- Author, David Cox
- Role, BBC Future
Em abril de 2003, o sequenciamento completo do “livro da vida” codificado no genoma humano foi declarado “encerrado”, após 13 anos de trabalho. O mundo estava repleto de expectativas.
Esperava-se que o Projeto Genoma Humano, depois de consumir cerca de US$ 3 bilhões (cerca de R$ 15 bilhões), trouxesse tratamentos para doenças crônicas e esclarecesse todos os detalhes determinados geneticamente sobre as nossas vidas.
Mas, enquanto as entrevistas coletivas anunciavam o triunfo desta nova era de conhecimento biológico, o manual de instruções para a vida humana já trazia consigo uma surpresa inesperada.
A convicção que prevalecia na época era que a ampla maioria do genoma humano consistiria de instruções para a produção de proteínas – os “tijolos” que constroem todos os organismos vivos e desempenham uma imensa variedade de papéis nas nossas células e entre elas.
E, com mais de 200 tipos diferentes de células no corpo humano, parecia fazer sentido que cada uma delas precisasse dos seus próprios genes para realizar suas funções necessárias.
Acreditava-se que o surgimento de conjuntos exclusivos de proteínas fosse vital na evolução da nossa espécie e dos nossos poderes cognitivos. Afinal, somos a única espécie capaz de sequenciar o nosso próprio genoma.
Mas o que descobrimos é que menos de 2% dos três bilhões de letras do genoma humano são dedicados às proteínas. Apenas cerca de 20 mil genes codificadores de proteínas foram encontrados nas longas linhas de moléculas que compõem nossas sequências de DNA.
Os geneticistas ficaram assombrados ao descobrir que os números de genes produtores de proteínas dos seres humanos são similares a algumas das criaturas mais simples do planeta. As minhocas, por exemplo, têm cerca de 20 mil desses genes, enquanto as moscas-das-frutas têm cerca de 13 mil.
Foi assim que, do dia para a noite, o mundo científico passou a enfrentar uma verdade bastante incômoda: grande parte do nosso entendimento sobre o que nos torna seres humanos talvez estivesse errada.
“Eu me lembro da incrível surpresa”, afirma o biólogo molecular Samir Ounzain, principal executivo da companhia suíça Haya Therapeutics. A empresa procura utilizar nosso conhecimento sobre a genética humana para desenvolver novos tratamentos para doenças cardiovasculares, câncer e outras enfermidades crônicas.
“Aquele foi o momento em que as pessoas começaram a se perguntar ‘será que temos um conceito errado do que é a biologia?'”
Os 98% restantes do nosso DNA ficaram conhecidos como matéria escura, ou o genoma obscuro – uma enorme e misteriosa quantidade de letras sem propósito ou significado óbvio.
Inicialmente, alguns geneticistas sugeriram que o genoma obscuro fosse simplesmente DNA lixo, uma espécie de depósito de resíduos da evolução humana. Seriam os restos de genes partidos que deixaram de ser relevantes há muito tempo.
Mas, para outros, sempre ficou claro que o genoma obscuro seria fundamental para nosso entendimento da humanidade.
“A evolução não tem absolutamente nenhuma tolerância com o lixo”, afirma Kári Stefánsson, o principal executivo da empresa islandesa deCODE Genetics, que sequenciou mais genomas inteiros do que qualquer outra instituição em todo o mundo.
Para ele, “deve haver uma razão evolutiva para manter o tamanho do genoma”.
Duas décadas se passaram e, agora, temos os primeiros indícios da função do genoma obscuro. Aparentemente, sua função primária é regular o processo de decodificação, ou expressão, dos genes produtores de proteínas.
O genoma obscuro ajuda a controlar o comportamento dos nossos genes em resposta às pressões ambientais enfrentadas pelo nosso corpo ao longo da vida, que vão desde a alimentação até o estresse, a poluição, os exercícios e a quantidade de sono. Este campo é conhecido como epigenética.
Ounzain afirma que gosta de pensar nas proteínas como o hardware que compõe a vida. Já o genoma obscuro é o software, que processa e reage às informações externas.
Por isso, quanto mais aprendemos sobre o genoma obscuro, mais compreendemos a complexidade humana e como nos tornamos quem somos hoje.
“Se você pensar em nós enquanto espécie, somos mestres da adaptação ao ambiente em todos os níveis”, afirma Ounzain. “E essa adaptação é o processamento das informações.”
“Quando você retorna à questão sobre o que nos faz ser diferentes de uma mosca ou de uma minhoca, percebemos cada vez mais que as respostas estão no genoma obscuro”, segundo ele.
Os transposons e o nosso passado evolutivo
Quando os cientistas começaram a examinar o livro da vida, em meados dos anos 2000, uma das maiores dificuldades foi o fato de que as regiões não codificadoras de proteínas do genoma humano pareciam estar repletas de sequências de DNA repetidas, conhecidas como transposons.
Essas sequências repetitivas eram tão onipresentes que compreendiam cerca da metade do genoma em todos os mamíferos vivos.
