- Author, Ángel Bermúdez
- Role, BBC News Mundo
- Twitter, @angelbermudez
Junko Iizuka ainda sofre as consequências daquela misteriosa cirurgia à qual foi forçada a fazer há mais de 60 anos.
Ela tinha apenas 16 anos quando foi levada a uma clínica no nordeste do Japão para o procedimento, que ela descobriria mais tarde que a deixou irreversivelmente estéril.
Mas isso não foi uma consequência indesejada de uma cirurgia necessária. Não.
A impossibilidade de ter filhos foi o principal objetivo daquela intervenção cirúrgica, realizada no âmbito da política de eugenia aplicada no Japão entre 1948 e 1996, com o objetivo de “impedir o nascimento de descendentes de má qualidade… e proteger a vida e a saúde da mãe”.
Estima-se que 16.500 pessoas – principalmente mulheres – foram operadas sem seu consentimento, cerca de 8.000 deram autorização – embora se acredite que provavelmente sob pressão – e outras 60.000 mulheres fizeram abortos para evitar doenças hereditárias, segundo um relatório parlamentar de 1.400 páginas que foi apresentado recentemente.
O relatório, resultado de uma investigação iniciada em 2020, gerou muita indignação ao revelar que pelo menos uma menina e um menino de 9 anos foram submetidos a esses procedimentos.
O texto também foi criticado por deixar questões importantes sem resposta em relação a essa política, que, na opinião de muitos, o Japão demorou a repudiar.
Uma lei para “proteger” a descendência
A Lei de Proteção Eugênica foi aprovada em 1948 e permitiu que os médicos esterilizassem pessoas com ou sem o seu consentimento.
Neste último caso, se o médico considerasse que a intervenção era necessária “para proteger o interesse público de modo a prevenir a transmissão hereditária de doença”, deveria solicitar uma comissão à prefeitura local para avaliar se o procedimento era adequado.
Então, teoricamente, foi criado um mecanismo de revisão do caso que permitia ao paciente apresentar objeções e até mesmo iniciar um julgamento para evitar a operação.
No entanto, como alerta Takashi Tsuchiya, professor da Osaka City University, em um artigo publicado em 1997: “essas disposições de notificação, revisão e demanda não se aplicam no caso de pacientes com deficiência mental ou intelectual”.
Além disso, algumas diretrizes aprovadas pelo Ministério da Saúde em 1953 estabeleciam que, quando a comissão julgasse necessário, esse tipo de cirurgia poderia ser realizada “contra a vontade do paciente” e autorizavam a realização do procedimento “submetendo o corpo do paciente, dando lhe um analgésico ou o enganando.”
“Esses novos regulamentos no início dos anos 1950 permitiram e autorizaram a esterilização forçada e enganosa, que era a forma como era comumente praticada”, observa Tsuchiya.
Assim, de acordo com o relatório parlamentar, alguns pacientes foram informados de que seriam submetidos a procedimentos de rotina, como uma operação de apêndice, quando na verdade seriam esterilizados.
A lei incluía uma lista de doenças que eram então consideradas hereditárias e que tornavam o paciente candidato à esterilização, como esquizofrenia, psicose maníaco-depressiva, “desejo sexual acentuadamente anormal”, “inclinação criminosa acentuada”, albinismo, distrofia muscular, epilepsia , surdez, hemofilia, daltonismo, “mão quebrada” e “pé quebrado”, entre outros.
Como aponta Tsuchiya, essa legislação não era apenas um reflexo da preocupação do governo japonês com a superpopulação, mas também com a “deterioração” da descendência.
Vidas arruinadas
O governo do Japão pediu desculpas por essa política em 2019 e anunciou que pagaria a cada sobrevivente uma indenização equivalente a cerca de US$ 28.600 (cerca de R$ 140 mil).
O então primeiro-ministro, Shinzo Abe, disse em seu pedido oficial de desculpas que a lei de eugenia causou “grande sofrimento” às suas vítimas.
