- Author, Mariana Sanches
- Role, Da BBC News Brasil em Washington D.C.
- Twitter, @Mariana_Sanches
-
O secretário adjunto de Estado dos Estados Unidos, Brian A. Nichols, dribla perguntas sobre declarações agressivas do presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em relação aos EUA.
Principal autoridade americana para as Américas, Nichols prefere exaltar o novo papel que o Brasil tem desempenhado no cenário internacional desde a posse do petista, há quase seis meses.
Lula chegou ao poder prometendo colocar o país de volta no mapa-mundi – depois de 4 anos de gestão de Jair Bolsonaro (PL) – e de lá pra cá sustentou dezenas de encontros com líderes mundiais, como o americano Joe Biden, o chinês Xi Jinping e o alemão Olaf Scholz.
Acumulou também desgastes com aliados americanos depois de dizer que pretendia negociar a paz na guerra da Ucrânia e que os EUA “deveriam parar de promover” o conflito. O posicionamento foi criticado publicamente pela Casa Branca como uma repetição de discurso russo.
“Nem sempre vamos concordar em tudo, mas o mundo é melhor com o Brasil nele”, diz Nichols em entrevista exclusiva à BBC News Brasil, em seu gabinete, no prédio do departamento de Estado em Washington D.C.
Nichols, porém, não deixa de dizer que a fala de Lula de haver uma “narrativa” sobre o caráter ditatorial do regime de Nicolás Maduro na Venezuela “não é uma caracterização justa” do que acontece no país e ressalta que a afirmação do brasileiro foi rebatida tanto pelo líder chileno Gabriel Boric quanto pelo uruguaio Luis Alberto Lacalle Pou. Mas diz que o Brasil segue sendo um ator importante para negociar uma saída democrática para os venezuelanos.
Os EUA, pressionado pelo avanço da China na América Latina e mantendo relações erráticas com dois de seus principais aliados históricos na região, México e Colômbia, seguem vendo no Brasil sob Lula uma grande oportunidade de retomar influência na região e de fazer avançar globalmente pautas prioritárias para Biden, como a promoção da democracia e o combate às mudanças climáticas.
O secretário adjunto elogiou o que chamou de “muito boa química” entre Biden e Lula. Mas descartou a possibilidade de que os EUA possam negociar um acordo de livre comércio com o Mercosul nos moldes do tratado que o bloco negocia com a Europa.
Nichols assinala a cooperação ambiental entre EUA e Brasil como ponto alto do relacionamento bilateral, embora os US$500 milhões prometidos pelo governo Biden ao Fundo Amazônia ainda não tenham sido aprovados pelo Congresso.
“Estou confiante de que seremos capazes de defender os recursos de que precisamos (junto ao Congresso)”, assegura Nichols, sem dizer como essa negociação será feita.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista, editada por concisão e clareza.
BBC News Brasil – Quase seis meses após o início do mandato de Lula, de que maneira a relação Brasil-EUA mudou em comparação ao governo brasileiro anterior?
Brian A. Nichols – Tive o prazer de me juntar ao presidente Biden e ao presidente Lula na reunião que eles tiveram na Casa Branca (em fevereiro) e foi incrível ver os dois líderes saírem do Salão Oval, de sua reunião individual, ombro a ombro, conversando um com o outro, e quanta boa química e valores compartilhados os dois presidentes têm.
Eles falaram sobre a defesa da democracia, suas preocupações compartilhadas sobre a mudança climática, seu compromisso com a diversidade, equidade e inclusão, abordando os muitos desafios que o mundo enfrenta hoje em termos de conflitos globais, segurança alimentar.
Portanto, há uma base incrivelmente forte para construir nosso relacionamento. E os dois líderes transmitiram às suas equipes a importância dessa relação.
Desde a minha visita ao Brasil, no mês passado, fiquei realmente impressionado com tantos atores diferentes, seja no setor governamental, empresarial, acadêmico, sociedade civil, todos realmente valorizam o relacionamento com os Estados Unidos. Então eu acho que não é apenas uma relação de governo para governo. Está em todos esses níveis diferentes da sociedade. E temos um relacionamento maravilhoso com o Brasil e muito trabalho a ser construído.
