos e festas, principalmente de interesse privado.
Nas décadas de 1980 e 1990, grandes conferências de organizações multinacionais e festivais anuais de cinema e música erudita impulsionaram a reforma de claustros, fábricas e escolas, agora convertidas em hotéis, restaurantes e espaços para eventos.
Até os fruteiros do centro, de Palenque, modificaram suas roupas para alinhá-las ao turismo: a tradição era se vestir de preto para homenagear os ancestrais, mas os negócios prevaleceram sobre o luto ancestral.
“Descobrimos que quanto mais cores usássemos, melhor ficaríamos”, diz Betty Sargado, a palenquera, conhecedora de seu ofício e seu produto de vendas. “Porque com as cores escuras íamos nos ver mais ousadas. E foi daí que surgiu a bandeira da Colômbia e de Cartagena (para enfeitar os vestidos).”
Diana Gideón, co-directora da maior empresa de turismo da cidade, a Gema Tours, foi, com a sua família, uma peça fundamental na construção deste destino turístico. “O crescimento da empresa andou de mãos dadas com o desenvolvimento da cidade”, afirma.
Um empreendimento que, ela admite, não abarcou todos os cartageneiros, embora existam empresas, como a Gema Tours, que promovem a mobilidade social.
A empresária convida todos os meses centenas de crianças de bairros pobres para “um passeio pelo patrimônio de Cartagena”, do qual pouco ou nada sabem.
Quando lhe pergunto sobre a deslocação de populações e culturas a favor do turismo, assegura que são riscos normais do desenvolvimento: “Há cidades que são mais ciumentas do que outras, que cuidam melhor dos seus bens, mas não foi este o caso aqui, o desenvolvimento ocorreu”.
Para Gideon, embora todos os presidentes “ponham seu grão de areia para promover o turismo em Cartagena, houve um antes e um depois de Álvaro Uribe”.
Uribe, que governou entre 2002 e 2010, criou robustas entidades para promover o país, estabeleceu isenções fiscais —algumas ainda vigentes— para quem comprar e reformar casas no centro de Cartagena e promoveu, em aliança com os Estados Unidos, um ambicioso programa de segurança e política antiterrorista que gerou a ideia de que “agora você pode viajar na Colômbia”.
Nesses anos, também foi relatada a chegada de grupos paramilitares à cidade que supostamente pretendiam realizar uma limpeza social. Investigações jornalísticas informam que, em 2003, por exemplo, os homicídios aumentaram 47% em relação ao ano anterior devido à ação dos paramilitares.
“Desde a criação do destino turístico, toda a política pública de Cartagena se voltou para o turismo”, diz Camilo Rey, geógrafo e economista em Cartagena.
“E isso não só gerou a ideia de que existem duas cidades, como foi feito sob uma premissa que não é verdadeira: que é a maior fonte de renda.”
A indústria petroquímica pagou o dobro de impostos e gerou o dobro de empregos que a hotelaria entre 1990 e 2010, segundo pesquisa do economista Aarón Espinosa.
Hoje, segundo dados da Câmara de Comércio da cidade, a petroquímica gera um quarto dos empregos gerados pelo turismo, além de dez vezes mais renda.
Ou, dito de outra forma: das cinco atividades mais pujantes da cidade —agricultura, construção, porto, petroquímica e turismo—, é esta última que gera menos lucro e, portanto, menos impostos.
E embora o turismo seja a maior fonte de trabalho, 40% do total, mais da metade desses empregos, 60%, são informais, segundo dados oficiais.
Riqueza por uma única Cartagena
Além do atributo histórico e estético do chamado “Centro de Pedra”, a atração de Cartagena é a sua natureza.
Cercados por pântanos, canais e uma esplêndida baía, na cidade se reúnem diversos complexos hídricos que permitem a ágil interação do interior do país com o mar do Caribe.
Existe também uma luminosidade que faz de qualquer pedra uma imagem fotogênica.
Sua localização estratégica a converteu em um dos portos mais dinâmicos —comerciais, mas também de escravos— das Américas.
Por ser um conjunto de penínsulas, a cidade parece ancorada no mar aberto, o que gera uma concorrência de ventos que esfria de 30 a 40 graus Celsius.
Mas essa geografia que traz centenas de milhares de turistas por ano também é um desafio.
A maior parte de seus solos está abaixo do nível do mar e muitos deles são construções feitas pelo homem, que, artesanalmente ou industrialmente, foram colocando entulho nas margens para expandir o terreno com o acúmulo de sedimentos.
Hoje 60% do litoral da cidade está ameaçado pela erosão, que só promete aumentar devido às mudanças climáticas. Toda vez que chove, as ruas alagam, o trânsito congestiona, os esgotos transbordam.