Para Junko lizuka, que passou anos lutando para receber justiça e hoje usa óculos e máscara para não ser reconhecida publicamente, as consequências foram muito além.
“A cirurgia eugênica me privou de todos os meus modestos sonhos de ter um casamento e filhos felizes”, disse Iizuka a repórteres.
Ela explicou que seu marido a abandonou e pediu o divórcio imediatamente depois que ela lhe disse que havia se submetido a uma cirurgia de esterilização e não poderia ter filhos.
“Eu tinha problemas de saúde mental e não conseguia trabalhar. Fui diagnosticada com transtorno de estresse pós-traumático. A cirurgia eugênica virou minha vida de cabeça para baixo”, disse ela.
De acordo com Tsuchiya, muitas das esterilizações forçadas foram realizadas em pacientes em hospitais psiquiátricos e outros centros para pessoas com deficiência intelectual, que muitas vezes eram enganados para se submeter à operação.
“Às vezes, essas pessoas eram perguntadas (se queriam passar pelo procedimento), mas eram virtualmente forçadas a dar consentimento porque a esterilização era frequentemente um requisito para admissão nessas instituições, que é o que os pais dessas pessoas desejavam”, diz.
Como o objetivo dessas cirurgias não era apenas evitar que essas pessoas tivessem filhos, mas também – no caso das mulheres – interromper a menstruação para facilitar o atendimento dessas pessoas nos centros de saúde, muitas vezes essas esterilizações não eram realizada através de ligadura das trompas de falópio, mas através de uma histerectomia completa.
“Para interromper a menstruação, a cirurgia precisa remover os ovários ou o útero, mas, como a perda dos ovários causava ‘perda da feminilidade’, os médicos preferiam remover o útero ‘para benefício da paciente’. Esse procedimento era ilegal porque a lei permitia apenas a esterilização ‘sem remover os órgãos reprodutivos'”, explica Tsuchiya.
Busca por justiça
Durante décadas, as vítimas fizeram campanha pelo reconhecimento dos danos sofridos e pela indenização.
Em alguns casos, elas foram diretamente aos tribunais, obtendo resultados diferentes.
No ano passado, um tribunal superior em Osaka ordenou que o governo japonês pagasse US$ 200.000 (cerca de R$ 970 mil) a três vítimas.
No entanto, no início deste mês, outro tribunal rejeitou essa decisão, argumentando que, depois de mais de 20 anos, a causa legal havia expirado.
Junko Lizuka, que foi uma das responsáveis por processar o governo, chamou a decisão de “terrível” por não levar em consideração as razões pelas quais as vítimas não puderam processar antes.
Em declarações à imprensa, declarou que, como “a responsabilidade do governo é óbvia”, queria que houvesse uma solução mais rápida que oferecesse indenizações mais ajustadas sem necessidade de recorrer aos tribunais.
Mas, aparentemente, a justiça que as vítimas esperam também não será derivada do recente relatório parlamentar.
Koji Niisato, um advogado que representou vítimas dessa política, contestou o relatório por não ir longe o suficiente.
Ele destacou que se trata basicamente de um apanhado do que já foi investigado e relatado sobre o assunto.
“Falta um resumo de por que essa lei terrível foi criada e existiu por 48 anos e não menciona por que o governo não assumiu a responsabilidade mesmo depois que a lei foi alterada. Isso é extremamente lamentável”, disse Nisato a repórteres nesta semana.
Para algumas vítimas como Saburo Kita, que foi esterilizada à força aos 14 anos, o relatório mostra que o governo enganou as crianças.
Agora com 80 anos, ela manifesta o desejo de que a questão seja resolvida o mais rápido possível.
“Gostaria que o estado não escondesse o problema no escuro, mas levasse a sério nosso sofrimento logo”, disse.
Por enquanto, a espera continua.
Fonte: BBC
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