BBC News Brasil – E isso tudo não estava presente na gestão anterior (de Jair Bolsonaro)?
Nichols – Brasil e EUA são países grandes, e há muitos interesses. E eles vão além dos líderes e vão além do governo. Então, tivemos relações positivas com o Brasil no passado de muitas maneiras, mas acho que esta é uma oportunidade única, já que agora temos dois presidentes que estão tão alinhados em uma agenda de governo.
BBC News Brasil – Se eu te pedisse pra fazer um balanço, em que aspectos da relação houve avanços e onde ainda há o que melhorar?
Nichols – Acho que o clima é uma das áreas em que há um compromisso muito forte de ambos os países e líderes. Aguardamos com expectativa a cúpula da Amazônia em Belém, em agosto, que o Brasil sediará.
O presidente Lula aspira a sediar a COP 30 (conferência da ONU sobre o clima, já confirmada em Belém em 2025). Essa é uma iniciativa importante. O presidente Biden destinou US$ 500 milhões para o fundo da Amazônia, e já estamos trabalhando nas questões da Amazônia há algum tempo, seja no combate à extração ilegal de madeira, mineração ilegal de ouro, promoção de políticas agrícolas sustentáveis que ajudarão a acabar com o desmatamento, todas essas áreas de cooperação são muito importantes.
E coisas como a segurança alimentar global têm sido incrivelmente importantes desde a época da pandemia até a invasão da Ucrânia pela Rússia. Como um dos principais exportadores de alimentos e fertilizantes, o Brasil tem um papel fundamental a desempenhar em relação à segurança alimentar. Essas são apenas algumas das áreas nas quais já estamos ativamente engajados na cooperação.
E em termos de coisas que espero que possamos fazer mais para enfrentar, (estão) os desafios regionais e os desafios globais. O Brasil historicamente tem sido um grande líder na tentativa de ajudar o povo haitiano, por exemplo, e isso é uma grande prioridade para nós.
Da mesma forma, enfrentamos um desafio de democracia e respeito pelas liberdades e direitos básicos na Venezuela, e o presidente Lula manifestou interesse em tentar enfrentar os desafios de lá. Portanto, definitivamente existem áreas nas quais podemos trabalhar juntos em nossa região.
BBC News Brasil – A presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyer, acaba de visitar o Brasil e dizer que pretende finalizar o acordo de livre comércio com o Mercosul até o final do ano. Existe a possibilidade de que EUA e Mercosul também negociem um acordo de livre comércio, ou este assunto está completamente fora da agenda?
Nichols – Na Cúpula das Américas no ano passado, os Estados Unidos anunciaram a Parceria das Américas para a Prosperidade Econômica, e essa é a base que temos para construir uma estrutura mais ampla para o crescimento econômico e a prosperidade em nosso hemisfério. Na época que lançamos o Brasil estava em meio a uma eleição e não achava muito apropriado aderir naquele momento, mas é algo que estamos construindo com muitos países em nosso continente para agilizar processos alfandegários e regulatórios, construir conexões mais fáceis no setor de serviços, fazer coisas que ajudarão a facilitar o crescimento (econômico) em nossa região.
Outra área importante para nós é tentar facilitar a criação de novas cadeias de suprimentos mais próximas dos Estados Unidos. Essa é uma das prioridades do presidente Biden. Estamos realmente fazendo muito para trazer a manufatura de volta aos Estados Unidos, mas ainda há insumos que teremos de importar de parceiros na América Latina. E o Brasil é uma economia gigantesca e há grandes sinergias que temos com a economia brasileira, como no setor aeroespacial.
BBC News Brasil – Então, se entendi bem sua resposta, isso significa que os EUA preferem investir nestas iniciativas mais pontuais a discutir um acordo de livre comércio?