A infraestrutura de Cartagena talvez seja a maior reclamação de seus moradores, que têm uma das taxas de parques por pessoa mais baixas do país e poucos espaços para praticar seus esportes tradicionais: beisebol e patinação de velocidade.
Você não pode entrar de motocicleta – o veículo mais usado na região – na área dedicada ao lazer, o centro murado. E há poucos, se houver, restaurantes de comida típica da região por lá.
O boom imobiliário gerado pelo turismo na década de 1990, com prédios altos e brancos em áreas próximas ao centro, foi parcialmente impulsionado por investidores estrangeiros e, segundo registros judiciais, pela economia do narcotráfico, interessada em lavagem de dinheiro. Dezenas de prédios foram construídos sem licença, causando desmoronamentos que custaram vidas ou construções que posteriormente tiveram que ser demolidas.
Alguns bairros de Cartagena se parecem com Miami, mas outros têm déficits habitacionais semelhantes aos de Chocó e La Guajira, os departamentos mais pobres do país.
E a isso se soma uma situação crítica na educação: em todos os indicadores, o desempenho educacional da cidade é pior que a média nacional. Está no nível das regiões com as economias mais pobres, mas localizado em uma das economias mais ricas do país.
A Prefeitura de Cartagena é um dos poucos edifícios construídos sobre a fortificação de pedra. Branco, com sacadas de madeira vermelha e telhas de barro na cobertura, o edifício abriga o gabinete do prefeito da cidade, de onde se acessa um trecho reservado da muralha e se avista a baía, o Centro de Convenções e, um pouco mais adiante, “a outra Cartagena”.
Entre os especialistas ouvidos pela reportagem há certo consenso de que o governo de Cartagena é um Estado falido. A política local está infestada de corrupção e infiltrada por castas familiares e empresariais de outras regiões.
O atual prefeito, William Dau, provavelmente será, no fim deste ano, o primeiro mandatário distrital a terminar seu mandato nos últimos 12 anos. Os oito prefeitos anteriores tiveram mandatos atípicos. Alguns foram destituídos, outros foram presos.
Eleito em nome da luta contra a corrupção, Dau tem contra si todos os deputados da Assembleia, muitos dos seus funcionários se demitiram e que não consegue fazer obras.
O seu legado, disse à News BBC Mundo, é o saneamento das finanças públicas: “Aqui houve um pacto tácito entre empresários e políticos de não se atacarem. ‘Deixo vocês continuarem roubando e vocês não mexam nas minhas empresas’ (.. .) Quando me tornei prefeito, 70% do orçamento foi perdido na corrupção, mas já estamos moralizando a administração pública.”
Mas Dau, com números no vermelho nas pesquisas e investigado por 20 processos disciplinares em órgãos estaduais, estima que sua limpeza vai ficar aquém: “Tem tanta demora para corrigir que não dá para fazer tudo em 4 anos. acabam em elefantes brancos (construções inacabadas) porque falta planejamento, porque fizeram tudo chamboneado (improvisado)”.
Para ele, a riqueza de Cartagena não se traduz em bem-estar geral porque os políticos não estão interessados: “A ideia aqui não é pensar em todas as pessoas, mas em como explorar a beleza da cidade para fins privados. visto como um animalzinho, como um insumo de uma cadeia produtiva”.
“Isso de que a Cartagena rica abastece os pobres não é verdade”, diz o prefeito. “Mas sem os negros, (os mais ricos) não poderiam ter seus hotéis nem seus restaurantes.”
O centro tomado pelo turismo sexual
No censo nacional de 2005, foi informado que cerca de 15.000 pessoas viviam no centro murado de Cartagena, mais ou menos o mesmo número estimado pela historiografia dos séculos anteriores. Mas no censo de 2018, apenas 2.500 pessoas disseram que viviam nessa área.
Essa diminuição se deve não só ao fato de a maioria dos imóveis se dedicarem ao turismo, mas também ao fato de o centro, à noite, se tornar uma zona de tolerância à prostituição e ao microtráfico de drogas com um suposto aval da polícia.
“Todos se calam por amor ao dinheiro”, diz Berena Suárez, uma ex-profissional do sexo que agora administra um lar para vítimas do tráfico no bairro de Alcibia.
“Sim, as autoridades colocam um papel nas portas dos hotéis dizendo que não aceitam turismo sexual, mas isso é mentira, porque eles têm um acordo com a polícia, com a justiça, com todos; eles fazem vista grossa. “
É impossível saber a magnitude do turismo sexual, que é legal, ou do tráfico de pessoas, que é ilegal. Ambos são mundos nebulosos. Mas só de olhar para a Plaza de los Coches, mais conhecida como Torre do Relógio, em pleno centro da cidade, às 22h, é possível identificar uma espécie de capital mundial da prostituição.
