- Author, Leandro Prazeres
- Role, Da BBC News Brasil em Brasília
- Twitter, @PrazeresLeandro
Militares fardados sob os holofotes da imprensa, o escrutínio de parlamentares questionados sobre sua participação em atos classificados como atentados à democracia.
Esta imagem não aconteceu no Brasil durante o processo de redemocratização do final dos anos 1970 graças à Lei de Anistia, que impediu a punição pelos crimes cometidos durante a ditadura militar que durou entre 1979 e 1985. Mas poderá ocorrer agora, em 2023.
A expectativa é de que a recém-autorizada Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI), que vai investigar a invasão das sedes dos Três Poderes, deverá convocar oficiais das Forças Armadas para que esclareçam se houve qualquer participação de militares nos atos do dia 8 de janeiro deste ano.
O Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF) foram invadidos e depredados.
A principal suspeita que surgiu após a ação foi a de que militares teriam sido coniventes com os militantes bolsonaristas que acamparam em frente a quartéis em todo o Brasil logo após a derrota do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) nas eleições de 2022 e de onde teriam partido caravanas em direção a Brasília no dia da invasão.
E a iminência de que militares sejam colocados nessa espécie de “banco dos réus” de uma CPMI surge em meio ao já conhecido clima de desconfiança entre a categoria e o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
É nesse contexto que militares da reserva, políticos e especialistas ouvidos pela BBC News Brasil avaliam que, a depender de como a CPMI for conduzida, ela pode aumentar, ainda mais, a fissura entre os militares e o atual governo.
Segundo eles, essa fissura poderia aumentar caso a bancada governista da CPMI decida “emparedar” as Forças Armadas ao longo dos depoimentos.
Conivência e suspeitas
As suspeitas em torno do suposto papel das Forças Armadas ou de alguns de seus integrantes nos episódios que levaram aos atos de 8 de janeiro começaram ainda no final de 2022, logo após a derrota de Bolsonaro para Lula nas eleições presidenciais.
Nos dias que se seguiram, milhares de pessoas passaram a acampar em frente a unidades militares em diversos estados do Brasil. Um dos maiores acampamentos foi montado em frente ao Quartel-General do Exército, em Brasília.
Os acampamentos reuniam militantes bolsonaristas insatisfeitos com o resultado das eleições que alegavam, sem evidência, que o pleito havia sido fraudado. Alguns pediam um golpe militar para impedir que Lula tomasse posse.
Apesar do apelo de lideranças do futuro novo governo para que os acampamentos fossem desmontados, as Forças Armadas não retiraram os manifestantes.
A situação se agravou ao longo de novembro, especialmente depois que manifestantes atearam fogo em ônibus e automóveis em frente à sede da Polícia Federal após a prisão de um militante bolsonarista suspeito de fazer ameaças a autoridades.
Os atos aconteceram no dia 12 de novembro, mesmo dia em que Lula foi diplomado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Apesar dos apelos, o Exército não retirou os manifestantes. Na época, os comandantes do Exército, Aeronáutica e Marinha divulgaram uma nota oficial e defenderam o que classificaram como “livre manifestação do pensamento; à liberdade de reunião, pacificamente; e à liberdade de locomoção no território nacional”.
Em dezembro, a Polícia Civil do Distrito Federal prendeu um homem suspeito de preparar um atentado a bomba no Aeroporto Internacional de Brasília. Ele admitiu que obteve o artefato no acampamento em frente ao Quartel General do Exército.
Os acampamentos só foram desmontados após a invasão das sedes dos Três Poderes.
Outro foco de desconfiança sobre o papel exercido pelos militares no episódio surgiram logo após a invasão.
O Exército abriu duas sindicâncias (investigações internas) para apurar omissão ou participação de militares da ativa nos atos de 8 de janeiro. Elas foram abertas a pedido do comandante da instituição, o general Tomás Paiva.