Nichols – Não acho que estejamos prontos para algum tipo de acordo amplo de livre comércio em bloco. Mas acho que há muitas outras coisas que podemos fazer para facilitar as áreas em que somos complementares. Os EUA são a principal fonte de investimento estrangeiro no Brasil, as empresas americanas contribuem para um terço do PIB (Produto Interno Bruto) brasileiro. Queremos ter certeza de que estamos trabalhando com nossos parceiros em toda a região para aumentar a classe média, para ajudar as economias a se tornarem mais equitativas, mais bem-sucedidas e mais resilientes.
BBC News Brasil – O presidente Lula fez uma série de declarações que foram vistas por analistas como agressivas aos EUA ou como ecos de antiamericanismo. Ele disse, por exemplo, que os EUA tinham que parar de incentivar a guerra na Ucrânia. Antes de Lula ganhar a eleição, diplomatas americanos que conversaram com a BBC News Brasil reservadamente expressaram preocupação com ecos de antiamericanismo que pudessem ainda existir na esquerda brasileira. O senhor vê ecos de antiamericanismo no discurso do presidente Lula?
Nichols – Olha, o presidente Lula é, mais uma vez, um parceiro importante em tantas áreas… As questões que vemos globalmente, a guerra na Ucrânia começou quando a Rússia invadiu a Ucrânia pela segunda vez. E nós e nossos aliados dissemos ao mundo que a Rússia planejava invadir. A Federação Russa negou. E na sequência invadiu. O conflito está acontecendo inteiramente dentro das fronteiras da Ucrânia. E a maneira de parar esse conflito agora é a Rússia retirar suas forças do território ucraniano. (Se a Rússia fizer isso), a guerra acabou. Essa é a realidade.
Acho muito positivo que o presidente Lula e altos funcionários brasileiros estejam em contato com funcionários do governo ucraniano. Acho importante ouvir a perspectiva deles sobre a situação. O que costumamos dizer aqui é que nada sobre a Ucrânia (será discutido ou resolvido) sem a Ucrânia. Portanto, qualquer solução para o conflito dependerá do envolvimento dos líderes ucranianos, conversando com eles sobre suas preocupações. E vemos isso como um passo positivo (do governo Lula).
BBC News Brasil – Então a situação constrangedora entre Brasil e EUA sobre a guerra na Ucrânia já foi superada?
Nichols – Acho que para ambos os países é importante que nos mantenhamos engajados, que conversemos uns com os outros, que tenhamos certeza de que as linhas de comunicação estão muito ativas.
Quando temos diferenças de opinião sobre as coisas, a melhor maneira de lidar com isso é conversando, conversando e compartilhando nossas respectivas perspectivas, e acho que à medida que avançamos, será vital mantermos contato próximo.
Este é um momento incrivelmente desafiador em nossa região e em todo o mundo. E o Brasil pode desempenhar um papel fundamental na solução desses problemas. Precisamos que o Brasil esteja ativo no cenário mundial, precisamos que o Brasil traga sua criatividade e suas soluções para a mesa. E claro que nem sempre vamos concordar em tudo, mas o mundo é melhor com o Brasil nele.
BBC News Brasil – Especificamente sobre a Venezuela, quais são seus comentários sobre a declaração do presidente Lula de que o que está acontecendo na Venezuela é uma narrativa?
Nichols – Não é uma narrativa. A realidade é que existem amplos relatórios internacionais da Organização das Nações Unidas (ONU), da Organização dos Estados Americanos (OEA) e do relator especial da ONU para a Comissão de Direitos Humanos que falam sobre a realidade da situação na Venezuela.
O povo venezuelano não pode exercer seus direitos democráticos fundamentais, e a melhor maneira de resolver isso é ter uma eleição livre, justa e transparente na Venezuela. Isso é algo que apoiamos fortemente e acreditamos que a comunidade internacional precisa manter a unidade para encorajar uma solução democrática por meio de uma eleição na Venezuela.
E se pudermos apoiar esse processo, será melhor para o povo venezuelano, melhor para nossa região, melhor para o mundo.
BBC News Brasil – Foi surpreendente para você este comentário do presidente Lula?