Ana María González é a atual secretária do Interior, a funcionária mais midiática da prefeitura de Dau e uma ativista obsessiva contra o tráfico de pessoas. “A idade média das meninas (profissionais do sexo) é de 19 anos”, diz ela.
Vestindo um colete vermelho do gabinete do prefeito, cercada por câmeras e delegados e policiais, a oficial levou a BBC News Mundo em um de seus habituais passeios por estabelecimentos dedicados à prostituição.
Alguns, os mais exclusivos, estão dentro da parede; outros, os mais populares, estão pra fora.
“Olha o alfinete (o cadeado)”, diz González, apontando para a porta de um quarto de um bordel em El Amparo, longe do centro. “Existem as intenções: eles colocam do lado de fora da porta para poder trancar as meninas.”
Nascida em Bogotá, González, que assim como o prefeito morou por muitos anos nos Estados Unidos, destaca: “Há meninos e meninas cuja liberdade está sendo cerceada para que os estrangeiros possam se divertir, e essa situação me machuca muito”.
Berena, a ex-trabalhadora do sexo, concorda: “Se um gringo é pego com um menor, eles o protegem. Não sei o que acontece, mas quando isso acontece (um crime sexual cometido por um estrangeiro), fica impune”.
“Cultura Subterrânea”
Todos os fins de semana, em cada bairro popular de Cartagena, são montadas enormes aparelhagens de som ao estilo jamaicano, pintadas de cores, que reúnem dezenas de pessoas em festas de rua. Eles os chamam de “picó”, podem durar três dias e são uma característica essencial da “outra Cartagena”.
No centro murado, essas festas não existem. Há festas, claro, mas não em Cartagena propriamente dita. Houve até uma época em que as autoridades tentaram proibir o estilo musical champeta porque, supostamente, alegaram que promove o contato sexual e favorece o crime.
Há pessoas de Cartagena que cresceram pensando que esse gênero era proibido porque era “música negra”.
Hoje a champeta é um símbolo internacional de Cartagena. E a grande maioria de seus expoentes vem da cidade fora dos muros.
Ariel Valdez, líder social e produtor musical, é um dos 25 filhos de Justo Valdez, um palenquero considerado co-criador da champeta e um expoente vital da música caribenha colombiana. Seu legado é celebrado em bares de Bogotá e até em conservatórios de Boston.
Mas, de acordo com Ariel, seu pai não tem dinheiro suficiente “para comer três vezes ao dia”. E ele não frequenta muito o centro murado.
Ele foi convidado para centenas de eventos de promoção turística ao longo de quatro décadas. Sua música afro, alegre e pioneira é justamente o que os turistas vêm conhecer.
Mas Justo, como os outros músicos de Son Palenque, sua famosa banda, vive na pobreza.
Ariel menciona duas razões para isso: “O sistema educacional e econômico não permite que os pobres subam, mas também é que em Cartagena há um sentimento de resignação, de que é melhor receber pouco do que não receber nada”.
A opinião do jovem músico dos bairros das ladeiras de La Popa é compartilhada por dezenas de pensadores da cidade: os sentimentos coletivos mais profundos dos moradores de Cartagena, sempre ligados à alegria, estão em crise.
Há duas coisas que historicamente deram a Cartagena um atributo único: as festividades de 11 de novembro, que celebram a independência de Cartagena, anterior à de Bogotá; e o beisebol, esporte tradicional ao contrário do resto do país, onde se pratica futebol e ciclismo.
Ambos estão diminuindo: as festas de 11 de novembro foram rebaixadas pelo Concurso Nacional de Beleza, que acontece na mesma época; e os times de beisebol de Cartagena não se classificam para torneios de importância moderada, enquanto o estádio Once de Noviembre, conhecido como “o templo do beisebol colombiano”, está desgastado, precisando de reformas há décadas.
Rosita Díaz e Raúl Paniagua são um renomado casal de sociólogos de Cartagena. Ambos tentam esconder seus mais de 70 anos.
Dedicados a passar a tarde lendo em uma varanda cheia de plantas no tradicional bairro de Pie de la Popa, ao som de pássaros e motocicletas, o casal explica que em uma “cidade pré-moderna”, onde sistemas de castas regem o poder econômico e a política, tem sido muito difícil manter as raízes africanas, por mais resistentes que sejam.
“Sempre disse que nunca fomos livres, mas sempre fomos dignos”, diz Díaz. “Porque mantivemos nossas danças, nossa gastronomia, nossos cultos religiosos.”
“Mas agora não sei mais se somos dignos”, acrescenta. “Nossa herança se tornou um disfarce. Nossa cultura se tornou clandestina.”
Fonte: BBC
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