O Ministério Público Militar (MPM) encaminhou três inquéritos policial-militares ao Supremo Tribunal Federal (STF) relatando as supostas condutas de integrantes das Forças Armadas no episódio.
Também houve questionamentos sobre como o Gabinete Segurança Institucional (GSI), vinculado à Presidência da República, não se planejou para impedir as invasões, apesar dos alertas feitos por órgãos de segurança.
Além disso, imagens do circuito interno de TV do Palácio do Planalto mostraram militares do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) servindo água para os manifestantes que invadiram o prédio e agindo de forma aparentemente cordial em relação a eles.
As imagens foram centrais para que a CPMI fosse instalada pois também mostraram o então ministro do GSI, o general Gonçalves Dias, circulando pelo prédio sem prender nenhum dos invasores. Dias é considerado, no entanto, um antigo aliado de Lula.
Em seu depoimento à Polícia Federal, Dias alegou que não prendeu ninguém na ocasião porque tentava gerenciar a crise causada pela invasão. Interlocutores do governo, porém, alegam que apesar de estar oficialmente sob o comando de Dias, boa parte dos cargos do GSI eram ocupados por militares nomeados na gestão de Bolsonaro.
Acirramento e desconfiança
Para o general da reserva do Exército Luiz Eduardo Rocha Paiva, a CPMI dos atos de 8 de janeiro tem “potencial” para aumentar a desconfiança entre militares e o governo Lula.
Ele afirma que essa desconfiança em relação ao governo do PT, contudo, já existe e atribui ela à suposta diferença de valores entre os militares e o partido o presidente Lula.
“Tanto ideologicamente como na questão de crenças e valores, patriotismo, nacionalismo, liberdade e justiça, existe uma divergência dessas características entre o governo e o militar brasileiro”, disse Rocha Paiva, que é autor do prefácio do livro Verdade Sufocada, escrito pelo coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, condenado por tortura cometida durante o regime militar.
Rocha Paiva diz que essa desconfiança pode aumentar a depender da forma como a CPMI for conduzida.
“Se prevalecer ali o radicalismo, o revanchismo e a ideologia de um lado só, seja radical de esquerda ou de direita, pode causar uma fissura não só entre as Forças Armadas e o governo, mas uma fissura política no país”, disse.
A pesquisadora Adriana Marques, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), também avalia que o impacto da CPMI nas relações entre o governo e os militares pode variar.
“Isso pode pode ter zero impacto e pode ter um impacto grande sim, a depender de dizer do sentimento que foi mobilizado ali”, afirma.
Ela admite, no entanto, que a possibilidade de que militares de alta patente sejam interrogados sob os holofotes de uma CPMI deverá causar desconforto na caserna.
“Se forem militares do ativa, certamente vai gerar uma situação desconfortável. Podemos lembrar, por exemplo, que durante a CPI da Pandemia, havia a expectativa de que o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, que era general, não fosse fardado prestar depoimento justamente porque isso causaria uma situação incômoda aos militares”, diz a professora. Pazuello, ao final, não foi fardado ao seu depoimento.
O professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e doutor em Ciência Política Augusto Teixeira também avalia que a CPMI pode aumentar a desconfiança entre governo e militares. Ele pontua que um dos elementos que pode levar a isso seria a imprevisibilidade da dinâmica de uma comissão como essa.
“Existe, sim, um risco de que a CPMI dos atos de 8 de janeiro possam aumentar essa desconfiança. Uma CPMI é algo incontrolável na perspectiva de que a gente sabe como começa, mas não sabe como acaba. Ademais, você tem um colegiado de atores muito heterogêneos que apesar de seguirem orientações partidárias, eles também têm suas próprias especificidades”, disse o professor.
Teixeira aponta ainda um outro elemento que pode acirrar os ânimos.