Nichols – Acho que o elemento crucial da discussão em nossa região é qual é a realidade e quais são os desafios que enfrentamos como região. E, certamente, se você olhar para as declarações de outros líderes do continente ou declarações da própria classe política do Brasil, há uma constelação de atores políticos, acho que as pessoas em geral acharam que essa não era uma caracterização justa. Então o importante é que temos que trabalhar juntos para promover soluções. E estou confiante de que o governo brasileiro fará isso.
BBC News Brasil – Ao falar em “narrativa”, Lula reduz as condições do Brasil de servir como mediador da crise venezuelana?
Nichols – Muitos países vão ter um papel importante nesse processo. A Cidade do México tem sido palco de negociações entre o regime de Maduro e a plataforma unitária da oposição, e esse é um processo incrivelmente importante. Na Colômbia, o presidente (Gustavo) Petro organizou uma reunião ministerial de alto nível para falar sobre o caminho a seguir e falou sobre seu compromisso de revitalizar um grupo de parceiros para enfrentar os desafios na Venezuela.
O Brasil é o anfitrião de milhares de venezuelanos que fugiram da repressão em seu próprio país e pode desempenhar um papel crucial no fornecimento de uma solução. Portanto, há muitos países que terão um papel importante a desempenhar para ajudar a Venezuela a ter um futuro melhor. E o Brasil é um deles.
BBC News Brasil – O senhor esteve na semana passada no Congresso americano para falar sobre o Orçamento proposto pelo presidente Biden para ações na América Latina. Em uma sessão de uma hora e meia, a Amazônia foi mencionada uma única vez, e pelo senhor. A impressão que dá é que a questão do meio ambiente não é uma prioridade para o Congresso americano como o governo Biden diz que é para sua gestão. Essa impressão é verdadeira? Faz sentido ainda esperar que o Congresso aprove o valor de meio bilhão de dólares que Biden prometeu destinar ao fundo amazônia diante desse contexto?
Nichols – O presidente Biden tem sido muito claro ao priorizar as questões climáticas e obteve mais dinheiro em financiamentos relacionados ao clima do Congresso dos EUA do que todos os outros presidentes americanos. Há muitos senadores e deputados que falam muito e apoiam nossos esforços para enfrentar a crise climática. E estou confiante de que seremos capazes de defender os recursos de que precisamos.
BBC News Brasil – Em relação ao Haiti, o Brasil liderou a missão de paz no país por anos e, no entanto, vemos hoje a situação de completa deterioração do Estado haitiano. O Brasil falhou em sua missão? O Brasil deveria compor nova força internacional que tem sido defendida pelos EUA no país?
Nichols – O Brasil tem sido um líder incrivelmente importante em ajudar o povo haitiano por décadas, e sua liderança na Minustah (Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti) foi um compromisso incrível. Sou profundamente grato por tudo o que o Brasil fez e continua fazendo para prestar assistência ao Haiti. Todos nós temos que fazer mais para ajudar o Haiti. E parte da solução para isso é fornecer uma espécie de força de segurança internacional que o governo haitiano solicitou.
Líderes haitianos de todo o espectro político estão se reunindo e estiveram nos últimos dias na Jamaica para falar sobre o caminho a seguir, enquanto examinamos os diferentes tipos de ajuda de que o Haiti precisa, seja assistência humanitária, médica, eleitoral, educacional, econômica ou mesmo policial. O Brasil tem experiência em todas essas áreas e espero que o Brasil continue sendo generoso e criativo em ajudar o Haiti neste momento incrivelmente difícil.
BBC News Brasil – A relação entre Brasil e EUA completa 200 anos em 2024. Ao mesmo tempo, o Brasil não recebe visitas de um presidente americano há cerca de dez anos, desde Barack Obama. Biden pretende visitar o país no fim do ano ou começo do ano que vem?
Nichols – Durante a reunião na Casa Branca, o presidente Lula fez um convite ao presidente Biden para uma visita. Ele (Biden) disse que estava ansioso para visitá-lo e tenho certeza de que encontrará algum momento mutuamente conveniente para uma visita ao Brasil. Eu sei que ele está ansioso por essa viagem.
Fonte: BBC
Você precisa fazer login para comentar.