“A própria compilação do primeiro genoma humano foi mais problemática devido à presença dessas sequências repetitivas”, afirma Jef Boeke, diretor do centro médico acadêmico chamado Projeto Matéria Escura da Universidade Langone de Nova York, nos Estados Unidos.
“Analisar simplesmente qualquer tipo de sequência é muito mais fácil quando se trata de uma sequência exclusiva.”
Inicialmente, os transposons foram ignorados pelos geneticistas. A maior parte dos estudos genéticos preferiu concentrar-se puramente no exoma – a pequena região codificadora de proteínas do genoma.
Mas, ao longo da última década, o desenvolvimento de tecnologias mais sofisticadas de sequenciamento de DNA permitiu aos geneticistas estudar o genoma obscuro com mais detalhes.
Em um desses experimentos, os pesquisadores excluíram um fragmento específico de transposon de camundongos, o que fez com que a metade dos filhotes dos animais morresse antes do nascimento. O resultado demonstra que algumas sequências de transposons podem ser fundamentais para a nossa sobrevivência.
Talvez a melhor explicação sobre o motivo da existência dos transposons no nosso genoma possa ser o fato de que eles são extremamente antigos e datam das primeiras formas de vida, segundo Boeke.
Outros cientistas sugeriram que eles provêm de vírus que invadiram o nosso DNA ao longo da história humana, antes de receberem gradualmente novas funções no corpo para que tivessem algum propósito útil.
“Na maioria das vezes, os transposons são patógenos que nos infectam e podem infectar células da linha germinal, [que são] o tipo de células que transmitimos para a geração seguinte”, afirma Dirk Hockemeyer, professor assistente de biologia celular da Universidade da Califórnia em Berkeley, nos Estados Unidos.
“Eles podem então ser herdados e gerar integração estável ao genoma”, segundo ele.
Boeke descreve o genoma obscuro como um registro fóssil vivo de alterações fundamentais no nosso DNA que ocorreram há muito tempo, na história antiga.
Uma das características mais fascinantes dos transposons é que eles podem se mover de uma parte do genoma para outra – um tipo de comportamento que gerou seu nome – criando ou revertendo mutações nos genes, às vezes com consequências extraordinárias.
O movimento de um transposon para um gene diferente pode ter sido responsável, por exemplo, pela perda da cauda na grande família dos primatas, fazendo com que a nossa espécie desenvolvesse a capacidade de andar ereta.
“Aqui você tem esse evento único que teve enorme efeito sobre a evolução, gerando toda uma linhagem de grandes primatas, incluindo a nós”, segundo Boeke.
Mas, da mesma forma que nossa crescente compreensão sobre o genoma obscuro explica cada vez mais sobre a evolução, ela pode também esclarecer o motivo do surgimento das doenças.
Ounzain ressalta que, se olharmos para os estudos de associação genômica ampla (GWAS, na sigla em inglês), que pesquisam as variações genéticas entre grandes quantidades de pessoas para identificar quais delas são relacionadas a doenças, a grande maioria das variações ligadas a doenças crônicas, como o mal de Alzheimer, diabete e doenças cardíacas, não está nas regiões de codificação de proteínas, mas sim no genoma obscuro.
O genoma obscuro e as doenças
A ilha de Panay, nas Filipinas, é mais conhecida pelas suas cintilantes areias brancas e pelo fluxo regular de turistas. Mas este local idílico esconde um segredo trágico.
Panay abriga o maior número de casos existentes no mundo de um distúrbio dos movimentos incurável, chamado distonia-parkinsonismo ligado ao X (XDP, na sigla em inglês).
Como no mal de Parkinson, as pessoas com XDP desenvolvem uma série de sintomas que afetam sua capacidade de andar e reagir rapidamente a diversas situações.
Desde a descoberta do XDP nos anos 1970, a doença só foi diagnosticada em pessoas de ascendência filipina. Este fato permaneceu um mistério por muito tempo, até que os geneticistas descobriram que todos esses indivíduos possuem a mesma variante exclusiva de um gene chamado TAF1.
O início dos sintomas parece ser causado por um transposon no meio do gene, que é capaz de regular sua função de forma a causar prejuízo ao corpo ao longo do tempo. Acredita-se que esta variante genética tenha surgido pela primeira vez cerca de dois mil anos atrás, antes de ser transmitida e se estabelecer na população.
“O gene TAF1 é um gene essencial, ou seja, ele é necessário para o crescimento e a multiplicação de todos os tipos de células”, afirma Boeke.
“Quando você ajusta sua expressão, você tem esse defeito muito específico, que se manifesta como uma horrível forma de parkinsonismo.”
Este é um exemplo simples de como algumas sequências de DNA do genoma obscuro podem controlar a função de diversos genes, seja ativando ou reprimindo a transformação de informações genéticas em proteínas, em resposta a indicações recebidas do ambiente.
O genoma escuro também fornece instruções para a formação de diversos tipos de moléculas, conhecidas como RNAs não codificantes. Eles podem desempenhar diversos papéis, desde ajudar a fabricar algumas proteínas, bloquear a produção de outras ou ajudar a regular a atividade genética.