“O processo de coleta de provas e novas evidências que surgem podem apontar para problemas relacionados a como as Forças Armadas, institucionalmente, lidaram com os momentos prévios aos atentados de 8 de janeiro, tal como a existência de diversos acampamentos diante de quartéis”, disse o professor.
Adriana Marques avalia que esse potencial de conflito poderá se materializar se, de alguma forma, a bancada governista tentar, de alguma forma, responsabilizar as Forças Armadas como instituição pelos atos de 8 de janeiro.
“Se o processo de responsabilização for individual, não acho que haverá grandes problemas. Mas se tentarem responsabilizar as Forças Armadas como um todo, acho que isso vai criar sérias resistências entre os militares”, afirmou.
Rocha Paiva diz que, ainda que tentem, não haveria risco de “emparedar” os militares que prestem depoimento. Ele defende que os militares não têm responsabilidade sobre o que aconteceu no dia 8 de janeiro.
“No dia em que o militar for chamado a comparecer, acho que quem vai ficar mais preocupado com o que ele vai dizer são os interlocutores que quiserem usar a CPMI para emparedar as Forças Armadas. Como não existe flanco aberto no que elas fizeram nesse período que levou ao 8 de janeiro, não há condições de emparedar as Forças Armadas”, disse o general.
Conciliação e descolamento
Apesar de reconhecerem que há potencial para que a CPMI aumente a distância entre militares e o governo Lula, os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil acreditam que o ânimo dentro do governo petista é de evitar um confronto direto com as Forças Armadas.
Os sinais teriam sido dados desde o início da formação do governo, com a nomeação, por exemplo, do ministro da Defesa, José Múcio Monteiro.
O político seria conhecido por ter um perfil conciliador e ter bom trânsito entre os militares.
Além disso, o movimento mais recente teria sido o de manter um militar, no caso o general Marcos Antônio Amaro dos Santos, no comando do GSI, em substituição a Gonçalves Dias.
A nomeação ocorreu apesar das pressões internas para que o governo promovesse uma total desmilitarização do GSI, especialmente após os atos de 8 de janeiro.
Adriana Marques diz que, embora considere necessário debater o papel que as Forças Armadas tiveram nos atos de 8 de janeiro, ela acredita que o governo não vai se empenhar nisso durante a CPMI.
“Esse não tem sido o caminho do governo. A natureza do Lula é conciliar. Então, ainda que eu ache que seja necessário discutir a participação dos militares nesses atos, acho que isso não vai acontecer”, disse.
O professor Augusto Teixeira também concorda que o governo deverá adotar um tom mais moderado durante a CPMI.
“O governo realiza um trabalho forte no sentido de distensionar as relações com as Forças Armadas e não aumentar essa desconfiança. É por isto que o trato dos parlamentares da bancada governista na CPMI será, obviamente, muito sensível”, disse.
A estratégia de evitar o confronto se materializa nas declarações de parlamentares da base governista.
“Nós não vamos investigar as Forças Armadas enquanto instituição. Não é uma CPMI sobre o Exército, a Marinha ou a Aeronáutica. Se eventualmente houver militares envolvidos nos atos, são eles que serão investigados, não o conjunto”, disse à BBC News Brasil o deputado federal Carlos Zarattini (PT-SP).
Augusto Teixeira disse que a estratégia que o governo deverá adotar para evitar um confronto aberto com as Forças Armadas é focar no que chamou de “desbolsonarização” da instituição.
“Acho que o governo vai tomar cuidado para que não haja tensionamento. A orientação daqueles parlamentares palacianos ou envolvidos na base do governo vai se dirigir na questão do bolsonarismo ou da bolsonarização das Forças Armadas e na atuação política dos militares, mas enquanto indivíduos e não como instituição”, disse.
Adriana Marques avalia que se essa for, de fato, a estratégia a ser adotada pelo governo, os militares não deverão se opor.
“Se isso acontecer, acho que vamos ver uma situação em que os militares vão preferir perder alguns aneis a se expor enquanto instituição”, afirmou.
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