- Author, Letícia Mori
- Role, Da BBC News Brasil em São Paulo
- Twitter, @_leticiamori
Inane. Cônjuge supérstite. Inobstante. Hialinamente.
São palavras incomuns, desconhecidas, complicadas e que podem ser substituídas por sinônimos bem mais simples: “cônjuge supérstite” é o mesmo que viúvo, “hialinamente” quer dizer “claramente”.
Apesar de tudo isso, não é raro encontrá-las em documentos de processos judiciais – em textos de advogados, promotores e decisões de magistrados.
É o famoso “juridiquês” – uma linguagem desnecessariamente complicada usada com frequência em documentos judiciais.
O Direito, como toda área de conhecimento, tem termos técnicos conhecidos por quem é da área e não pelos leigos.
Mas a ideia de “juridiquês”, a crítica não é ao uso desses termos, mas a forma excessivamente rebuscada de escrever – nenhuma dessas palavras citadas no início do texto, por exemplo, é um termo técnico-jurídico necessário.
Pensando em aproximar o Judiciário da sociedade, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) está promovendo uma iniciativa bem sucedida do Tribunal de Justiça da Bahia para ampliar o uso de uma linguagem mais simples na Justiça e criar formas de traduzir as decisões para o público em geral.
“Existe uma necessidade do Judiciário se aproximar mais da sociedade”, diz o conselheiro do CNJ Mário Maia.
“E existem muitas formas de tornar a Justiça mais acessível – a linguagem é uma delas.”
“Como primeira forma de contato, eu entendo que linguagem pode aproximar ou afastar. Da forma como ela normalmente se apresenta, é muito difícil de compreender.”
Segundo ele, a ideia da iniciativa não é acabar com o o uso dos termos técnicos, que são necessários, mas incentivar o uso de uma linguagem mais direta e também criar formas de “traduzir” o processo para quem não é da área.
“Isso não desmerece o vernáculo jurídico, que vai continuar existindo, mas explicar as decisões para as pessoas não tiveram a oportunidade de aprendê-lo”, diz Maia.
“Não é que ele tenha que ser combatido. Ele deve ser preservado no ambiente jurídico, na academia. Existem tradições conservadas que carregam um valor histórico.”
Mas manter uma tradição não significa rejeitar o novo, diz ele.
Linguagem simples
O principal ponto da iniciativa é incentivar que os tribunais de Justiça disponibilizem uma explicação em linguagem simples de certas decisões, sentenças ou portarias a depender do perfil de pessoas que elas afetem.
“Uma decisão que afeta empresas, que têm equipes jurídicas especializadas, não precisa disso. Mas uma decisão sobre aposentadoria, por exemplo, ou que afete o regime de trabalho do trabalhador rural, precisa ser acessível”, defende Maia.
Essa “tradução” seria produzida pelas próprias varas tanto em forma de texto como em forma de áudio – acessível por QR Code, por exemplo – pensando tanto em pessoas com deficiência visual quanto em pessoas que não sabem ler.
“Para muitas pessoas é constrangedor ter que dizer que é analfabeto e pedir para alguém ler”, diz Maia.
“Disponibilizar uma explicação em áudio é uma forma de inclusão. O acesso à Justiça gera a noção de pertencimento, a pessoa começa a se sentir cidadã, detentora de direitos, de proteção.”
A iniciativa beneficia inclusive pessoas com alta escolaridade de outras áreas do conhecimento, segundo o conselheiro.
Afinal, a dificuldade de entender decisões pode acontecer mesmo que as peças do processo estejam escritas de forma bastante objetiva, com sentenças na ordem direta e linguagem clara, já que o uso de certos termos técnicos é inevitável.
“Se eu ler um comunicado de uma associação médica eu também não vou entender”, diz Maia. “Então, essa iniciativa é algo que beneficia todo mundo.”
A iniciativa, no entanto, depende de cada tribunal – é uma recomendação do CNJ, não uma resolução, que tornaria seus termos obrigatórios.
“É algo que pode ser iniciativa do tribunal, do magistrado ou mesmo da secretaria da vara, de acordo com o perfil de pessoas. Há locais onde seria importante, por exemplo, disponibilizar o conteúdo em linguagens de povos indígenas. Muitas vezes a gente esquece que o português não é a única língua falada no Brasil”, diz Maia.
A experiência do Tribunal de Justiça da Bahia, afirma, mostra que a iniciativa não gera gastos extras.
“Sempre tem alguma resistência das pessoas, mas o debate é bom, ajuda a conscientizar e é uma forma da gente escutar os questionamentos”, diz.
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