“Os RNAs produzidos pelo genoma obscuro agem como os maestros da orquestra, conduzindo como o seu DNA reage ao ambiente”, explica Ounzain. E estes RNAs não codificantes, agora, são cada vez mais considerados a ligação entre o genoma obscuro e diversas doenças crônicas.
A ideia é que, se fornecermos sistematicamente os sinais errados para o genoma obscuro com o nosso estilo de vida – por exemplo, com o fumo, má alimentação e inatividade –, as moléculas de RNA produzidas por ele podem fazer com que o corpo entre em um estado de doença, alterando a atividade genética, de forma a aumentar as inflamações do corpo ou promover a morte celular.
Acredita-se que certos RNAs não codificantes podem desligar ou aumentar a atividade de um gene chamado p53, que age normalmente para evitar a formação de tumores.
Em doenças complexas, como a esquizofrenia e a depressão, todo um conjunto de RNAs não codificantes pode agir em sincronia para reduzir ou aumentar a expressão de certos genes.
Mas o nosso reconhecimento cada vez maior da importância do genoma obscuro já está trazendo novos métodos de tratamento dessas doenças.
A indústria de desenvolvimento de remédios costuma se concentrar nas proteínas, mas algumas empresas estão percebendo que pode ser mais eficaz tentar interromper os RNAs não codificantes, que controlam os genes encarregados desses processos.
No campo das vacinas contra o câncer, por exemplo, as empresas realizam sequenciamento de DNA em amostras de tumores dos pacientes para tentar identificar um alvo adequado a ser atacado pelo sistema imunológico. E a maioria dos métodos concentra-se apenas nas regiões codificantes de proteínas do genoma.
Mas a empresa alemã de biotecnologia CureVac é pioneira em um método de análise das regiões não codificantes de proteínas, na esperança de encontrar um alvo que possa interromper o câncer na fonte.
Já a empresa de Ounzain, a Haya Therapeutics, atualmente está realizando um programa de desenvolvimento de drogas dirigido a uma série de RNAs não codificantes que dirigem a formação de tecidos de cicatrização, ou fibrose, no coração – um processo que pode causar insuficiência cardíaca.
Uma das esperanças é que este método possa minimizar os efeitos colaterais decorrentes de muitos remédios de uso comum.
“O problema quando medicamos as proteínas é que existem apenas cerca de 20 mil delas no corpo e a maioria é expressa em muitas células e processos diferentes, que não têm relação com a doença”, afirma Ounzain.
“Mas a atividade do genoma obscuro é extraordinariamente específica. Existem RNAs não codificantes que regulam a fibrose apenas no coração, de forma que, ao medicá-los, temos um remédio potencialmente muito seguro”, explica ele.
O desconhecido
Paralelamente, parte desse entusiasmo precisa ser atenuada pelo fato de que, em termos de compreensão do funcionamento do genoma obscuro, apenas acabamos de arranhar a superfície.
Sabemos muito pouco sobre o que os geneticistas descrevem como regras básicas: como essas sequências não codificantes de proteínas comunicam-se para regular a atividade genética? E como exatamente essas teias complexas de interações se manifestam por longos períodos de tempo até se tornarem traços de doenças, como a neurodegeneração observada no mal de Alzheimer?
“Estamos ainda no começo”, afirma Dirk Hockemeyer. “Os próximos 15 a 20 anos ainda serão assim – [iremos] identificar comportamentos específicos em células que podem gerar doenças e, em seguida, tentar identificar as partes do genoma obscuro que podem estar envolvidas na modificação desses comportamentos. Mas, agora, temos ferramentas para nos aprofundar nisso, algo que antes não tínhamos.”
Uma dessas ferramentas é a edição genética.
Jef Boeke e sua equipe estão atualmente tentando aprender mais sobre a forma de desenvolvimento dos sintomas de XDP, reproduzindo a inserção de transposons genéticos TAF1 em camundongos.
No futuro, uma versão mais ambiciosa deste projeto poderá tentar compreender como as sequências de DNA não codificantes de proteínas regulam os genes, construindo blocos de DNA sintético a partir do zero, para transplante em células de camundongos.
“Estamos agora envolvidos em pelo menos dois projetos, usando um enorme pedaço de DNA que não faz nada e tentando instalar nele todos esses elementos”, afirma Boeke.
“Colocamos um gene ali, uma sequência não codificante em frente a ele e outra mais distante, para ver como esse gene se comporta”, explica ele. “Agora, temos todas as ferramentas para realmente construir pedaços do genoma obscuro de baixo para cima e tentar entendê-lo.”
Hockemeyer prevê que, quanto mais aprendermos, mais surpresas inesperadas o livro genético da vida continuará a nos apresentar, da mesma forma que ocorreu quando o primeiro genoma foi sequenciado, 20 anos atrás.
Para ele, “as questões são muitas. O nosso genoma ainda está evoluindo ao longo do tempo? Conseguiremos decodificá-lo totalmente?”
“Ainda estamos nesse espaço escuro em aberto que estamos explorando e existem muitas descobertas realmente fantásticas à nossa espera.”
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